quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

tudo aquilo que nós somos

abraçados.
ao nosso lado a Taylor e o Burton deslumbram-nos com o seu "Who's afraid of Virginia Woolf?".
todos temos os nossos medos, o meu é o de perder-te um dia, é o de nunca mais ter estas nossas noites, o andarmos por lisboa a caminho da nossa casa, o riso que a chuva nos provoca e as lágrimas a que, por vezes, a ausência nos obriga.
o mundo.
o mundo nas nossas mãos, tudo aquilo que vamos criando diariamente, tudo isto que é tão nosso e intocável, todos os nossos momentos como uma eterna partilha, o amor escreve em páginas brancas que nós nunca paramos de fornecer, como uma eterna máquina à procura do seu Álvaro de Campos.

e ao olhar em teus olhos de amêndoa amarga
sinto o pulsar do mundo e o que ele carrega
mas o peso singular que tem essa carga
é apenas o amor feito fruto, feito entrega

paraíso.
criámos o nossa paraíso na terra, e com o passar dos anos, esse éden vai crescer e edificar-se, ninguém pode destruir aquilo que construímos, a base é irredutível, tal como nós o somos.
abraçamo-nos nestas noites de Outono, sentimos o tempo a fazer-nos a cama onde nos vamos deitar e somos felizes...não a beleza idealizada da juventude, mas aquela que apenas pode ser dada a alguns priveligiados.

o vento põe o medo em teu rosto
e entrega-se à noite feito homem
em nós o amor é um fogo posto
feito de cinzas que nos consomem

daqui a dez, vinte, trinta anos, esta história vai continuar a ser escrita, ainda há muitas folhas soltas, muitas pondas por onde pegar, muito por onde escrever.
passamos sem medo pelo tempo, nada pode consumir o teu sorriso e a felicidade que existe em nós, nem o vento pode levar tudo aquilo que nós somos.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Saudades do Futuro

As saudades que tenho do futuro
já me trespassam o corpo, o sentir
do espanador, o pano sempre pronto
a trabalhar, a morte sempre à espreita,
o sangue servido em copos e bebido
até à última gota

As saudades do futuro vão-se
transformando em presságios de
acontecimentos, em chocolates cobertos
de naftalina, vestidos da Senhora
cheios de buracos feitos pelas traças

As saudades do futuro bebem um chá
que cheira a incenso e traz com ele o
aroma das madrugadas em que nos vemos
à janela...talvez que esta seja a noite
em que alguém vai dar pela nossa presença

Saudades do futuro e tudo transformado
para que da nossa noite nasça um novo dia,
onde o sol desponta na nossa cara e onde
a lua espera para nos fazer a cama

Lençóis de vento
e camas de palha...
de tudo as criadas fazem uso.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Rainhas da Morte

Sempre fui a mais forte por ser a mais velha e contudo, sem te ter ao meu lado não sou nada. Não me deixes entregue à minha sorte, não me deixes sozinha neste sótão onde os fantasmas teimam em visitar-me e onde todos parecem ter a tua cara. Quando olho ao espelho vejo o rosto das duas, porém as rugas são todas minhas, tu mantens a juventude que nunca te vai abandonar e que faz os homens olharem para ti. Dá-me um pouco do amor que recebes e talvez eu fique menos amarga, talvez alguém me queira provar às duas da manhã quando passeias pela casa com as roupas da Senhora. Fazemos parte uma da outra, como se tivéssemos nascido ao mesmo tempo do mesmo ventre, duas filhas de um demónio ainda sem nome e preparadas para cometer qualquer crime. Mas tenho uma certeza em mim...se alguém me tivesse amado alguma vez na vida, eu nunca faria o que estou disposta a fazer. Eu sei que tu me amas, mas falo de outro amor, falo de um amor que vá para lá daquele que podemos ter, daquele que conseguimos. Entrega-me, também tu, a tua vida. Como se fosse um copo de vinho feito do teu sangue, algo que eu não possa recusar. Bebe-me também a mim de um só trago, e tenta não engasgar-te, afinal as minhas veias são feitas do mesmo material das tuas e podes sofrer pequenas convulsões. Abraça-me como se fosse a primeira vez, deixa-me sentir um aconchego que nem em criança conheci, eu juro que se tivesse amor seria uma pessoa melhor, mas ninguém olha para mim, todos me rejeitam e baixam os olhos quando eu passo, não é fácil encarar um demónio em carne e osso. Somos sublimes, temos algo de divino em nós e preparámos o melhor altar que este mundo já conheceu, rainhas da morte por direito e conquista! A nossa espada são os escarros que nos saem da boca, o desprezo pela ordem vigente e a liberdade uma regra nascida em nós. Não nascemos para ser pão, mas sim a semente que nunca cresce e que estraga tudo aquilo que está à sua volta, somos o flagelo que não tem fim nem medida. Abandonem os corpos à nossa passagem e acreditem que se formos servir na vossa casa, não haverá vestígios de felicidade que vos possam salvar. Nascidas do escuro e entregues à luz, dois corpos à deriva da vida, duas nascentes sem terem direito a rio.
Podem sorrir; depois...iremos morder os vossos lábios.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Fado da Pedrada

quis fazer do amor um charro
quis que ardesse em minha posse
mas fumado não o agarro
talvez fosse do cigarro:
fez-me tosse, fez-me tosse

e um dia que estava só,
tão só que não vou contá-lo,
só sei que metia dó,
quis o amor desfeito em pó
e pus-me então a snifá-lo

noutra noite vil de luto
após triste despedida
preparei um crack em bruto
e do amor levei um chuto
que me deu cabo da vida

e o meu ser assim se joga
numa contínua desordem
pobre amor, em mim és droga,
que me pedra e perde e afoga,
não me acordem, não me acordem.

Vasco Graça Moura

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O Teatro no Feminino

Eunice Muñoz, Maria José Paschoal, Custódia Gallego.
Todas elas estão a fazer retratos impressionantes e imperdíveis. Mulheres de força, de coragem, mulheres racionais a quem a emoção levou mais longe.

Eunice retrata a jornalista Joan Didion, sozinha em palco, dá-nos o retrato de uma mulher racional que, por momentos, é avassalada por uma terrível emoção. Ao longo de uma hora e dez minutos viajamos com Didion pelas suas memórias, pelos seus "mortos", pelo seu passado e por aquilo que é o seu presente e será o seu futuro, um desfolhar de memórias que não tem fim. Sentimos uma angústia ao vermos aquela mulher, frágil, a expor a sua vida perante nós, sem constrangimentos, apenas com o intuito de fazer uma catarse daquilo que foi a sua vida. Em palco, a grandiosidade de Eunice Muñoz, as frases pousadas, o tempo suspenso, a atenção ao que a rodeia e a representação com a emoção mesmo ao lado.

Maria José Paschoal oferece-nos "Amália em Nova York". Texto (por vezes) inspirado de Vicente Alves do Ó e para além da actriz podemos contar com Fred Astaire. O sítio já nos proporciona algo de especial: Museu do Fado. Num pequeno auditório, Maria José Paschoal dá-nos uma Amália que é um mito, imaginamos como foi a sua estadia em Nova York, quando decidiu fugir de Portugal por sentir-se demasiado apertada num país que sempre teve o cuidado de asfixiar quem cá está. O texto consegue ser fluido, embora algumas partes sejam um pouco forçadas, algumas frases são bem conseguidas mas outras quase que roçam uma certa demagogia provinciana. A interpretação, essa é de composição, os gestos, a voz, aquele cantar dos últimos tempos, quando a voz já não acompanhava o mito. O princípio da peça é dos mais bonitos a que já assisti, a imagem de Maria José acompanhada pelo "Cansaço" de Amália. Voz e corpo, actriz e mito, braço dado.

Por último, Custódia Gallego. Penso que não exagero ao dizer que é a interpretação do ano e, arriscava-me a dizer, o texto do ano na dramatúrgia portuguesa. Custódia é visceral no papel de uma mulher que perde o filho cego devido a um marido bruto e que faz da sua mulher um objecto sexual. Sentimos o sangue que anda por perto, o ambiente é quase que onírico, estamos numa casa que não tem ninguém por perto, enfiada no meio de um bosque e por companhia...esta mulher que agora vai ser feliz! O texto de Abel Neves é certeiro, corrosivo, escrito com paixão, e não podia ter encontrado melhor actriz do que Custódia Gallego, que se entrega como cão a um osso a um texto escrito para si mesma, trata-se de um tratado de representação (e penso que não exagero); ao longo de hora e meia podemos assistir a uma actriz que dá tudo o que tem em palco, sem o mínimo constrangimento, uma mulher que carrega o peso de um filho morto e que anda à mercê de um marido que lhe bate mas de quem ela gosta (retrato fiel feito por Abel Neves ao quotidiano de muitas mulheres), assistimos mesmo à erupção de um vulcão feito mulher. A encenação de João Grosso, é eficaz mas um pouco exagerada em certos aspectos cenográficos, mas até nisso Custódia se desenvencilha, correndo de um lado para o outro num chão flutuante que até o andar lhe dificulta. Que todos corram à sala Estúdio do Teatro Nacional ver uma das peças do ano.

Bom Teatro!

sábado, 21 de novembro de 2009

Pobre Cantor

no dia em que atiraram a rosa
do balcão do Coliseu, foi no dia em
que o cantor se engasgou no último
refrão

a plateia fingiu não ter notado
mas o homem da percussão fez uma
cara que não deixava ninguém indiferente

depois o instrumental continuou
enquanto o pobre cantor bebia uns
goles de água (como se a cortiça em
que a sua garganta se tinha tornado
tivesse alguma resolução)

da plateia, o público tentava mostrar
o mesmo entusiasmo, mas sabiam que nunca
mais iriam ver aquele homem cantar, e então
de um momento que poderia ser dos mais comuns,
nasceu um momento divino, pois tiveram a certeza
de que nunca mais iriam ver aquele homem cantar

no final, os aplausos foram tão grandes que
o pobre cantor desmaiou, e caiu mesmo em cima
de uma menina de dez anos que o via da primeira fila

a mãe acompanha a menina no hospital, não
deixando a cama onde a sua semente repousa,
à espera de melhores dias

ao enterro do pobre cantor, apareceu apenas o seu
manager, contudo, no seu rosto, adivinhava-se o desagrado
pelo facto de ainda ter dívidas para pagar
daquele que agora estava dentro de um caixão

Caronte não pediu ao pobre cantor
que cantasse uma balada...
é que não tinha trocos.

sábado, 14 de novembro de 2009

No Ventre Deste Poema

há um destino no fado
que nunca foi encontrado
em cantar a saudade permanente
que tem aquele que sente
a vida agarrada à morte

todo o destino é traçado
escrito em frases, bem marcado
em cada linha de fado
que nasce da mão dos poetas

e há quem tenha estrelas nos dedos
quem desvende os segredos
daqueles que transportam na alma
a calma ambígua que é viver

e há quem tenha medo da morte
cuspa na cara da sorte
por pensar que a vida tem a
exacta medida de uma equação

no fim, ficam as rosas
as únicas que contam a história
de um grande amor por viver
mas que já começou a crescer
no ventre deste poema.

domingo, 8 de novembro de 2009

Mal Nascida

mal nascida
pelo ventre que não te quis
cresces entre os currais
entre o nojo dos animais
que te consomem a vida

não sabes do amor de mãe
e tiveste um pai que amaste
uma vida que mataste
sem te darem arma para a mão

esperas um irmão para vingar
essa morte sem amar
que a tua mãe veio a concretizar
sem te pedir autorização

o teu irmão morreu na cama
só, como os pobres a que
ninguém ama e a quem se
recusa o albergue

o teu padrasto bate-te
perante a brandura de uma mãe
que te quer casar com ninguém
pois ninguém casa quem nasceu
para viver sozinha

caminha...caminha...
caminha por entre os animais
os teus unicos jograis
no meio de tanta maldicência

demência
dizem ser o teu nome do meio
mas és mais lúcida que a vida
pois do teu ventre nasce a seiva
do ódio nunca concretizado

rasga o pó do caminho
foge de casa sem destino
e tenta encontrar-te de novo
vai de Boticas para Argos
carrega o peso dos teus encargos
como quem leva penas às costas

procura uma nova vida
longe do que conheces
e faz da tua partida
a festa que mereces.

a partir de "Mal Nascida" de João Canijo.
Uma Electra destes tempos...

