domingo, 30 de novembro de 2008

Não Chore Quem For Humano

Não chore quem for o cão da rua
que pisa as pedras com pés de gato
e não sabe onde vai passar a noite

Não chore quem for folha caída
que perdeu a esperança de voltar
aquela árvore que um dia a viu nascer

Não chore quem for pétala de rosa
que se desfolhou sem ter vontade
mas que cumpre um soberano desígnio

Não chore quem for triste, que
resista e mantenha a espada em riste
contra tudo aquilo que ainda vem

Não chore quem for gume de navalha
pois os peitos abertos em ferida
ainda hão-de florir e dar nova flor

Não chore quem for humano
pois a nossa raça sendo inacabada
é aquela que ainda pode sonhar.

sábado, 29 de novembro de 2008

Luar No Teu Corpo

Viemos desse tempo tão antigo
Entre esse mar das mãos que tu me dás
As ondas desse mar, por meu castigo,
Ficam presas no vento se não estás

Só posso ordenar aos meus sentidos
O tempo desse tempo que não esqueço
Ao lembrar os caminhos proibidos
Nas luas do teu corpo onde amanheço

Naquela estrela onde o sol se deita
Cabia tão perfeito o nosso espaço
Na janela do meu peito fico á espreita
Entre a vidraça aberta do cansaço

Das lágrimas que chorei eu fiz um mar
De oceanos de tristeza e alegria
Amei por entre as noites e o luar
Que ao nosso lado, amor, também dormia.


José Luís Gordo

Canto Português

Se quando só me sinto só me penso
Se quando só me penso estás comigo
Se o ardor do teu corpo me pertence
Amada pátria minha estou contigo!

Em ti fecundo a seiva do meu querer
Em ti respiro o pó do meu caminho
Para ti abro os meus braços de semente
De ti apanho a uva do meu vinho

No trigal mais loiro do teu pão
Eu dou o meu amor num canto enorme
Na força do meu peito toda a glória
Dos oceanos cheios do teu nome.


Maria de Lourdes de Carvalho

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...

Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá Carneiro

Como Um Poeta

Na noite mais secreta colho uma rosa
Que vem despontar o vermelho vivo
Que existe nos lábios da mulher amada
E de uma pequena rosa, pequeno nada,
Nasce a ilusão de um universo completo

Depois roubo as flores dos jardins da cidade
E, curiosamente, não me reconheço em ser ladrão
Roubo pedaços de vida para além da solidão
E vou semeando pelos rostos versos de saudade

Chamem-me construtor de versos ou proxeneta
Talvez um dia mordam as rosas mais amargas
E saibam ver que em alguns momentos
Consegui subir tão alto como um poeta.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Gritava Contra O Silêncio

Gritava como se estivesse só no mundo,
como se tivesse ultrapassado
toda a companhia e toda a razão
e tivesse encontrado a pura solidão.
Gritava contra as paredes, contra as pedras,
contra a sombra da noite.

Erguia a sua voz como se a arrancasse do chão,
como se o seu desespero e a sua dor
brotassem do próprio chão que a suportava.
Erguia a sua voz como se quisesse atingir com ela
os confins do universo e aí,
tocar alguém, acordar alguém, obrigar alguém a
responder.
Gritava contra o silêncio.

Sophia de Mello-Breyner Andresen

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Sagrada Inquisição

Não bebo o veneno pelo copo.
Se queres que eu o beba, é muito simples
Basta abrires as tuas mãos
E eu delas beberei até à última gota
Esse líquido que hoje me queres dar

Queima-me por dentro e talvez
Que isso se vá notar por fora...
Acaba com o meu corpo
Num golpe, apenas...
E depois deita-me à terra
Para que ela cumpra o seu ofício

Não faças disto um jogo
Ou sequer um desafio
Aceita as minhas palavras
Como um cipresta aceita a vida
Assim que a sua semente
É deitada a esta terra sem nome

Sagrada Inquisição...
Podia chamar-te outro nome
Dar-te apenas um apelido
Que te tornasse vísivel
Perante os outros

Mas não preciso que os outros
Sequer notem a tua presença...
É a mim que tu tens de queimar
É comigo que tens contas a acertar!

Ganha coragem e vem!
Eu...
Eu não vou fugir.



domingo, 23 de novembro de 2008

Hoy El Mar Es Más Azul Que El Cielo

Mira amor!
Hoy el mar es más azul que el cielo!