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Pelo Fumo Do Teu Cigarro

pelo fumo do teu cigarro
escorre as veias de uma canção
feita da paixão sem ancestrais
que os quatro pontos cardeais
constroem ao toque da tua mão

pelo fumo do teu cigarro
há o sebastianismo escondido
e todo o mito feito verdade
como se as penas da saudade
fossem apenas as dores do infinito

pelo fumo do teu cigarro
há o universo desconstruído
o silêncio das catedrais
o rugir dos ferozes animais
que se escondem sem ruído

pelo fumo do teu cigarro
há deuses da matança
que comem sonhos desfeitos
desferem golpes a peitos
já cansados de serem criança

pelo fumo do teu cigarro
há tudo aquilo em que acredito
e na beata que deitas fora
o soluçar de uma nova aurora
é um raiar de sol do meu peito aflito.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Andei Pelos Telhados

andei pelos telhados
como um gato vadio
que não encontra a sua fome
cantei à lua meus pecados
e num intenso desvario
perdi pelas ruas o meu nome

fiz uma arma de saudade
percorri toda a cidade
à procura de memórias
de mim nada encontrei
andei, mas em tudo errei
não encontrei minhas histórias

vivo agarrado à esperança
de encontrar a criança
que um dia já existiu
mas é tudo coisa vã
porque eu sei que amanhã
da noite...só me resta o frio

domingo, 1 de novembro de 2009

Ferida Aberta

Noite sem estrelas no céu
A saudade anda à solta
O pecado é meu e teu
Noite sem estrelas no céu
Ciúme que já não volta

Condição das condições
Viver a vida amarrado
No peito as palpitações
De quem por entre canções
Vai descobrindo o seu fado

A dor é mágoa sentida
Ferida aberta pelo tempo
É nas dores da nossa vida
Que a cara já envelhecida
Vai descobrindo o sentimento

Trago varandas no peito
Trago dores pela calçada
E não encontro o jeito
De dar o incerto por feito
De ser a voz já cansada.

As Noites Mais Belas

dá-me as tuas mãos de carmim
flores feitas para mim
pelo toque de qualquer deus
e eu choro na soleira
de uma porta sem ombreira
choro pelos pecados meus

a criança está perdida
chora dores da sua vida
a mágoa que o peito sente
a tristeza está guardada
numa mão sempre fechada
para quem na verdade mente

nao vês que a dor
é algo que se sente
quando a cabeça
ao peito mente

não vês que a paixão
é uma condição
para quem nasceu
com deus na mão

esquece as flores no teu regaço
volta-me a dar o abraço
que aquece as noites frias
eu faço um poema para ti
com as minhas mãos de carmim
luvas que eu tenho e que tu tinhas

escondo os dedos no meu corpo
afago o beijo morto
que existe na cara da morte
e tento rir do meu destino
aquele, que desde menino
faz-me pensar na sorte

não vês os meus olhos
choram a doce mágoa
que vai num rio
de lodo, sem água

não vês nas estrelas
as mais cintilantes
as noites mais belas
dos amantes

sábado, 31 de outubro de 2009

"...o que me torna firme na minha opinião, é a desigualdade dos actores que representam com a alma. Não podeis esperar nenhuma unidade da sua parte; a sua interpretação é alternativamente forte e fraca, quente e fria, aborrecida e sublime. Amanhã falharão no passo em que hoje foram excelentes; em contrapartida, serão excelentes naquele em que tinham falhado na véspera. Enquanto que o actor que interprete a partir da reflexão, do estudo da natureza humana, da imitação constante de qualquer modelo ideal, a partir da imaginação, da memória, será um, o mesmo em todas as representações, sempre igualmente perfeito: tudo foi medido, combinado, aprendido, ordenado dentro da sua cabeça; na sua declamação não há nem monotonia, nem dissonância...se há qualquer diferença de uma representação para outra, é normalmente para vantagem da última..."

DIDEROT

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

20h08m

20h08m

ouço o Espelho Quebrado da Amália e o veludo torna-se palpável; a garganta torna-se como que um corpo e as palavras de David Mourão-Ferreira são como as facas que o Manuel Alegre tão bem soube descrever.

horas de erudição e poesia acompanhadas com uma boa melodia do Oulman, um jantar servido sem termos pedido fosse o que fosse; para sobremesa temos a tristeza e a melancolia que existem nesta voz, o café é a solidão das letras aqui cantadas.

"em mim foi mais violento...o vento"

tema seguinte...anda o sol na minha rua...Mourão-Ferreira e Fontes Rocha...a eterna guitarra do Fontes Rocha, a viola do grande Martinho D'Assunção...há sempre quem apareça para jantar, estes são da casa...o Fontes, o Carlos Gonçalves, o Paquito, o Joel Pina, o Jorge Fernando, o Jaime Santos, o Carvalhinho, tantos outros...

Hoje a convidada é Amália. Emudece o tempo, lá fora está frio...aqui choram guitarras a dor nunca sentida. Lá vem a velha "Tirana"..."a arremendar a jaqueta...com pedaço de cortiça...julgando que era baeta...oh! Tirana! Olé Tirana" é a voz de um povo que se ergue, os cantares populares são as vozes de todos nós em uníssono. Pobre Tirana queimada no forno e apenas com a mão de fora (como somos trágicos, até na mais simples canção popular).

A tragédia...sempre a tragédia...até quando não pensei escrever sobre ela; cá está outra que também aparece sem ser convidada. Talvez por isso a voz da Amália seja a voz de uma Electra portuguesa. Contudo...
"cheira bem, cheira a Lisboa"...

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Fado Final

com o som das folhas caídas,
levadas p'lo vendaval,
surgirá um novo Outono,
meu vago e manso final

vou dar à terra primeiro
as brancas mãos cor de cera
e ao vento caminheiro
dar os meus cabelos de hera
e os meus segredos de amor
vou dá-los à Primavera

tristes são meus olhos tristes
vou levá-los ao mercado
das fantasias desfeitas
onde mos tinham criado

deixo à alma os meus tormentos
p'ra que os apague nas ondas
deixo ao vento os sofrimentos
dum caminho de mil rondas

com o som das folhas caídas
arrastadas pelo vento
será criado outro fado
livre das grades do tempo.

António Feijó Teixeira

domingo, 25 de outubro de 2009

O Tempo Não Perdoa

Quero perder-me de mim
E pensar que foi assim:
A vida num só momento
Perder-me pelo trivial
Por tudo aquilo que é banal
E se esconde no sentimento

Quero fugir do que fui
Encontrar o que serei
Ter a coroa da felicidade
E depois encontrarei
Por sombras que já nem sei
A minha manta de saudade

Quero encontrar o que perdi
O que jaz morto mesmo aqui
Nestes pés que pisam o vento
E por entre a velha lembrança
Lembrar ainda a criança
Que se perdeu sem intento

Encontrar as memórias
São apenas velhas histórias
De quem já não tem o que contar
E depois chora sozinho
Pois o homem já foi menino
E o tempo não lhe pode perdoar.

Ministras

Nunca ao longo deste tempo em que mantenho este espaço na internet falei de política (pelo menos que eu me recorde) e se o faço agora é por motivos de força maior. Faço-o para louvar a escolha de Gabriela Canavilhas para o Ministério da Cultura, primeiro por ser uma mulher (e também eu acredito que é nelas que está o possível futuro das nações), depois por ser uma artista e estar ligada a este mundo das artes em que todos gostamos de estar incluídos, e em terceiro (e talvez o maior motivo de regozijo) por não ter qualquer peso político; e talvez este seja o argumento da discórdia porque, pelo que tenho lido na imprensa, muito se fala da falta que fazia alguém com peso político numa pasta como a Cultura, mas eu penso que qualquer pessoa bem informada sabe o que esses cidadãos com peso político fizeram por esta pasta: NADA. É de louvar que a escolha tenha recaído numa mulher independente e com provas dadas numa situação tão díficil como a vivida pela Orquestra Metropolina de Lisboa, não precisamos de uma pessoa com peso político mas com peso cultural e que saiba minimamente o que é a Cultura com c maiúsculo.

Gratas memórias também tenho de Isabel Alçada; só tenho a dizer que espero que continuem a ser gratas.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Cavaleiro

E galgou fontes por onde nunca andou
Foi chamado de cavaleiro das tempestades
Por entre os sargaços ele ainda amou
Tudo aquilo que é feito de saudades

E correu por memórias de vidas passadas
E foi a lembrança que ainda não nasceu
Sonhando com aquelas horas desesperadas
Em que um sonho ao nascer já morreu

Esperança que foge por entre os dedos
Cavaleiro do tempo já passado
Os teus medos ainda são os nossos medos
Mudam-se os tempos mas não muda o teu fado.

domingo, 18 de outubro de 2009

Quase Um Anjo / Fado Vadio (Má Fama)

Sei que já foste gaivota
És tão antiga a voar
Sabes da ilha remota
Que só se encontra no mar
Leva-me ave do destino
Faz de mim o teu poente
Tu que és quase, quase um anjo
Faz-me perto de ser gente

Sei que já foste gaivota
Candeia de um pescador
Amante de caravela
Aquele voo incolor
És um anjo sem andor
À procura de uma estrela
Quase nada, quase dor
Quase vão de uma janela

Sei que já foste gaivota
Sei de cor por onde andaste
Sei de cor todos os mapas
Do coração que traçaste
Leva-me ave do destino
Faz de mim o teu poente
Tu que és quase, quase um anjo
Faz-me perto de ser gente

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já andei pelos telhados
para me vingar do céu
abri feridas na lua
mas de todos os pecados
aquele que me perdeu
foi demorar a ser tua

fui de viela em viela
bebi água da chuva
dormi onde me acolhiam
tive casas sem janela
mais de mil vezes viúva
dos amores que me morriam

já marquei homens dos tais
roguei pragas a quem passa
ganhei fama de vadia
como os gatos dos quintais
fui caçadora e fui caça
mas só queria companhia.

João Monge

palavras para quê? quem escreve assim nasceu de uma estrela e chegou à terra com uma caneta na mão

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Varina do Mar

Saia curta mas a direito
Leva a tristeza ao peito
Como se fosse um condão
Varina desta cidade
Ainda vendes a saudade
No grito do teu pregão

Canastra com sardinha
A tua dor é a minha
Partilhamos a amargura
Procuramos o sossego
Por entre um aconchego
Encontramos a ternura

Somos o hino da liberdade
No mar temos a nossa cidade
Nele tens o teu ganha pão
Levantas-te de madrugada
No soar de cada alvorada
É onde nasce a nossa canção.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Janela Aberta

Numa esquina de uma cidade
A pedir com a mão estendida
Está a dor mais a saudade
São pedintes da cidade
A pedirem esperança à vida

Sobre os pés uma calçada
Com basalto de tristeza
Sobre os pés não têem nada
Apenas a dor magoada
Que encobre a pobreza

Uma manta cobre a dor
Que existe sempre encoberta
Ainda há quem espere amor
Por entre peçados de dor
Ainda há uma janela aberta.

A Nossa Velha Infância

Despes a mágoa perante o corpo nu
E alguém te olha da varanda
Não reparas que esse alguém és tu
A quem a mágoa sempre levanta

E a dor que tinhas em ti contida
Esbraceja do corpo já usado
Liberta os grilhões e grita à vida
Alguém há-de ouvir-te no outro lado

E procura um sinal, um contratempo
Procura tudo o que está numa quimera
Talvez no infinito de um momento
Vejas as estações à tua espera

E sê a folha viva, outrora morta
Grita por entre o vento e a lembrança
E vais ver que se há-de abrir a porta
Para aquela que foi a nossa velha infância.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Mágoa Contida

A tua vida na minha mão
Um só coração a bater
Acreditar que de cada ilusão
Há uma realidade a nascer

A simplicidade da vida
Na sombra que nos segue
A saudade esquecida
Pela dor que nos persegue

E da mágoa contida
Fazer um grito alcançado
De toda a dor infinita
Terminada num fado.

sábado, 3 de outubro de 2009

Sombras da Ilusão

Despiu os véus que lhe cobriam o corpo
E o pudor caíu em marés de nudez
Viu-se ao espelho, e que espanto...corpo morto
Morto pela saudade sem revés

Chorou lágrimas que não tinha
E a mágoa fez-se mais tarde em pó
A criança que foi já não é minha
Triste imagem em mim a causar dó

Hoje as naus têm outro rumo
Já não vão para Ítaca desejada
A saudade, essa fez-se em fumo
E fez do deserto uma praia povoada

Pobres sombras da ilusão perdida
Vultos que encobrem a solidão
Perdemos tudo, adeus à vida!
Que me deste por castigo a paixão.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Stripper

Para lhe dizer a verdade a minha filha anda na vida, na má vida, está a perceber? Dorme com uns, vai com outros, passeia ainda com alguns e não lhes dá nada...olhe, eu já não sei que para mim estas histórias fazem-me muita confusão. O que mais me custa é ela não ter um emprego, andar neste corre corre de homem para homem e...você percebe, isto não é uma vida normal para ninguém! Quando eu cá não estiver o que é que ela vai fazer da sua vida? Não vai ter ninguém para a ajudar, eu bem vejo como ela, por vezes, anda apertada de dinheiro, quando eu me for ninguém lhe poderá valer, terá de se safar sozinha e não sei se vai aguentar-se, ela não sabe fazer nada, nunca trabalhou na vida! O seu corpo vai envelhecer, e ela não percebe isso, ela não percebe que não pode passar a vida inteira a despir-se todas as noites, porque chegará uma noite em que não terá ninguém a olhar para ela, apenas caras que se viram para o lado. Nenhum de nós consegue manter a juventude, ninguém consegue eternizar-se, nem as estrelas de cinema, olhe como elas envelhecem e vão desaparecendo aos poucos, a maioria. É muito triste acabarmos as nossas vidas sozinhas, eu só queria que ela encontrasse alguém, mas alguém que gostasse dela, que puxasse por aquilo que ela tem de melhor, fizesse dela o que eu nunca consegui fazer, alguém...alguém digno, percebe? Longe de mim não amar a minha filha, amo com todas as minhas forças, saiu de mim, vou amá-la para sempre, percebe? Mas queria vê-la com um futuro assegurado, com alguém ao lado. Eu bem sei o que foi a minha vida e não queria que a minha filha passasse pelo que eu fui obrigada a passar, muitas dificuldades me apareceram ao longo dos anos, e não as desejo a ninguém! Carregar uma filha aos braços, sozinha, sem ajudas fosse de quem fosse, sem um familiar a quem pedir auxílio, você nem imagina o quão complicado foi dar-lhe vida, retirei vida a mim para a doar à minha filha, e não me arrependo, não! Mas queria que ela seguisse um rumo diferente, queria...queria netos. Queria que o meu sangue continuasse a correr por outros corpos, queria que tudo não acabasse uma geração a seguir à minha, queria poder brincar outra vez, queria ter o tempo que nunca tive para brincar. Nunca fui muito de sorrir, para dizer a verdade também sempre tive uns dentes feios e vergonha de os mostrar, mas por vezes queria soltar um riso sem receios que alguém me esteja a olhar para a boca. Queria sentir a felicidade, por um momento que fosse, apenas sentir-lhe o gosto, nem que fosse por um momento...ah, já acabou o nosso tempo, não é? Pois...para a semana eu volto, claro...quarenta euros, já sei. Já não tenho o meu corpo à venda, sabe? Já ninguém me compra, estou apenas à espera que os bichos me comam...

Fado Da Triste Stripper

Unhas grandes e de vermelho pintadas
Um cigarro sem ter filtro, a esfumar
Na TV duas crianças raptadas
E o inspector, que nada tem a declarar

O seu peito arredondado, quase emerge
À revelia da blusa, que o acolhe
O decote sinuoso não protege
O erege recurvar para quem o olha

Há baton a mais naqueles lábios ternos
Que na chávena de café, ficam marcados
Os joelhos que se cruzam, são infernos
Para quem espera ainda vê-los descruzados

Em Belgrado estão os pais, num prédio antigo
Manda cartas de saudade e algum dinheiro
Está a aprender o português com um amigo
A Dolores, que é um traveste brasileiro

Faz do strip, a sua arte e o seu brilhar
Ao desejo dos olhares mostra desdém
Despe a roupa, hábil jogo de encantar
Dá-se a todos, mas não a dá a ninguém

Entre o rimel e as sombras sobre as celhas
Nos seus olhos há um luto e, certamente,
Suas formas hão-de um dia estar mais velhas
Quando a vida a for despindo cruelmente.

Jorge Fernando

Lamento Sem Abrigo

Quando a noite promete lançar-me na senda do frio
Quando a chuva se atreve no rosto gelado e cansado
E a névoa da montra reflecte meu olhar vazio
Porque a olho e não vejo senão o rosto do pecado

Quando a calça molhada pela água que o vento me atira
E o corpo reclama a atenção que o pensamento nega
É que eu sinto que às vezes a alma de mim se retira
E suspensa só espera um sinal para a última entrega

Quando o asfalto molhado recusa o descanso breve
E o cansaço me toma nos braços das sombras que assomem
A criança que fui volta a mim, e os sonhos que teve
São a voz do menino que pede: não queiras ser homem

Quando a angústia gastar o meu tempo e a minha coragem
De não querer nem sequer resistir ao caminho traçado
Não há chuva, nem vento, nem frio que me impeça a viagem
E eu serei apenas a lembrança de um triste pecado.

Jorge Fernando

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O Desespero

Olha filha, trago-te aqui o teu vestido de noiva, que é uma beleza hã! O senhor Jorge teve a escolher o melhorzinho que lá tinha para ti, até nem está muito sujo portantos vê lá bem o cu homem teve de procurar, não é? É que é memo lindo pá...é assim é prós castanhos, mas também não se pode estar à espera duma cor muita linda duma coisa que antes de ti teve batatas lá dentro...sim, batatas, filha!...Oh, miúda!! Tu nã sabes o que são batatas?...Oh, filha, o qué que tu queres, pá? Gorda como tás só te podia arranjar um saquinho de batatas, e olha, muito simpático já foi o homem que arranjou-te aqui umas mangas à maneira, olha para isto, parece feito pela outra que tem o nome do ditador...quem? És mesmo insculta pá!! A Mama Salazar, então não sabes quem é?...Ana? Ah...pois, se calhar é ana e não mama...bem, se ela mama ou não mama também é lá com ela e ninguém tem nada a ver com isso. Mas agora o que interessa é o teu vestido, diz lá se não é bonito...oh, filha, a gente põe uns laçarotes aqui de lado e isto até passa por bonito, a mãezinha vai à dona Fátima e põe-te aqui uns laços porreiros, assim a puxar prós vermelhos...vermelho e castanho não fica bem? Ai, tu és mesmo atrasadinha às vezes, não és? Então há lá coisa mais na moda que misturar os vermelhos e os castanhos?...Oh, mulher, prontos! A gente mete uns laços pretos e assim já tens fato para funerais e tudo...olha, não digas isso porque a tua tia Crementina tá mais para lá do que para cá, tás a ouvir? Ela não está nada bem, mas também aquilo é de misturar a coca com o red bulla...a coca, sim, não sabes que ela gosta de coca?...Qual coca? Mas tu hoje tás mais parva que nos outros dias, olha que hoje estás a esforçar-te, então não se está a ver que é aquela coca peganhenta?...Peganhenta, sim, aquilo não cola, não é coca-cola? Então se cola é porque é peganhenta!!! Tu não me enerves pá, daqui a bocado casas-te só com uma fita a tapar-te as partes baixas e prontos...eu tou lá para estes nervos, eu que sou uma mulher doente ainda te ofereço um vestidinho qué lindo, pá! E não digas que não é que dá-me já aqui uma parapelegia no rim, não digas que não é!...Eu também gosto muito de ti filha, a sério que gosto...dá cá um beijinho, vá...prontos...então...oh!!...larga isso!!...Não metas isso na boca Esmeralda!!...Larga a porra do chocolate!...Oh minha ganda lontra, tu larga-me isso!!...Raios ta partam se não hás-de ficar um leitão a lambuzar-te dessa maneira...mas que mal fiz eu a Deus??

Eléctrico Amarelo

Sentei-me ao lado do tempo
num eléctrico amarelo
senti-me um rei em viagem
sobre rodas num castelo

Da janela os jardins
eram Legos fabulosos
Com faunos e arlequins
e arcanjos preguiçosos

Uma voz disse cordata
"O bilhete por favor"
Pareceu-me que era de prata
o alicate do revisor

Depois tudo se sumia
ao chegar ao meu destino
o passageiro crescia
e deixava de ser menino

Não vi o tempo ao meu lado
nem dei por ele descer
ia no passeio apressado
rumo áquilo que vou ser

Lá vai o eléctrico lá vai
é bonita essa aguarela
menino ao colo do pai
dizendo adeus à janela.

Carlos Tê

domingo, 13 de setembro de 2009

Boneco de Palha

O boneco de palha morreu no dia em que ele se lembrou de fazer uma fogueira; o pobre homem nunca pensou que as chamas conseguissem alcançar o boneco, mas a verdade é que o vento foi mais forte que os seus braços e não lhe deu tréguas por um momento que fosse. O homem ainda hoje diz que assistiu a um milagre, pois jura de mãos erguidas que o boneco chorava enquanto as chamas o consumiam, pela face do espantalho (embora ele gostasse de ser tratado por boneco de palha) algumas lágrimas, bem gordas por sinal, faziam questão de tentar apagar aquele fogo que se espalhava por onde podia. O boneco já tinha alguma idade, iria morrer de alguma maleita mais cedo ou mais tarde, mas nunca ninguém deseja um fim destes, com tudo a arder, tudo feito em cinzas, tudo o que já foi a deixar de ser e a voltar à forma inicial, pó e mais nada. O homem sentou-se a chorar ao pé dos botões que serviam de olhos ao boneco e lembrou-se de como ele tinha nascido, de como lhe tinha custado cada bocado de feno que teve de carregar até meio do monte, e agora tinha apenas os restos daquele que tinha sido a sua companhia durante as mais variadas tardes. Tinham passado juntos por chuvas, por dias abrasadores, até por dias de alguma tempestade com o vento a não querer dar descanso, mas não tinham resistido aquele golpe fatal do destino, quando as chamas vêm não pedem licença, levam tudo o que encontram e não dizem nada, e se for preciso voltam a aparecer algum tempo depois para levar o que ainda resta. Faltavam as forças ao homem, sentia um vazio, como se tivesse perdido algum familiar, como se tivesse perdido um companheiro de vida, como se já não lhe restasse nada com que se contentar. Afeiçoamo-nos às coisas e nunca pensamos que as podemos vir a perder, que o seguro rapidamente torna-se inseguro (afinal é só acrescentar duas letras e já está). Tinha a certeza que o boneco tinha sido feliz, e isso era o único consolo que ainda lhe restava, isso e uma casa vazia de onde já não tinha nada para avistar da sua janela; todos os dias, quando se levantava, lá ia à janela do quarto ver como estava o boneco, e ele estava sempre de pé, firme no meio do monte, um guarda sem precisar de falar, a manter o respeito apenas com a cenoura que tinha a fazer-lhe de boca. Era o fim de um ciclo, o começo de outro...a vida é ciclíca e quanto a isso não há nada a fazer. O homem levantou-se e seguiu para casa, de manhã havia fardos de palha para carregar.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Ninguém Limpa As Lágrimas A Quem Chora

A menina chorava à janela todos os dias, não sabia porque chorava e também não tinha interesse em saber, gostava de sentir as lágrimas a cairem-lhe pela cara, tinham o estranho gosto do mar e, por momentos, ela podia sentir-se como uma onda. Ninguém reparava na menina que chorava à janela, há já muito tempo que ninguém reparava na dor que pairava por aquela casa, já se tinha tornado um hábito ver os seus habitantes com os olhos rasos de lágrimas, era um cantochão que teimava em nunca acabar, uma dor que não podia ter fim, já fazia parte da família e era sempre convidada a jantar à mesa, como um formal convidado. A menina tinha uma boneca que apertava contra o peito quando sentia a dor mais intensa, nunca lhe tinha dado um nome, não precisava que aquele seu brinquedo tivesse um nome, apenas queria apertá-la contra o seu peito e sentir que tinha alguém com ela, ningúém gosta da solidão e ela tinha de arranjar uma companhia para não enlouquecer por entre as suas lágrimas; a boneca não era muito bonita, tinha uns longos cabelos pretos e uns olhos castanhos, mas não aquele castanho simpático, côr de avelã, era mais um castanho de sujo, de impuro, algo que trazia uma energia negativa, mas no entanto...no entanto aquilo era apenas uma boneca e a sua aparência não interessava para a menina, era a sua companhia e pronto, era mais que o suficiente. Melhor ainda ela não ser bonita, assim se alguém aparecesse não ia reparar na boneca mas sim na menina; também ninguém aparecia, a casa já não tinha visitas há muito, encontrava-se encerrada em si mesma, uma casa feita de sombras e fantasmas, onde os passos que se ouviam a meio da noite faziam-nos viajar para outro tempo, tempos em que naquela casa havia festas até altas horas e enconbria-se a tristeza em taças de champanhe. Ninguém limpa as lágrimas a quem chora, ninguém liga aquilo que não conhece e ninguém podia adivinhar o coração desesperado daquela criança, o coração desesperado por gritar mas no entanto, tendo de suportar uma garganta que não se queria abrir, apenas ficar encolhida dentro do corpo humano. O medo nunca se mostra, vive por detrás das vidraças mais encobertas e nunca lança um sorriso para a rua, no outro lado da janela, lá em baixo, no jardim, existia um baloiço que nunca tinha sido utilizado, claro que a menina, já por várias vezes até, tinha pedido para ir andar um pouco nele mas sempre lhe foi negada a vontade, a menina tinha era de ficar fechada no seu quarto e pronto, se quisesse balançar tinha os seus sonhos para fazê-lo. E ela sonhava...sonhava muito, o mais que podia, entrava noutro mundo de cada vez que um sonho a assaltava, era por isso que dormia até tarde, também não tinha nada para fazer caso acordasse cedo, tinha sempre a sua janela à espera e uma lágrima pronta a cair. Esperava que um dia alguém viesse e lhe trouxesse uma flor, qualquer flor, tinha um vaso pronto há já algum tempo para receber esse presente de alguém, queria dar um pouco de vida aquele quarto mas apenas com uma flor, nada mais do que isso, na vida nunca se deve cometer exageros, sempre tudo com ponderação, pelo menos era isso que lhe diziam de cada vez que a viam. Gostava de amar alguém, que alguém a ensinasse a amar, só sabia da existência do amor por um velho livro que escondia debaixo da cama, mas parecia tão bonito, parecia tão fácil amar alguém, e até o beijar parecia ser simples, o encostar os lábios e sentir a respiração da outra pessoa, tudo isso a intrigava e fascinava, além de que fazia ela querer saber mais e mais, mas nunca conseguiu ir até à biblioteca da casa, apenas tinha encontrado aquele velho livro esquecido em cima de uma cadeira. Ela sabia que um dia tudo ia mudar, um dia ia sentir vontade de sorrir em vez de chorar e a partir daí mais nenhuma lágrima iria percorrer o seu rosto, não sabia se esse dia estava perto ou longe mas também não interessava, ela tinha tempo...e a sua boneca também.