No sé por qué, pero necesitaba decírtelo
porque, sentiéndome cansado, sé perfectamente
que me fatiga no viene de la tierra, sino de
esse lugar azul,
de ese largo camino extenso que me hace pensar.

Por otra parte, dejé a medianoche
mi silencio al otro lado de la puerta.
Cuando llamaste. Qué oíste?
No fue un torbellino de semblantes
con las voces de mi proprio eco?

Sí, amor, puedes estar segura.
Hoy el mar es más azul que el cielo.

José Manuel Capêlo

Fica aqui gravada a nossa canção
A ferro e fogo como se marca o amor
Nesses tempos de guerra...

Ou Fado

Caíu uma lágrima à saudade quando viu a tristeza na sua rua
Não era uma visita desejada, não a esperava encontrar
Mas a tristeza costuma ter o estranho vício de aparecer sem avisar
E a saudade sentiu-se nua...tão nua

Com ela não veio a esperança
Nem um riso de criança
Nem um sorriso no olhar
Nada...
Foi apenas a tristeza a chegar

Não bateu á porta
Tem o dom de ser mal-educada
De entrar sem ter a chave da entrada
E de arrombar janelas
Passar por cima delas
Como se não as visse

Chorou quando entrou...
Chorou porque viu na saudade
O estranho rosto que tinha
Quando ainda era fantasia
E sabia ser um pouco de alegria

A tristeza não passa de uma saudade descalça
De uma saudade com frio
Que anda num enorme desvario
À procura de um sapato que lhe sirva

Riram na cara uma da outra
Mas quando deram por elas
Já estavam boca na boca
Como se o amor nascesse
Por entre as duas...

Nas ruas
Não se ouvia som algum
O passado estava de jejum
E apenas se alimentava o futuro

O presente é um burguês
Que nunca come à vez
Mas que passa a vida a comer
A alimentar-se...
A ficar cada vez mais anafado

Enfim...
Talvez isto seja apenas estória
Ou fado.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Acreditar Na Felicidade

Abre as minhas mãos
E delas faz um navio
Que navegue por águas
Cheias de lodo, mas que chegue
A um porto feito de verdes limos
E com conchas de areia
Nada mais que areia...

Depois faremos a festa
Das ondas que não têm direcção
E que correm pelo mar a dentro
Como só podem fazer os seres livres

Acabamos encostados a uma rocha
A ver o mar passar a nossos pés
Sentimos a brisa...
Acreditamos na felicidade.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Fogo Preso

Quando se ateia em nós um fogo preso,
O corpo a corpo em que ele vai girando
Faz o meu corpo arder no teu aceso
E nos calcina e assim nos vai matando

Essa luz repentina
Até perder alento,
E então é quando
A sombra se ilumina,
E é tudo esquecimento,
Tão violento e brando

Sacode a luz o nosso ser surpreso
E devastados nós vamos a seu mando,
Nessa prisão o mundo perde o peso
E em fogo preso à noite as chamas vão pairando

E vão-se libertando
Fogo e contentamento,
A revoar num bando
De beijos tão sem tento
Que não sabemos quando
São fogo, ou água, ou vento

A revoar num bando
De beijos tão sem tento,
Que perdem o comando
Do próprio esquecimento.

Vasco Graça Moura

domingo, 16 de novembro de 2008

Conversa Telefónica

"Já lhe disse que hoje é completamente impossível encontrarmo-nos, ainda tenho ali cinco na sala de espera...a minha mulher já começa a desconfiar de qualquer coisa, não me peça impossíveis...oh minha querida você sabe perfeitamente o que eu gosto de si, mas eu tenho aquele monstro lá em casa e...divórcio? Não seja parva Tareka, onde é que já se viu um homem como eu divorciar-se?...sim, até pode ser o que se vê mais hoje em dia, mas eu não sou desses, eu assumi um compromisso com a minha mulher...oh minha gatinha, você sabe o quanto eu gosto de si, mas eu tenho uma família, percebe?...mas porque é que você não começa uma família com outro homem? Talvez assim até me entendesse melhor e...não diga isso que magoa o meu coraçãozinho, tente apenas compreender o meu lado e...mas já lhe disse que hoje não pode ser, ainda estou cheio de trabalho. Olhe, fazemos assim, amanhã à hora de almoço encontramo-nos no restaurante do costume e depois podemos ir até à praia ver as ondas e...eu sei que você não gosta de ver as ondas, mas então ficamos a olhar para a areia e talvez...sim, eu sei que a menina tem uma pequena alergia à areia e que não pára de espirrar, mas podemos, então, ir ao campo e ver...eu sei que a menina é alérgica a algumas flores, mas então vamos para um sítio que apenas tenha relva e...olhe bebé, então não sei, não sei onde a menina quer ir. Escolha e depois diga-me qualquer coisa...onde?...Não pode ser...mas isso é muito longe, não podemos ir para um sítio assim tão distante, minha querida...claro que gosto de si...claro que gosto muito da minha faneca...claro que lhe quero bem, mas tente compreender que...sim...ah, sim...claro que gosto...ahh você sabe minha querida...sim...faça isso sim...e depois faz...sim...e depois pode fazer o...sim...faça as malas querida, amanhã vamos para longe!"