sábado, 29 de agosto de 2009

À Janela

Cada vez que eu olhava para o lago esperava o barco que ia trazê-lo; para dizer a verdade isto não passava de um sonho que me acompanhou a juventude toda, para ser sincera nem precisava de ser um barco, ele poderia vir num cavalo ou até numa mota (embora esta ideia da mota não tenha metade do romantismo de um homem a cavalo). Às vezes até abonecava-me um bocado, afinal de contas queria estar apresentável no dia em que ele me aparecesse, não podia ser surpreendida porque depois ele podia não se apaixonar por mim. Isto não passam de sonhos, apenas isso, sonhos que eu fui acalentando durante a minha vida toda, ideias que nasceram dos romances que eu nunca li e dos quais apenas vi as capas, ideias vindas dos filmes com os actores da moda, e de alguns filmes antigos também, ainda estremeço um bocado quando vejo a imagem do Brando, talvez trema por ele me fazer lembrar o meu pai, por ter os olhos dele e até algumas parecenças físicas, mas também isto pode apenas ser a minha imaginação. Não conheço o meu pai, dele apenas tenho uma foto em cima do aparador e nada mais, acho que a minha mãe tem mais algumas coisas mas nunca mas mostrou, são coisas dela e ninguém tem nada a ver com isso, que ninguém mexa em nada do que lhe pertence. Lembro-me quando era pequenina, antes de ficar os meus dias aqui á janela, e ia ao quarto dela às escondidas, mexia em tudo o que podia e depois voltava a arrumar com o máximo dos cuidados pois se ela viesse a descobrir alguma coisa era mais que certo que me dava alguma palmada; adorava experimentar os vestidos dela e andar-me a roçar pelas paredes da casa, às vezes até punha um pouco de perfume atrás das orelhas porque dizem que é onde menos se nota, ah! E não me posso esquecer do baton, o velho baton vermelho que ela punha todos os dias. Hoje já nada disso persiste, nem os vestidos nem os perfumes, é apenas uma miragem daquilo que já foi, vive de vida morta e não sabe como sair dela, sinceramente também acho que ela não quer sair da masmorra em que ela própria se pôs, talvez se sinta protegida e já não esteja preparada para a vida cá fora. O que me mete confusão é como é que nós sobrevivemos, não sei de onde vem o dinheiro para a nossa sobrevivência, apenas sei que ele aparece, nada mais. Até hoje nunca me faltou nada, se quero alguma coisa basta ir ao quarto e falar com ela, e depois as coisas vão aparecendo. Há já alguns anos que eu escolhi este lugar aqui à janela, escolhi-o porque sei que o meu príncipe há-de aparecer, seja no pequeno lago em frente à casa pelo bosque que a cerca, o que me interessa é que ele vai aparecer, isso é o importante! A minha mãe diz que eu já não tenho idade para acreditar nestas coisas mas ela também não sabe nada da vida, já não sai daquele quarto há anos, não tem a noção de como estão as coisas cá fora agora. Eu gostava que ela saísse, que viesse ter comigo e que fossemos passear, nem que fosse durante pouco tempo, gostava de passar alguns momentos com ela fora daqui e fingirmos…fingirmos que somos normais, não sei…não sei explicar-me, nunca fui muito boa com as palavras, nunca as soube escolher e também nunca tive muita aptidão para o português, sei o básico para comer e dormir e é mais que suficiente. Sim, talvez seja uma mulher das cavernas encerrada num tempo moderno, ou então talvez seja um mito que eu própria criei de mim mesma e não exista, talvez nem mesmo este lago não exista e seja tudo apenas o fruto da minha imaginação precoce. Viemos do nada e ao nada voltaremos um dia, eu acho que já nasci em cinzas e não vejo a maneira de renascer delas, não fui talhada a ser um ser vivo, apenas mais uma que aqui anda à procura do nada e que dá sempre de frente com o tudo. Não sei o que sou nem para onde vou, talvez um dia ganhe coragem e vá por este lago adiante até à outra margem. Depois digo adeus à minha mãe, pode ser que ela venha ter comigo.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Mandei Recado À Cidade

Vendi as palavras todas
Vendi-as para te encontrar
E comprei o meu silêncio
Como quem vai navegar

Dos jardins falei às flores
Do teu nome começado
Do espelho dos teus olhos
E do teu corpo fechado

Mandei recado á cidade
Mandei recado ao país
E cantei para não estar só
A libertar a raiz

Depois, amor, fui á praia
Molhar-me do coração
E regressei no instante
De me dar à tua mão.

Vasco de Lima Couto

mais um poema do Vasco de Lima Couto, mais um pedaço de mim, mais um pedaço de fado.

sábado, 22 de agosto de 2009

Ninguém Se Casa Em Agosto

Ela olhou para a montra da loja de vestidos de noiva e desatou num pranto; obviamente que quem passava pensava que ela era uma solteirona qualquer a pensar no grande dia, ou então uma virgem para sempre entregue a orações e nada mais do que isso, mas não, o problema não era nenhum destes que passava pela cabeça dos banais humanos que olhavam para ela: como é que alguém arranja um vestido de noiva em Agosto se a loja está fechada? Claro que agora o comum leitor deste texto vai chamá-la de irresponsável e dizer que não se guarda tudo para a última, que ela já devia ter escolhido o vestido à muito tempo e que agora era tarde para ela fazer fosse o que fosse se não aceitar os factos. O que o estimado leitor deste texto não sabe é que o acompanhante desta menina (vulgo namorado) a tinha pedido em casamento exactamente à dois dias, e milagre dos milagres (visto ainda existirem homens eficazes, ou então com medo que as mulheres pensem melhor e resolvam fugir...) tinha marcado o casamento para exactamente três dias a seguir ao pedido. Sim, esta história pode parecer um pouco inverosímil e até, talvez, já tenha deixado alguns de vós desesperados e, como conclusão desistiram de a ler (o que é uma perda enorme para qualquer leitor atento dos textos de grande qualidade literária que vão passando por aqui), mas a verdade é que tudo isto é verídico e o homem cismou mesmo em casar daí a três dias; o problema, e nisto nós homens também somos culpados, é que ele não pensou em tudo aquilo que a noiva também tem para resolver (para começar porque é uma indelicadeza marcar um casamento sem saber se a respectiva senhora está no tal período complicado do mês, porque convenhamos: o vestido é branco!!), mas isto não intererrou minimamente ao macho latino e por isso mesmo encontramos esta pobre mulher a chorar frente a uma loja de vestidos de noiva. Pensam agora vocês, e muito bem, o porquê de ela não meter-se no seu carrinho e ir procurar outra loja mas esta mulher encontra-se presa ao chão, porque está presa ao vestido cor de creme que apenas ali encontrou, ali, naquela montra! "Mas ela ainda está com caprichos?" pensam todos vocês, e mais uma vez a demonstrar rápida eficácia mental, mas caramba! É o casamento dela, o único que ela vai ter (não se aceitam opiniões quanto a esta frase, vocês não conhecem o namorado da senhora também não podem opinar quanto tempo é que isto tudo vai durar) e não quer que ele seja de qualquer maneira, já bem basta não saber minimamente o que a espera no próprio dia (ainda por cima tinha sido um homem a preparar tudo), compreenda-se que esta mulher está como nós perante um filme com o Harrison Ford, à espera de uma enorme catástrofe e, ao menos, queria ir bem vestida para ter algo de positivo para recordar (ela já estava a pôr em causa todo o resto da festa, é verdade). Bem...ela tinha sempre outra opção, mais difícil, é verdade, mas mesmo assim uma opção mais que válida dadas as circunstâncias...pegar no seu telemóvel e pura e simplesmente dizer ao rapaz que já não se queria casar com ele, que tinha tido um espasmo no momento em que ele se declarou e que aquilo que parecia ter sido um sim a sair da sua boca foi apenas um pequeno fio de baba acompanhado de alguns monossílabos; ou então dizer a verdadeira razão porque sempre gostou de filmes com a Meg Ryan: era uma lésbica incurável, louca por loiras e com tendência a usar sacos de pão no lugar das cuecas (peço desculpa mas esta última parte obviamente que não tem nada a ver com a Meg Ryan...quer dizer, para ser sincero também nunca vi as cuecas dela, mas prefiro não ir por aí...). Havia tantas desculpas possíveis mas nenhuma tinha sentido, nenhuma era dotada de razão, nenhuma era...era...nenhuma era o suficiente para ela conseguir esquecer aquele vestido! Ela apenas se queria casar para poder usar aquele vestido, ela queria lá saber do rapaz, da festa e fosse do que fosse: a sua razão de viver naquele momento era aquele vestido, e devido a isso os seus olhos pareciam uma pequena catarata prestes a explodir perante a povoação mais próxima. Ela até podia não se casar, mas aquele vestido tinha de ser dela, e naquele momento, agora que o tinha visto não o podia perder, e não foi de modas: vá de agarrar numa pedra e pregar com ela na bela vitrine daquela imponente loja de noivas, e então, como se tivesse acabadinha de sair dum filme de gangsters, vá de roubar o vestido e enfiar-se com ele dentro do metro (entretanto tenho de referir que ia sofrendo de cinco avc's consecutivos). E claro que todos vocês pensam que a história vai acabar assim, com ela a fugir e a casar-se com o seu belo vestido, mas enganam-se, eis que quando ela entra no metro repara numa cigana que dentro de um saco verde, um enorme saco verde, tem exactamente cerca de dez vestidos iguais aquele que ela tinha acabado de roubar e, para finalizar, a cigana ainda teve o descaramento de dizer:
"Por dez euros e noventa cêntimos já não se encontram vestidos destes, foi uma sorte a prima Cidália ainda ter lá estes todos para eu casar as minhas meninas, vão ficar tão lindas...." "E quando são os casamentos" pergunta um homem que...(bem, não sei se era bem um homem, mas tinha bigode, embora também tivesse qualquer coisa que parecessem uns seios...enfim) "Quando são os casamentos? Então isso é pergunta que se faça? Em Setembro, ora essa! Mas alguém se casa em Agosto??"
Adeus vestido, adeus festa, adeus casamento, adeus noivo. O vestido ficou no lixo, a festa não se concretizou, o casamento foi cancelado e o noivo ficou a chorar no colo da mãe dela. Ela comprou um bikini e anda a pavonear-se por Vilamoura.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Carta de Amor a Lisboa

Gosto de Lisboa com paixão
e às vezes agarro-a pela mão
e sem ela querer, como um esticão
corro da Sé até ao Alto de São João
para ela ver como ainda é tão popular

Gosto da Lisboa de riso traquina
da eterna menina que ri com garra
que cora quando passa por Alfama
mas sabe sorrir no velho Alto do Pina

E que bem que eu a vejo...
oh! Velha Lisboa que casaste com o Tejo
mas a tua mãe nunca o soube, o teu
pai, para o casamento, nem foi convidado
e para maior desgraça tiveste por madrinha
uma guitarra e por padrinho...o fado

Hoje nenhum te larga, em cada viela
é ver ela a cantar com o padrinho...
que gracinha! que bonitinho...
dizem os camones que dão um ar de mirones
quando passam pelas tuas velhas tascas
com ar rasca, sim senhor! Mas não é miséria
encobrida, é apenas a tua cor garrida
que ainda tem o mesmo valor

E agora já nem sei se foi visão
mas no outro dia, ao passar pela Madragoa
julguei ver uma varina a cantar o "Lá
vai Lisboa"...mas se calhar é apenas a saudade
de uma velha cidade que eu não conheci

A cidade do Páteo das Cantigas
e das velhas amigas que falavam
de janela para janela, para comentarem
a vida alheia que a vida delas não
interessava a ninguém...olha! Lá vai
aquela que já não tem pai nem mãe

É prostituta e fez-se à vida, é
esquina de rua e anda por becos e travessas
a ver o que dá para render, também ela
tem lá em casa um filho que precisa de comer
e um chulo que lhe dá porrada a valer

E o meu velho Parque Mayer, hoje
só veste de luto e há sempre uma lágrima
que enxuto quando vejo aqueles teatros a
arder...sim, não se deixem enganar porque
o fogo às vezes queima e nós sentimo-lo
cá dentro a latejar

Ao menos tenho o Rossio, e também o Nacional;
para recordar a dona Amélia, o Robles Monteiro... e
ao longe ainda vejo um cacilheiro com velha fama, e
se não me engano vai lá dentro o grande José Viana!

Oh tempo volta para trás, se fores capaz
dá-me de volta a minha velha paixão,
traz a voz da Berta, da Lucília e até
a do sempre novo António Mourão

Oh tempos que já lá vão e não voltam
nunca mais...apenas a saudade é que fica,
já nem tenho a guitarra para recordar
esse que ficou conhecido como o miúdo
da Bica...isto é uma memória muito minha
e para quem não sabe falo desse grande
Fernando Farinha

Lisboa é fado, é marcha popular,
é verso por compôr e fado por cantar,
é poema nunca feito, e tem sempre
o mesmo jeito de menina louca,
que anda em arraiais à procura
de uma boca para dar um beijo...

Adeus, adeus oh Tejo! Leva
as mágoas desta gente para Espanha
e depois volta para nós, se o fizeres
nós soltamos a voz e vamos por todo o lado
gritar viva Lisboa! Viva à memória! Viva ao fado!

Para a cidade que eu amo, para a música que me viu nascer, para os artistas que ainda posso ouvir e ver, uma carta de amor à cidade.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

No Príncipio...Era A Terra

E de repente vejo-me a matar a minha filha e a pensar que não tinha outra hipótese, penso que a honra é aquilo que mais valioso temos na nossa vida e que a vontade de um não pode ser a vontade dos outros, mas que a vontade dos outros, por vezes, tem de ser a vontade de um. Que estranho é este homem que começa a nascer e agora, a esta hora da noite, pus-me a pensar que homem é este que mata a sua filha em nome de uma guerra, isto não cabia na cabeça de ninguém hoje em dia, bem...talvez coubesse na cabeça de certos fanáticos que ainda hoje matam os filhos, mas para um mero rapaz ocidental nascido num dos berços da Europa? Que homem este, que força que ele tem...será que eu, com este corpo e esta cabeça, consigo entrar dentro dele? Aos poucos...aos poucos penso que sim. Não ando a ler todos os livros que me aparecem sobre ele, todos os textos, todas as ideias que já foram escritas, isso não me interessa por agora; agora é o conhecimento, são as bases, sou eu e o texto que tenho para dizer e é através desse texto que eu vou ficar a conhecê-lo, não através daquilo que os outros escreveram, o que me interessa é aquele homem naquele momento, no momento em que eu o encontro, em que eu digo aquilo que ele pensa, só o texto e nada mais, o resto vem depois...o destruirem-me as ideias que eu já tinha sobre ele, o darem cabo daquilo que eu pensei, mas isso é o normal, mas mesmo assim não me rendo, defendo até à última linha cada coisa que acho que está certa porque sou eu que o faço, é de mim que ele nasce, o que ele sofre, o que ele transporta é através de mim que tem de passar por isso ninguém melhor do que eu para saber o que ele quer. Claro que está aqui um pouco de egocentrismo, mas caramba...nunca mais o vou poder fazer e muito menos nestes moldes; o normal será até nunca mais fazer uma personagem em que mato a minha própria filha, por isso o melhor é aproveitar agora e esburacar cada pedaço da sua alma, que por momentos (insisto) que por momentos...vai ser a minha alma. Vou voltar a ser rei (que saudades, sabem que sim, os bons velhos tempos...), voltar a transportar toda a importância para uma personagem, voltar a ter aquele olhar (que olhar!!), mas não o mesmo olhar, os olhos continuam a ser os meus mas os desígnios são outros, agora obedeço a um Oráculo, há uma força suprema por cima de mim, um céu que me pode cair em cima (sempre deve doer um pouco mais o céu inteiro do que apenas o céu da Dinamarca...). Mas estou pronto, ou por outra, começo a estar pronto para levar com esse céu. Começo a ter a velha vontade de voltar a trabalhar, de encontrar o meu irmão, ver a minha mulher, abraçar pela última vez a minha filha, bem...até pareço um homem de família num daqueles contos de Natal da Disney. Vou voltar aos primórdios, ao príncipio de tudo, ser um dos primeiros homens que pisou a Terra (claro que ele não é assim tão antigo, mas fica mais poético), e vou estar atento porque coisas destas...só se vivem uma vez na vida.

Vou abrir os céus, calcorrear a terra
Fazer da minha vontade a do meu povo
E conhecer aquilo que o mar encerra
No sangue ardente que eu próprio revolvo...

terça-feira, 18 de agosto de 2009

O Relógio Parou...

E o abraço fez parar o relógio que teimosamente marcava as horas. Não sabemos se foi o dela ou o dele, afinal somos meros espectadores e nem nos é permitido fazer juízos de valor, mas pela forma como ambos se entregavam à paixão quase de certeza que foi o braço dela que bateu no ponteiro do relógio e o fez parar. Talvez tivesse de ser assim para não contarem o tempo, talvez estivesse escrito nalgum destino que ela tinha de tocar com aquela mão naquele relógio aquele exacto momento. Não sabem como a história começou, e aquilo que eu sei é que ele começou por subir os degraus devagarinho, um a um, sem pressas (afinal o tempo nunca intererrou a nenhum deles), ele acendia o cigarro lentamente e sabia que ela já sentia o cheiro do seu tabaco, mais do que o som nas escadas ela reconhecia-o pelo cheiro dos cigarros dele, os mesmos há anos, como se fosse um ritual que não se pode alterar. Ele abriu a porta devagariinho, sabia que ela não gostava de ser surpreendida, ela esperava-o com o sorriso de sempre. Claro que ele fez com que ela se levantasse, a intimidade não podia ser motivo para ela não ter um gesto de gentileza para com ele mal o visse, e ela sempre percebeu isso. Levantou-se como se fosse aquela gata em telhado de zinco quente, com medo de pisar o chão, com medo de pisar alguma ratoeira ali posta por engano, ela foi ter com ele, felinamente, saboreava cada momento, cada olhar dele de desejo, sentia que ele a despia com os olhos, e quanto mais ela sentia aquela paixão mantida ao longo de anos de silêncios mais ele se excitava com o corpo dela. Quando ela estava apenas à distância de um abraço ele agarrou-a e não deixou-a sair mais, prendeu-a como se fosse um pássaro, ficou cativa dele naquele preciso instante (como se já não o fosse antes...). Bem, deve ter sido nesse instante que o relógio sofreu aquele pequeno hematoma, não sei bem quando foi porque fui apenas um espectador, um voyeur que não foi convidado a participar em nada mas que não conseguiu conter o desejo de espiar a vida que não é a sua. Não sei como aquela história acabou, para dizer a verdade sei, acabava sempre da mesma maneira, com ele a pousar a cabeça no peito dela e a sentir que tinha nascido dali, que a sua terra era aquele ventre, que o seu seio era a sua bandeira e que o seu corpo era a sua arma contra qualquer guerra. Fantasias, fantasias e devaneios, nada mais. Já tinham idade para terem juízo mas queriam lá saber de convenções, de leis feitas por outros, naquele quarto as leis eram escritas por ela e redigidas por ele, e obviamente que ambos assinavam por baixo. Acabaram a noite a rir-se, sim, também tenho a certeza que acabaram a noite a rir-se e a dizer disparates um ao outro, era assim há anos, há séculos talvez...aquele relógio nem estava lá quando tudo começou, e de certeza que não ia lá estar quando tudo terminasse também; tal como eu o relógio não passava de um espectador, mas ao menos ele foi lá posto por eles, o que quer dizer que é um convidado, agora eu...eu apenas me encostei à fantasia que lhes servia de refúgio, apenas quis sentir aquilo que eles sentiam, mas ainda hoje não sei porque os espiei noites e noites a fio...desculpem, se calhar tinha dito que apenas os tinha visto naquela noite, já nem sei o que disse...também não interessa para o caso, o interessante são os factos, apenas isso.

Primeiro são os teus passos pela escada
A madeira a dizer-me que chegaste
Depois a porta a pouco e pouco aberta
E o silêncio que...só prova que já entraste

Sim, também hoje me deixei levar pela Simone e por essa canção chamada "À Tua Espera"...foi ela que me fez conhecer estes amantes que existiram...ou existem...ou são uma invenção minha...sei lá, são tantos os amantes perdidos que de certeza que esta história encaixa em alguns deles.

Que se continuem a partir relógios...
...e a fazer parar o tempo
Para guardar para sempre...
...a eternidade num só momento.

sábado, 15 de agosto de 2009

Brando, Davis, Bertolucci...

A arte entra em mim diariamente das mais diversas formas. Há dois dias atrás tive a oportunidade de ver pela primeira vez um filme com a sempre falada Bette Davis e fiquei fascinado, primeiro pela riqueza da técnica, por cada gesto, cada esgar do seu sorriso, de cada vez que movia uma mão sentia-se todo o seu corpo a revolver-se, tinha aquela calma que só têm os grandes quando já sabem que são grandes e que não têm de se preocupar com o que se passa à sua volta porque façam o que fizerem fazem bem

(sim, é verdade, existem actores que chegam a este grau, que por muito que olhemos não conseguem fazer algo que possa ser considerado errado, é como se tudo fosse premeditado, quando sabemos perfeitamente que não foi)

o filme em questão chama-se "Eve" e foi dos filmes mais nomeados para os Oscars da Academia até hoje, um daqueles filmes de duas horas que nos fazem ter saudades do que foi Hollywood, um filme que fala dos meandros do teatro e que põe frente a frente a nova com a velha geração, um filme que retrata a ganância daqueles que aparecem sabe-se lá de onde e que deitam tudo a perder pois mais tarde ou mais cedo são apanhados na sua própria ratoeira

(obviamente que também tenho de referir o extraordinário desempenho da Anne Baxter, aquela cara de anjo com olhos de demónio podiam enganar qualquer um)

um extraordinário filme com uma direcção de actores perfeita, cada lágrima, cada contenção, cada gesto da câmara é perfeito, mais do que aconselhar é obrigatório vê-lo, e para quem estiver atento há-de reparar na pequena Marylin Monroe, digo pequena porque foi um dos seus primeiros papéis no cinema, mas já então era impossível de não reparar na beleza e sensualidade que ela transportou até ao fim da sua vida. Por último um pequeno reparo...reparem nos olhos da Bette Davis e digam se não se parecem com os de alguém, reparem na cara, nos gestos, nas feições...não vou dizer mais pois ainda me acusam de serem coisas da minha cabeça mas deixo aqui uma pista: "...corpo de linho...lábios de mosto..."; se fossem irmãs não eram tão parecidas.