Começar De Novo

Esta gaivota que vai
Seguindo o navio
Este céu que despreza a morte
Esta luz, este rio

Tudo num sonho que apenas
Foi desenhado
Para eu aprender de novo
A viver a teu lado

Dentro de nós temos nós
De seguir a lição
Desta luz que a manhã
Nos oferece novamente

Dentro de nós vai o mundo
Tornar-se canção
É preciso que tudo
Comece novamente

Vento no rosto
E tanto sol nos meus braços
Tanto sol que depois te cerca
A travar os teus passos

Tudo num sonho
Que foi assim desenhado
Para tu começares de novo
A viver a meu lado.

David Mourão-Ferreira

sábado, 15 de novembro de 2008

A Minha Menina

Quero ser o fado que canta na tua voz
E ter o doce embalar das tardes de Verão
Em que por estarmos longe somos nós
Que não se desatam á mínima contradição

Quero ser a doce melodia na garganta
Embalado ao som de guitarras dedilhadas
Ser a voz do fado que te encanta
E ser as tuas paisagens nunca sonhadas

Quero ser o sonho que se transforma em dia
Ser a noite que acorda e é madrugada
Ser a voz que te acompanha na agonia
E ser tudo quando pensas que não tens nada

Vou estar aqui à tua espera nesta esquina
Que o tempo não se lembrou de visitar
E vou sempre dizer que és a minha menina
Mesmo quando a idade te cansar.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Um Pouco Da Tua Alma

Afinal talvez as palavras estejam mesmo gastas
E os gestos ganhem o seu significado...
(como se o teu corpo tivesse roubado
à língua portuguesa todos os adjectivos
que possam dizer o que é a perfeição)

Os teus dentes de marfim erguem-se nuns lábios
Que vêm pousar junto dos meus e parecemos
Rochas junto do mar, sempre ali a levar com as ondas
E a observar o estranho rumo dos barcos

Deixa-me navegar em ti
Deixa-me olhar para o teu rosto
E pensar que os meus sonhos ganharam forma
E que és tudo aquilo que alguma vez ambicionei
(ousei sonhar tão alto e a manhã trouxe-te
em seus braços como recém nascido)

Aperta-me em teus braços
E talvez consigas sentir uma alma
A pousar no Outono que tu és
(trazes a chuva em meu rosto
e fazes de mim aquela folha
que sempre quis ser para poder
voar sem direcção)

Quero falar-te ao ouvido
Quero dizer-te as palavras
Que estão fechadas a cadeado
E que gritam de sufoco
Por já nao aguentarem esta prisão

Trouxeste as chaves destas algemas
E (dura contradição) és prisão;
Mas uma prisão onde me entrego de livre vontade
Onde quero que o meu corpo fique preso
E de onde a minha alma não encontre fuga
(prende-me em ti...deixa-me ficar em ti)

E adormece...
Adormece nesta noite para eu te poder sonhar,
Para eu poder ver os teus olhos brilhantes
(mesmo estando fechados)
Pois são apenas eles que fazem a minha noite

Atrevo-me a soltar as palavras
Atrevo-me a dizer que talvez sejas a parte de mim
Que eu lutei por encontrar e que ganhou a tua forma
És o poema que nunca ousei escrever
Por pensar que não seria possível
(hoje sei que não há versos que te bastem
e que tudo saberá a pouco, a um resumo
daquilo que realmente és)

Não te posso descrever em palavras
Nem quero! (Elas iriam faltar...)
Olha para os meus olhos
E talvez eles digam o que agora
Me falta contar