Outra referência cinematográfica que vi

(e como é bom estar de férias e poder fazer uma descoberta a cada dia que passa...)

foi esse drama erótico de Bertolucci chamado "O Último Tango em Paris", e que tango...e que monstro da representação foi esse Homem chamado Marlon Brando, como ele é subtil, como ele é trágico, como ele respira, como ele diz um texto, como ele transforma o desespero em algo tão fácil e como ele transporta a sensualidade daquela personagem em cada segundo de película, Maria Schneider fica agarrada e qualquer um de nós. E díga-se em abono da verdade, ninguém como Bertolucci para gravar cenas de sexo sem se tornar vulgar, ninguém como ele para mandar a cada minuto uma carta de amor ao cinema

(e sim, torna-se obrigatório recordar aqui essa outra carta que foi Dreamers, esse seu devaneio adolescente, talvez essa seja a sua verdadeira despedida, seja o beijo que ele nunca pôde entregar à sétima arte, é ali que sentimos cada pulsação de um Bertolucci a celebrar o cinema mas também a juventude e os seus excessos, as suas festas, o seu prazer de viver)

ninguém como Brando para tornar aquilo que podia ser vulgar em sagrado, e se a actuação nos parece, no ínicio, forçada, é logo dissolvida ao longo do filme, Brando vai-se deixando levar pela história e pelo enredo, talvez pela própria Schneider de vinte anos, sabemos como ele gostava de ser galã dentro e fora dos ecrãs...é um marco da sétima arte, é um prazer ver como Bertolucci filme Brando a correr pelas ruas de Paris e ver como um grande actor torna um simples tango num grande festim grego, é a celebração da tragédia, é Piazolla posto ao mesmo nível de Sófocles

(claro que também isto foi agora um devaneio...)

Bem haja aos actores, por a cada dia, ainda nos fazerem sonhar.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Daqui Desta Lisboa

Daqui, desta Lisboa compassiva,
Nápoles por Suíços habitada,
onde a tristeza vil, e apagada,
se disfarça de gente mais activa;

Daqui, deste pregão de voz antiga,
deste traquejo feroz de motoreta
ou do outro de gente mais selecta
que roda a quatro a nalga e a barriga;

Daqui, deste azulejo incandescente,
da soleira da vida e piaçaba,
da sacada suspensa no poente,
do ramudo tristôlho que se apaga;

Daqui, só paciência, amigos meus !
Peguem lá o soneto e vão com Deus...

Alexandre O'Neill

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Allen e Almodóvar (e tanto mais...)

Continuo a gostar de Woody Allen e Almodóvar.
A ler Mia Couto e Agualusa como se fosse a primeira vez.
A ouvir a Fernanda Maria, a Maria da Nazaré e a pensar que se fosse Mulher a minha voz seria uma mistura das duas (o que é um tanto complicado visto uma ser exímia nos agudos e a outra nos graves).
Acho que continuo a ter uma paixão secreta pela Simone de Oliveira (que ela nunca venha a ler isto, ou se ler que me tente contactar) e pelos "nossos" poetas (que o Ary continue a ser o meu tango ribeirinho, as minhas sete letras; que o David seja sempre o meu Começar de Novo; que o meu eterno Vasco de Lima Couto continue a dar-me uma mesa sem ninguém e uma cama com tão pouco...).
E nunca me vou esquecer dos meus actores: do Perry do homem dos olhos tristes; da Marina no ora bolas pró parque (doce memória, a minha primeira paixão pelo teatro); da Maria do Céu Guerra nessa profissão da Senhora Warren; do João D'Ávila no seu alter-ego do Inspector Geral; da Batarda no Ibsen; do Cintra na tragédia de Júlio César, e tantos..tantos outros maiores do que eu (talvez um dia chegue ao calcanhar de um deles, talvez um dia possa pertencer a esse selecto grupo).
Continuo a chorar com a lágrima, com o grito, com a valsa dos eternos amantes, com o sei de um rio e tantos outros fados que me trazem recordações de tanta coisa distinta.

Ainda me emociono pelo Teatro, talvez não consiga derramar as lágrimas em palco mas fora dele continuo a chorar por não saber o que a vida me reserva, por não saber se terei sempre umas tábuas onde alguém me possa ver. Não sei viver sem isto, respiro tudo aquilo que engloba o representar, amo ver um filme, ver uma peça (e sinto uma inveja por não ser eu que estou ali, por ainda estar tão no início...). Claro que ambiciono fazer os grandes... desespero pelo Lear, pelo Ricardo II, quando chega a minha hora de também eu fazer o Pirandello, o Ibsen, ou até mesmo um Neil Labute (sempre uma boa surpresa) e um Genet (vencer o medo e fazer o tal Genet, ir para lá das barreiras e pensar que sou capaz de fazer aquilo que me é pedido). Tenho medo de um dia me tirarem as tábuas e eu ficar no vazio, não saberei o que fazer nesse dia, também sei que vou lutar até ao fim para que isso não aconteça e para que tenha sempre o meu lugar.

Quero ser irreverente como o Jarmusch, ter a nostalgia do Wenders, a simplicidade da Isabel Coixet, o despojamento do Lumet, a ousadia do Lynch, o deslumbramento do Bergman, a paixão do Antonioni, o tempo do Manoel de Oliveira... e tantos, tantos outros que fazem parte de uma lista infindável...acabo por onde comecei...

...com o humor do Allen e o fogo escondido do Almodóvar...
entre um e o outro, talvez esteja o meu ponto de equílibrio.

sábado, 8 de agosto de 2009

Para Sempre, Solnado

Lembro-me de ti sentado à minha frente a dizer-me: "agora diz lá isso" e a dar-me cada pausa, cada entoação, a descobrir o Gil Vicente para lá do óbvio, a desbravar o Esopo e a saber a medida perfeita para o fazer, soubeste dar-me os tempos dos grandes, aqueles que se ouvem entre cada respiração, soubeste dar-me a base daquilo que sou hoje e nunca o escondi. Lembro-me do primeiro impacto, o ter Raul Solnado mesmo à minha frente, o primeiro sorriso quando percebeste que a comédia pulsava em mim, a vontade de me veres no Parque Mayer quando tinha decidido concorrer ao casting do "Hip Hop'Arque": "vou falar ao Nicholson de ti, vou dar-lhe uma apitadela". Lembras-te do S.O.S Suícidio? O que tu te riste, o que tu me ensinaste com aquele texto que tinha escrito mesmo no dia anterior a mostrar-to (mais uma vez as pausas, os tempos, e até um novo final, um remate como só tu sabias fazer). Lembro-me também quando tentaste fazer connosco uma cena dramática, eras o patrão e nós queríamos desesperadamente um emprego, as tuas palavras foram: "está bem, pedes um emprego como um cómico mas está bem"; nunca quiseste ver nada para além da comédia em mim, sabias que era aquilo que eu fazia melhor e que devia ser esse o caminho que eu devia seguir, mas tal como tu não queria ficar agarrado a um certo tipo de teatro, precisava de mais, tinha a pulsação dramática dentro de mim, sabia que tinha um jeito natural para a comédia mas queria mais para além disso. Toda a minha base nunca me vou esquecer de onde vem: agradeço a ti, à Jô, ao Zé Renato, ao Thiago, tudo aquilo que eu sou hoje começou pelo vosso incentivo, não, não me esqueci dos olhos brilhantes da Jô e tenho saudades deles, saudades da forma como era acarinhado, saudades de ouvir o Zé Renato a dizer: "ainda havemos de fazer uma Revista", saudades de fazermos a tal grande comédia que eu há muito ando a pedir. Nunca me esqueço de vocês tal como nunca me vou esquecer de ti, Raul. Vais ter a tua merecida homenagem, infelizmente não tive tempo em vida para te dizer o quanto te agradeço, mas vou agora redimir-me do que não consegui fazer por o tempo ser pouco (mas não quero utilizar o tempo como uma desculpa, devia ter tido o tempo para voltar onde fui tão feliz e onde aprendi tanto), quero fazer o pequeno grande espectáculo que mereces, quero recordar esse "Malmequer" que tu eternizaste, quero dar uma sincera homenagem a alguém que me deixa memórias tão profundas neste meu camarim da saudade. Obrigado, Raul, obrigado por tudo. Se hoje sou quase um actor é a ti que o devo agradecer, o apoio que me deste, o que disseste do Carlos Avilez (se ele soubesse o carinho que tinhas por ele, o respeito que tinhas pelo Carlos, dizias que ele era o melhor, que para ensinar e encenar não se podia ter melhor mestre, e tantas vezes disseste que ele ia fazer de mim um Actor).

Por agora o teu malmequer ficou desfolhado
até já, Raul...
...para sempre, Solnado.

domingo, 2 de agosto de 2009

Soneto de Mal Amar

Invento-te recordo-te distorço
a tua imagem mal e bem amada
sou apenas a forja em que me forço
a fazer das palavras tudo ou nada.

A palavra desejo incendiada
lambendo a trave mestra do teu corpo
a palavra ciúme atormentada
a provar-me que ainda não estou morto.

E as coisas que eu não disse? Que não digo:
Meu terraço de ausência meu castigo
meu pântano de rosas afogadas.

Por ti me reconheço e contradigo
chão das palavras mágoa joio e trigo
apenas por ternura levedadas.

José Carlos Ary dos Santos

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Fiz Um Conto Para Me Embalar

Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.

Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.

Rosas fatais, as três donzelas
A mão de espuma as desfolhou.
Nenhum soube para qual delas
O príncipe do mar cantou.

Natália Correia

Do mito nasceu a história
Contada em antigos fados
Que cantavam a glória
Dos frutos já passados

A macieira que deu vida
À maçã podre da paixão
Desvaneceu-se na partida
De um já morto coração

Fruto podre, mal nascido
Fruto que não deu nada
Poeira sem sentido
Na derradeira estrada

Canto a mística esquecida
Os deuses e as divindades
Para esquecer a nossa vida
Feita de trivialidades.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Adão e Eva

Olhámo-nos um dia,
E cada um de nós sonhou que achara
O par que a alma e a carne lhe pedia.

- E cada um de nós sonhou que o achara...

E entre nós dois
Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente,
...Se deu, e se dará continuamente:

Na palma da tua mão,
Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.

- O meu nome é Adão...

E em que furor sagrado
Os nossos corpos nus e desejosos
Como serpentes brancas se enroscaram,
Tentando ser um só!

Ó beijos angustiados e raivosos
Que as nossas pobres bocas se atiraram,
Sobre um leito de terra, cinza e pó!

Ó abraços que os braços apertaram,
Dedos que se misturaram!

Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri,
Sede que nada mata, ânsia sem fim!
- Tu de entrar em mim,
Eu de entrar em ti.

Assim toda te deste,
E assim todo me dei:

Sobre o teu longo corpo agonizante,
Meu inferno celeste,
Cem vezes morri, prostrado...
Cem vezes ressuscitei
Para uma dor mais vibrante
E um prazer mais torturado.

E enquanto as nossas bocas se esmagavam,
E as doces curvas do teu corpo se ajustavam
Às linhas fortes do meu,
Os nossos olhos muito perto, imensos
No desespero desse abraço mudo,
Confessaram-me tudo!
...Enquanto nós pairávamos, suspensos
Entre a terra e o céu.

Assim as almas se entregaram,
Como os corpos se tinham entregado.
Assim duas metades se amoldaram
Ante as barbas, que tremeram,
Do velho Pai desprezado!

E assim Adão e Eva se conheceram:

Tu conheceste a força dos meus pulsos,
A miséria do meu ser,
Os recantos da minha humanidade,
A grandeza do meu amor cruel,
Os veios de oiro que o meu barro trouxe...

Eu os teus nervos convulsos,
O teu poder,
A tua fragilidade,
Os sinais da tua pele,
O gosto do teu sangue doce...

Depois...

Depois o quê, amor? Depois, mais nada,
- Que Jeová não sabe perdoar!

O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada...

Continuámos a ser dois,
E nunca nos pudemos penetrar!

José Régio


Somos Adão e Eva num
paraíso por inventar;

Ainda está para nascer
o fruto do pecado que
rompemos por entre o vento
irado que entrava pelos
beirais da velha casa

A velha casa era o Éden,
era esse tal sítio eleito
onde o pecado nasceu já feito
e onde o fruto antes de fruto
apenas sabe ser vida e nada mais

E fomos parar ao cais,
o tal cais da partida onde
tudo nasce e tudo se constrói
onde o sonho suspira pela
saudade que dói e a lâmina
penetra os nossos corpos nús

Só mais tarde veio a serpente,
de repente, sem avisar, perdida
por entre a folhagem e a gozar
a doce aragem que corre sem
se cansar

E fomos tudo, fomos a festa eleita
a ternura mais que perfeita; talvez
o grande amor da história, aquele
que vai ficar por toda a memória
que existe na raça humana

Morde o meu fruto do pecado...
...esquece a maçã.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Perdeu-se Uma Alma

Perdeu-se uma alma pela rua. Nunca ninguém a encontrou, por mais que a procurassem nunca conseguiram dar com ela; poderia, talvez, estar metida dentro de alguma cova, apenas com a cabeça de fora, afinal sempre gostou de dar pouco nas vistas, sempre se preferiu esconder daqueles que a procuravam. Perdeu-se uma alma, sim...não sei bem o tamanho ou a forma mas estas coisas também não costumam ser bem definidas, têm estranhos contornos, estranhas formas de agir, nunca se sabe o que vai na cabeça de uma alma à solta...nem na nossa, quanto mais.