Dá-me o teu ouvido
E talvez consiga morder
Um pouco da tua alma.


terça-feira, 11 de novembro de 2008

Sempre Que Tu Vens É Primavera

Aqui, em Portugal, donde partiste
No tempo da coragem de lutar
Em cada terra os ventos te murmuram
E as cartas da ausência te procuram
Para que venhas ver o teu lugar

Há um banco debaixo da videira
Que espreita a sombra que outra sombra dera
E há um rio a contar á sua margem
Que te chama do longe da viagem
Pois sempre que tu vens é Primavera

Ficou no cais do céu um lenço branco
Ou numa estrada a curva do horizonte
E uns olhos de mulher contam as horas
Nos pinheiros que sentem que demoras
Nas silvas do caminho ao pé da fonte

Vem ter aquela estrela que deixaste
E essa roseira no jardim que espera
E traz os filhos que te são raíz
Para que sintam o sol do seu país
Pois sempre que tu vens é Primavera.

Vem guardar o tempo na cidade que te espera
Guardar o sol e o mar no vento da amizade
Pois sempre que tu vens é Primavera.


Vasco de Lima Couto

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Porque Tu És Vida

"Gosto das tuas risadas
Da cor que os teus olhos ganham ao sorrir
Abrindo manhãs e desenhando estradas
Por onde os meus passos se atrevem a ir..."

Gosto dos teus cabelos a cair pelos ombros,
Do lenço que te afaga o pescoço como se fosse ternura
E até do príncipio das tuas costas (estrada sem curvas...)

Gosto do teu cheiro a casa,
A lar onde se come a fruta colhida
Pelas mãos de um trabalhador
Que se levanta com o nascer do sol

Gosto das tuas mãos feitas de setas
Desses dez caminhos de onde se avista o horizonte
E onde o mar faz pequenas ondas...

Gosto do teu andar, da segurança que ele tem
De quem nunca pára mas que sabe donde vem
E que nele transporta a mágoa que o fado contém

Gosto do teu sorriso (manhã sem nuvens)
E até do teu nariz (sim, até dele...)

Dá-me a tua mão
Aperta-a com a minha
E faz-me ter a ilusão de que hoje
Podemos ser apenas um só corpo

Dá-me o teu abraço
E faz-me acreditar que
A felicidade está aqui tão perto...

Sim,
É bom estar vivo
Porque tu és Vida.

domingo, 9 de novembro de 2008

Creio

Creio nos anjos
que andam pelo mundo
Creio na deusa
com olhos de diamantes
Creio em amores lunares
com piano ao fundo,
Creio nas lendas,
nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho
que falta mais fecundo
De harmonizar
as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno
num segundo,
Creio num céu futuro
que houve dantes,

Creio nos deuses
de um astral mais puro,
Na flor humilde
que se encosta ao muro
Creio na carne
que enfeitiça o além

Creio no incrível,
nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo
pelas rosas,
Creio que o amor
tem asas de ouro.

Amén.

Natália Correia

Como O Tempo Corre

No céu de estrelas lavado
Pelo luar que beija o chão
Nasce um cinzento azulado
Que me aquece o coração

Como o tempo seca o pranto
Adormece a própria dor
E vejo com desencanto
Passar o tempo do amor

No seu correr tudo leva
Na fúria da tempestade
Se parte nunca mais chega
Chega em seu lugar saudade

Meu Deus como o tempo corre
No tempo do meu viver
Parece que o tempo morre
Mesmo antes de nascer.

Fernando Mata

sábado, 8 de novembro de 2008

Vou Nascer Cabelo

Vou nascer cabelo
E ser a trança de Inês
Aquela que D. Pedro
Nunca desfez

Talvez que o pai nada saiba
Pois um rei nunca está de guarda
Talvez que a mãe nunca descubra
Este romance será sol de muita dura...

Vou nascer cabelo
Vou ser trança perfeita
A madeixa mais bem feita
No teu cabelo...

Talvez que o pajem não saiba falar
Talvez que ele nada vá contar
Mas se for
Será melhor
Que eu vá buscar o meu cavalo
E será um regalo
Ver a corte atrás de nós

Vou nascer cabelo
Vou brilhar á lua
E hás-de dizer:
Sou tua...

Vamos fazer desta estória secreta
O que o cupido faz com a seta
Vamos disparar isto pelo ar
E ver onde vai parar...

O destino, desta vez,
Não pode destinar.