Qual será a cor de uma alma? Será que cada uma tem a sua ou são uniformes nesse aspecto? Nunca vi uma a sair pelo corpo, será que vão rumo ao céu? E batem à porta de Deus? E se Deus não está lá para abrir a porta? Será que há uma sala de espera para almas penadas? E será que têm doenças como todos nós? Qual será o estado de uma alma que acabou de morrer? As almas morrem? Não há respostas para nada disto, afinal de contas poucas respostas são dadas hoje em dia.

Somos feitos de dúvidas, duvidamos de tudo, pomos em causa o próprio ser, pomos em causa nós próprios, sem saber o que somos, sem saber o que vamos ser, sem saber, sequer, o que fomos...eu não sei para onde vou, apenas sei para onde gostava de ir, o que gostava de fazer, o que me falta fazer, descobrir, reinventar, inventar, destruir...tantos adjectivos para tão pouca coisa, tanta palavra para no fim de contas ser tudo tão vão e efémero, passa tudo tão rápido. "Afinal o tempo fica / Nós é que vamos passando"...não gostava de ficar cá com o tempo, tudo tem o seu tempo e até ele devia acabar um dia. Devia começar tudo de novo, voltar aos traços originais, alguém voltar a pegar num pincel e desenhar tudo outra vez, talvez fazer novas linhas por onde seguir.

Um dia alguém inventou o sorriso e deve ter sido feliz; talvez o sorriso e a felicidade tenham nascido no mesmo instante, de mãos juntas, como se fossem amigos há décadas ou algo assim...qual terá sido o ser humano que foi feliz pela primeira vez? Será que conseguiu voltar a sentir tudo isso mais tarde? Será que não ficou triste por nunca mais ter tido um sentimento como aquele? Se calhar suicidou-se e a sua alma perdeu-se, como tantas outras que ainda estão para aí a andar...ou então ficou a chorar o resto da vida, cara fechada e boca cerrada.

Ninguém sabe a origem, ninguém sabe o fim...eis o porquê de tudo ser assim.

Duas e Três

A senhora tristeza anda cansada
Levando sacos de sonhos que no
fim dão em nada

A dona amargura anda a sorrir
Por ver que à sua volta anda
quase tudo a ruir

A menina lágrima tenta aguentar
Mas a menina por mais que tente
não consegue estancar

O senhor riso anda infiltrado
Não se mostra a ninguém para não
ser raptado

A dona molenguice anda sorrateira
Não lhe vão descobrir a careca
e arrancar-lhe a moleira

O senhor cansaço deu-me o braço
andamos os dois de cá para lá
em grande embaraço

E no meio dos sentimentos
No meio da confusão
Nascem os contentamentos
De quem só tem tormentos
Para andar pela mão.

sábado, 11 de julho de 2009

Eu Não Existo Sem Você

Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste

Por isso, meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos me encaminham pra você
Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só têm razão se se cantar

Assim como a nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer
Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você.

Vinicius de Moraes

Nós...para sempre.

sábado, 4 de julho de 2009

A Pequena Criança

A pequena criança traz a janela do peito estilhaçada em mil pedaços.
A pequena criança traz gotas de sangue nas mãos de uma rosa mal arranjada.
A pequena criança traz os pés sujos da lama que é obrigada a pisar.
A pequena criança conta pelos dedos porque ninguém a ensinou de outra maneira.
A pequena criança não sabe o que é a vida porque ao seu lado só vê morte.
A pequena criança não sabe dizer a palavra mãe porque nunca a conheceu.
A pequena criança só lança grunhidos porque ninguém a ensinou a falar.
A pequena criança chora todas as noites porque não sabe o que é rir.
A pequena criança foge da polícia porque podem prender o seu pai.
A pequena criança cospe para o chão porque vê no chão a sua imagem.
A pequena criança não brinca com a chuva porque pode limpá-la.
A pequena criança foge da comida porque é uma sorte que nunca teve.
A pequena criança foge do amor porque tem medo de apaixonar-se.
A pequena criança não acredita na felicidade porque nunca a conheceu.
A pequena criança não ouve as bombas porque o tempo a fez surda.
A pequena criança anda de joelhos porque os pés estão cravados de balas.
A pequena criança chora a sua vida porque apenas quer conhecer a morte.
A pequena criança toma o sofrimento como coisa certa...

...e sonha com o mar azul de onde vêem as gaivotas.

sábado, 27 de junho de 2009

Um Brinde À Existência

Fazes-me cantar até a garganta ficar rouca
as veias começam a querer sair de onde estão
e ganham nova pulsação num lugar longínquo...
não podes conter aquilo que não é teu, deixa
a minha voz gritar por dentro de mim e eu asfixiar
nesse mar de agonia que mora em todos nós.

Deixa-me fazer laços na minha voz, prendê-la
para todo o sempre e acertar sempre no tom
sorrir para todos e pensar que tudo isto é um dom
e nunca pensar o que vai para lá da razão.

Penso logo existo, e é assim que vivo
entre o antes e o depois, entre o viver
e o que morre em cada pôr-do-sol, entre o
sublime e o profano, a pensar sempre que
errar também é humano.

Um brinde à existência...à saúde do meu amor!

Acertei no tom...disse em dó maior.

domingo, 21 de junho de 2009

Romeu

Romeu.

Romeu..

Romeu...

Meu..

Eu.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Declaração de Prazer

Podes não ter vindo a mim como outros vieram, mas vieste;
Podes não estar tão próximo de mim como os outros, mas aproximaste-te;
Sabemos ambos o que trabalhámos, sabemos ambos o que custou, sabemos ambos que aos poucos vens ter comigo, sabemos ambos que segunda-feira vais estar comigo como nunca voltaremos a estar, sabemos que no fim vamos chorar os dois quando as luzes ja estiverem apagadas e existir o apenas tu e eu...

Gosto de nós, gosto de ti, gosto de fazer-te, de moldar-te, gosto que sejas meu e não igual a tantos que para aí andam, sei que a maioria não vai gostar mas agora páro e penso...e porquê fazer as coisas para a maioria? Eu gosto de descobrir-te, eu gostei de dar-te esta oportunidade, de dar-nos esta oportunidade, e sei que tão cedo não me volto a apaixonar por uma personagem como por ti, sim...a palavra certa é paixão! Só uma paixão traz tantos dissabores, traz tantas discussões, tanto mal estar mas também tanta alegria quando por alguns momentos sinto que acertei num gesto, numa entoação...o nosso dia é assim, feito de pequenas vitórias, de pequenos passos para eu alcançar-te, de pequenos gritos interiores para te soltares de mim.

Não somos iguais, nunca o seremos, aquilo que eu sei do amor nunca o diria como tu, guardaria para estas linhas e nada mais, não me abriria tanto como tu, talvez por isso te admire e respeite a tua exposição, e talvez também por isso seja díficil alcançar-te, ou então não estava habituado a trabalhar realmente e até agora foram apenas facilidades, porque não dizê-lo? Lutei por conseguir-te, de todo o lado me disseram que eu não era capaz (de muito lado também me disseram que eu ia conseguir) e hoje eu sei que consegui, com as dúvidas do costume, mas sei que consegui. Não estás nos parâmetros que se espera, estás nos meus, naqueles que realmente me interessam, naqueles que eu tenho para dar porque se fizesse igual aos outros não valia a pena continuar a fazer da representação o meu modo de vida (a minha vida).

Não quero ser egocêntrico, pensar que sou o melhor, ter o meu nariz a tocar na lua, quero continuar a ser aquilo que sempre fui, aquele que quando sobe a palco sabe o que tem a fazer e que cá fora é tão comum como qualquer comum que por aqui ande. Tenho que ser diferente nas tábuas, na minha cabeça, aí continuarei a ser diferente, mas a guardar essa diferença para mim, aí sim sou egocêntrico.

Vou continuar a chorar, em palco praticamente não consigo mas sozinho ninguém bate o meu recorde...e tenho de mais uma vez agradecer aos que sempre estiveram comigo, aos que continuam a acreditar que eu sou capaz de fazer mais e que ainda tenho muito para mostrar; eu próprio às vezes não confio em mim, digo que não vou ser capaz e depois...depois acabo por fazer e isso é o melhor de tudo. O não desistir e continuar aqui de cabeça levantada e quanto a isso, meus amigos e "inimigos", vão ter sempre de levar comigo assim, porque não sou avestruz e não nasci para ter a cabeça dentro de um buraco de terra.

sábado, 13 de junho de 2009

Naufrágio...

Nunca sabemos o que salvar no meio de um naufrágio, pelo menos deve ter sido isso que pensou Robinson Crusoé quando se viu atirado para uma ilha, sim, apeteceu-me falar de Robinson Crusoé, e também de uma ilha...vivemos todos numa ilha, felizmente numa em que não temos de conviver com o Alberto João Jardim se não, com certeza, que rapidamente iríamos construir um bote e fugir rumo ao Atlântico, mesmo que isso custasse a nossa vida, antes isso do que viver com o fascismo encapuçado. Mas não quero falar de política, prefiro ficar-me pela ilha...pela água...pelas árvores...e lembro-me de fruta, muita fruta pelo chão e nas próprias árvores, fruta apodrecida muitas vezes, também nós aqui, na nossa ilha, temos muitas vezes de conviver com fruta apodrecida e fingir que ela ainda está madura. Todos naufragamos sem nos apercebermos das dimensões do naufrágio, somos todos um barco com destino no vazio, no marasmo, na impaciência também. Porque é que navegamos? Porque é que não paramos no meio do oceano e ficamos apenas a olhar para as gaivotas, e porque não desejarmos ser uma gaivota? Mas uma que nunca pouse em terra, uma que ande sempre de rocha em rocha, apenas isso...o mar e as rochas. Não sei se conseguia ser gaivota, deveria morrer de medo de me cair uma pena e já não conseguir voar...e não ia gostar de ser uma gaivota sem uma pena, tinha que as ter a todas. Aos domingos também não me importava de ser rocha e de ficar quieto, a receber as outras gaivotas, senti-las no meu dorso enquanto a água ia batendo em mim, enquanto as ondas se desfaziam ao chegarem-se a mim, é sempre assim, desfazemos sempre tudo aquilo que nos toca, não sabemos ser cuidadosos, somos brutos por natureza. Tudo isto nasceu com Robinson Crusoé, ou talvez com o náufrago do Tom Hanks, aquele que por amigo tinha uma bola e que mais tarde regressa a casa e já não tem lá nada que o espere, que o identifique. A ideia do naufrágio persegue-nos, a ideia de perdermos tudo no mar, ou talvez na rua, seja onde for...o perder tudo. Isso é o que nos assusta...bem...isso e o infinito e mais além (sim, deu-me para referir o toy story agora...) enfim, vou deixar-me levar mais um pouco...rumo a esse infinito.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Fim da Vida

"Sabes o que é pior? Saber que um dia vou morrer e que ainda deixei muita coisa por fazer aqui...agora que estou a chegar ao fim da vida é que apercebo que não fiz nada daquilo que realmente queria, apenas comecei as coisas, nunca as terminei, deixei tudo incompleto, é triste sabes...é triste chegar a este ponto em que já não temos mais caminho e sentir que agora é que tudo estava a começar, que agora é que ias começar a saber viver. A vida marca-nos, fere-nos, dá-nos golpes que nunca imaginámos receber e principalmente...principalmente ela é esquiva, foge-nos por entre os dedos sem dar-mos conta dela, o tempo passa por nós, sabes? O tempo passa por nós e não tem pena nenhuma. Não me arrependo de nada do que fiz, sabes? Quer dizer, obviamente que há coisas que eu poderia ter feito de outra maneira, e se fosse hoje certamente que seria tudo diferente, mas faz parte dar pequenos erros, ter algumas falhas pelo caminho, eu pelo menos penso que sim. Gostava de ter escrito um livro, sabes? Um livro daqueles cheio de histórias, um daqueles de que eu pudesse ficar orgulhoso quando o desse a ler aos outros, um daqueles que os outros pudessem ficar orgulhosos de mim quando o lessem, sim...gostava de ter escrito um livro. Gostava de ter feito tanta coisa, de ter visto muitas coisas nascerem das minhas mãos, percebes? Sinto que as minhas mãos deixam muito por fazer, como se elas fossem construtoras de algo que nunca vai existir, é estranho...é estranho tudo isto, todos estes pensamentos, mas talvez seja o normal quando se chega a este ponto, a esta encruzilhada. Não gosto de pensar no que ficou para trás, se ficou para trás é para lá ficar, mas talvez no final da vida devesse-mos rever tudo aquilo porque passámos, tudo aquilo que aconteceu, sim...talvez isto seja normal para um velho como eu. Bom, já deves estar farto de me ouvir, muito bem. Vou deitar-me e talvez seja hoje que a morte me visite, ao menos que venha durante o sono e não bata à porta. Nunca gostei de estranhos..."