Para Um Fim Do Mundo

É nestas noites de fogueira acesa
Que a memória me vem mostrar
Que a poesia é uma candeia
Que não sabe quando se apagar

É nestas noites de memórias dúbias
Que eu não sei distinguir a realidade
Sei que há certas alturas
Em que fecho os olhos e não vejo a verdade

Há coisas que quero apagar
Do fundo desta alma tecedeira
Mas a memória é um baú por encontrar
E durmo com a saudade à cabeceira

Há poemas que são o infinito
Há versos que são rimas de perdão
E há noites que são apenas gritos
Abafados pela solidão...

Eu sei que lá em cima estão anjos
À espera de um dilúvio universal
Cá em baixo há demónios mundanos
Que vivem em eterno Carnaval

Mas um dia isto há-de ter fim
Mas um dia isto há-de acabar
Tudo será como no início
Quando não conhecia o mar

E quando a faca vier apontada
Eu respondo com um tiro de canhão
Porque neste tudo somos nada
E só alguns têm coração.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Uma Vez Que Seja

Tu que navegas ao sabor do vento
Sem outra rota que o que se deseja
Tu que tens por mapa o fimamento
Vem descobrir-me, uma vez que seja

E diz-me das viagens que não faço
Dos mundos cintilantes que antevejo
E traz-me mares de mel no teu abraço
Poeira de ouro velho no teu beijo

De ti não espero amarras nem promessas
É livre que te quero neste cais
Até que um dia em mim não amanheças
E te faças ao mar uma vez mais...

E mesmo nessa hora de perder-te
Sabendo que a magia se desfez
Terá valido a pena conhecer-te
E deslumbrar-me ao menos uma vez.

Ana Vidal

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O Meu É Teu

O meu é teu. O teu é meu
e o nosso é nosso quando posso
dizer que um dente nos cresceu
roendo o mal até ao osso.

O teu é nosso. O nosso é teu.
O nosso é meu. O meu é nosso.
E tudo o mais que aconteceu
é uma amêndoa sem caroço.

Dizem que sou. Dizem que faço.
Que tenho braços e pescoço
- que é da cabeça que desfaço,
que é dos poemas que eu não ouço?

O meu é teu. O teu é meu.
E o nosso, nosso quando posso
olhar de frente para o céu
e sem o ver galgar o fosso.

Mas tu és tu e eu sou eu
Não vejo o fundo ao nosso poço,
o meu é meu dá-me o que é teu
depois veremos o que é nosso.

Ary dos Santos

Ao egoísta que há em cada um de nós...

domingo, 2 de novembro de 2008

Tu Tens Um Medo

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

Cecília Meireles

Apenas Umas Palavras...

As lágrimas rolam pelo rosto da menina e ela pensa que o Inverno chegou ao seu corpo. Toda ela treme de frio (quem sabe se com medo também...) perante as duras pedras que a observam, sem nada fazerem, sem dizerem sequer uma palavra de calor que lhe possa confortar o coração endurecido. Pensa na vida que teve e na que pode vir a ter...tudo vai ser igual; o destino para ela nasceu com duas facas na mão e com um olhar de sangue (as lágrimas da tristeza são rios de sangue a escorrer num rosto já morto...), ela apenas queria o conforto de uma castanha de Outubro com uma cereja de Julho, queria sentir o amor dos poetas, a febre incontida de estar viva, e tem apenas o langor que lhe traz o vento. Ninguém muda a sorte de um destino já fechado, hoje ela é apenas feita de desalento e vive com o pensamento lá longe...em casas duras que não caem por serem feitas de paz. Chora doce menina...pensa que amanhã talvez seja tudo diferente, não custa ter esperança, basta perderes os teus olhos em algo mais longínquo, pensa para lá do mar, das serras, pensa que tens algo de teu para lá de tudo isto, afinal, também tu tens o teu pedaço de terra.

Recurso

Apenas quando as lágrimas me dão
um sentido mais fundo ao teu segredo
é que eu me sinto puro e me concedo
a graça de escutar o coração.

Logo a seguir (porquê?), vem a suspeita
de que em nós dois tudo é premeditado.
E as lágrimas então seguem o fado
de tudo quanto o nosso amor rejeita.

Não mais queremos saber do coração,
nem nos importa o que ele nos concede,
regressando, febris, áquela sede
onde só vale o que os sentidos dão.

David Mourão-Ferreira