domingo, 7 de junho de 2009

Senhora da Nazaré

Cheguei a casa e respirei o meu ar, aquele que sempre foi meu e que ninguém pode ver, aquele que apenas entra em mim e não tem espaço para caber no nariz dos outros. Entrei em casa e apeteceu-me chorar, chorar pelo que fui e pelo que fiz, pensar nos momentos em que fui feliz e naqueles em que não tive ninguém ao lado (e afinal a minha vida sendo verso soube ser fado e eu sempre caminhei com a esperança de encontrar alguém que soubesse para onde eu ia). Cheguei a casa e lembrei-me do que fui, dos lugares por onde andei, as mudanças que o meu corpo sofreu, que eu próprio também sofri, lembrei-me de tudo aquilo que passou por mim, lembrei-me principalmente das minhas lágrimas num quarto às escuras, à espera que alguém se lembrasse que eu existia e me quisesse dar um abraço. Lembrei-me de tanto e fiquei com tão pouco...fiquei apenas com aquilo que devia ficar, desses tempos apenas algumas memórias sobraram e sei que essas vão manter-se pela vida toda, vão ficar gravadas em mim e eu nelas...sabes uma coisa? Agora sou feliz, agora consigo sentir por breves momentos o que é a felicidade porque estou contigo, a minha solidão arranjou companhia e já não sabe o que é estar sozinha; construíste a minha felicidade e ainda me trazes sonhos, hoje o fado é outro...

"...também sou um pescador que anda no mar
Ao largo da vida apreoei nas vagas sem fim
vi o meu barquito de sonhos quase a naufragar
As minhas redes lancei com confiança..."

terça-feira, 2 de junho de 2009

Voltar a Ser (fado do regresso)

Eu vou
voltar a ser
tudo o que eu já fui um dia
tudo o que eu já queria ser
antes de te querer

Eu vou
voltar a ver
o lado bom das pessoas
as suas coisas boas
antes de entristecer

Mais vale
somar paixão, somar desilusão
até tudo nos doer
porque eu vou
Voltar a ser
tudo o que eu já fui um dia
tudo o que eu já queria ser
antes de te querer

Eu sei
que vou voltar
ao coração por um fio
porque é do meu feitio
e já não sei mudar

Mais vale
somar paixão, somar desilusão
até tudo nos doer
porque eu vou
Voltar a ser
tudo o que eu já fui um dia
tudo o que eu já queria ser
antes de te perder.

João Monge

sexta-feira, 29 de maio de 2009

O Olho do Camões

Mataram o Camões junto à estátua do Pessoa...meu Deus! Isto não é crime em qualquer parte do mundo? Como se mata um poeta junto a outro? É quase uma coisa profana, irreal até...um tão próximo do outro. Ainda por cima dizem que levaram um dos olhos ao homem, isto não se faz, chega a ser desrespeitoso e a mim até me mete algum nojo sinceramente...onde é que já se viu fugir com um olho do Camões? Mas alguém quer comer aquilo ou algo do género? É que se ainda fossem uns olhos verdes, grandes, assim como aos meus vá, ainda valia a pena, agora aquele castanho murcho que nem um rasto de poema tinha dentro...não, isto cá para mim é alguém que já andava com esta ideia do olho há muito tempo, é que só pode ser isso! Mas porquê o do Camões? Não podiam ter tirado o chapéu ao Pessoa? Ele precisava de apanhar algum sol e tudo, até lhe faziam um favor, depois aparecia todo moreno à sua amada Ofélia e já não havia cá confusões da parte dela, atirava-se logo ao morenaço que era um consolo, realmente, bem que o Pessoa podia ir a um solariozinho, e já agora a um ginásio ganhar músculo, está sempre com aquela cor de ferro ali junto á Brasileira, qualquer dia ainda enferrujam o homem e depois é que eu quero ver o que acontece. Eu sei que isto é difícil de acreditar, ainda por cima a história nem saiu nos jornais nem nada, há quem diga que foi abafada pelo Sócrates, ele não queria que tamanho crime fosse dito à boca cheia perante o país inteiro, olha a vergonha que seria...agora o melhor é tentar esquecer o caso e já sabem, nada de pedir carapaus ou sardinhas, nunca se sabe o olho que se está a comer...

terça-feira, 26 de maio de 2009

O dia em que nasceste...

Hoje chorei contigo e assustei-me, assustei-me porque cheguei a duvidar que podesses um dia nascer de dentro de mim, e hoje, sem o esperar, sem ter vontade de fazer fosse o que fosse, apareceste...assim, sem aviso, sem me dares sinal que podias aparecer não à minha frente mas no meu corpo. Esqueci a dureza de um Cláudio que demorou tão pouco a nascer, vieste tu com as tuas mãos leves, com a tua alma de chumbo e invadiste-me, senti a tua fraqueza em cada ponta das minhas veias, eras tu que choravas e não eu. Juro que aquelas lágrimas não são minhas! O Renato não chorava num palco, o Renato não sabia o que era emocionar-se aquele ponto (será que ele sabia o que era a emoção?). Agora sei que tenho de fazer-te, agora sei que tenho um lugar para ti, agora sei que posso chegar a personagens como tu, saí da limitação em que julgava encontrar-me e fui campo fora para a libertação que sempre procurei. Estou a trabalhar a sério pela primeira vez, pela primeira vez sei o que é esforçar-me, sei o que é fazer algo para o qual não estava fadado, a oportunidade estava na minha mão e agarrei-a, vou ser capaz de mostrar a todos que ainda tenho muito para dar e que não estou parado numa linha imaginária. Vou renascer perante mim mesmo e sentir a satisfação que só têem aquelas pessoas que deixam as suas lágrimas no palco e o seu esforço. Não sei se aqueles que estão acima de mim vão compreender tudo isto que se passa mas já não trabalho para eles, está nas minhas mãos fazer o que eu quiser comigo, não preciso de provar nada perante os outros se não o provar primeiro comigo mesmo, se eu trabalhar afincadamente alguém há-de notar, se não for quem está acima serão aqueles que estão ao meu lado, e é também a esses que eu agradeço aquilo que consegui hoje. A vocês que continuam comigo, obrigado. É também graças a vocês que consigo o que consigo, seja no Romeu, seja naquilo que for. Sem vocês era mais um, sozinho; e sozinho, não vale a pena fazer Teatro.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Declaração de Interesses

Os olhares cruzaram-se e os dois coronéis desmaiaram, vindo a cair, mais tarde, dos seus altivos cavalos. Isto nao é uma história vulgar, é antes uma preciosidade que nunca ninguém se atreveu a contar, uma daquelas histórias que nunca mais vão acontecer, principalmente porque é difícil encontrar um coronel sem um olho e outro sem um braço, como se as suas defeciências motoras fossem uma medalha que transportam ao peito. Quando as pistolas apontaram os dois coronéis pensaram em fugir mas também como um dos homens que apontava era perneta e o outro tinha uma corcova não havia problema nenhum (era quase como se aquele encontro fosse um encontro secreto de gente com quezílias no corpo, um desses encontros secretos que se fazem a céu aberto todos os dias).
Bem, para dizer a verdade esta história não tem sentido, pelo menos porque até hoje nunca ninguém ouviu falar destes tais coronéis nem dos dois outros homens, talvez um dia vá nascer disto tudo uma telenovela qualquer (rezo para que seja mexicana) e tudo isto adquira a sua devida importância. Quanto a mim não tenho mais nada a dizer, não sou escritor de telenovelas e muito menos sobre velhas histórias do Oeste, e muito, mas muito menos, sobre histórias que envolvam coronéis e bandidos. Se me deixassem contar a história do cavalo é que era bom, era mesmo bonito o raio do cavalo, mas também como não tinha um dente se calhar é melhor esquecer a história e fixar-me apenas nos dois coronéism (espera lá, mas eu disse que não podia escrever sobre os tais coronéis...então falo do quê?) Se calhar eles eram casados, talvez uma das mulheres até não tivesse uma mão e a outra lhe faltasse o dedo mindinho, eu pelo menos acho bastante graça à ideia de alguém não ter o dedo mindinho, quer dizer...se calhar não tem assim tanta piada...a bem dizer isto tudo não tem assim grande piada e deverá ser dos textos mais estúpidos que eu já escrevi. Lá vão dizer que estou a baixar o nível, que já não sou o que era, se calhar até vão referir que brequei, que já não dou mais, que me ultrapassaram...ai meu Deus que fui atropelado e nem dei conta!! Será que ainda vou a tempo de mudar? Não! É tão bom ser calão e não dar explicações a ninguém, ser preguiçoso, cometer pecados capitais e depois ir confessar-me...ai Renato, Renato...és uma sombra do que foste ou daquilo que vais ser? Em que te transformaste? Naquilo que és, o melhor ser humano do mundo! Chamem o Beckett por favor, estou aqui a dar provas da minha inteligência, sim sim, sei falar de Beckett, de Pinter, Pirandello, vejam como eu sou culto e as coisas que eu sei, mas será que a inteligência me serve de alguma coisa? A inteligência não dá presença em palco...caramba! Que pena o ser inteligente não me servir de nada, se ao menos tivesse jeito para representar, isso é que eu gostava! Não se pode ter tudo não é? Logo por desgraça fui nascer com cérebro. Que pena não ser dinossauro...talvez se eu fosse dissessem que sou inteligente no palco e que tinha presença. Pode ser que ainda me nasça outra mão, e assim ao menos vou para o circo e sirvo de aberração.
Adoro naquilo que me tornei, porque não mudei nada, ao contrário de outros.
Que a pele nunca me caia e seja sempre o mesmo camaleão. O meu cérebro agradece.

domingo, 24 de maio de 2009

Vozes do Mar

Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d'oiro intenso
Donde vem essa voz cheia de mágoa
Com que falas à terra, ó mar imenso?

Tu falas de festins, e cavalgadas?
De cavaleiros errantes ao luar
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?

Teus cantos d'epopeias? Tens anseios
D'amarguras? Tu tens também receios
Ó mar cheio de esperança e majestade?!

Donde vem essa voz, ó mar amigo?...
...Talvez a voz de um Portugal antigo
Chamando por Camões numa saudade!

Florbela Espanca

sábado, 23 de maio de 2009

Vou Ficar

Vou ficar.
Está nas minhas mãos ser aquilo que eu quiser e se trabalhar terei sempre os frutos daquilo que semeei; não vou olhar para o lado e apenas em frente, seguir este caminho que sempre foi o meu desde que o escolhi. Vou continuar a escolher personagens que talvez não sejam para mim e, de vez em quando, dar-me ao luxo de ter aquelas que me encaixam que nem uma luva, vou continuar a fazer as tais farsas em que dou largas aquilo que sei que posso fazer e continuar a aceitar as tragédias que aos poucos já vão fazendo parte de mim; vou continuar a provar que sou capaz de fazer mais do que aquilo que pensam para mim e se, contudo, não conseguir convencer ninguém ao menos vou ter a minha própria satisfação (não dizem que esta é uma profissão egocêntrica?)
Vou continuar a ser feliz a fazer isto, continuar a andar com a cabeça às voltas a pensar na melhor maneira de fazer as coisas, continuar o meu caminho até ao fim do fim, e quando tudo isto terminar ter a certeza que fiz o que fiz porque quis e que ninguém teve nada com isso. E vou agradecer, agradecer aqueles que tiveram comigo desde o início e que desde sempre acreditaram que eu tinha muito para dar, agradecer às tábuas que dia-a-dia me fazem crescer e vou rir...por ser a coisa que eu faço melhor.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Amanhã

Nunca sabemos quando caminhamos para o fim, sabemos apenas que a cada passo que damos é menos um para lá chegar, estou nesse estranho precípicio entre o ir e o ficar, entre o continuar a acreditar e o sonhar para outros lados. Não foi ali que o meu sonho nasceu, ele apenas tomou forma, e sei que se me for embora levo comigo o mesmo sonho que tinha quando entrei, isso é a única coisa que ninguém me pode tirar: a certeza daquilo que quero ser. Pode demorar anos, meses, mas sei que nada me irá demover disto tudo em que acredito e que sempre lutei para alcançar. Não sei para onde vou, sei apenas onde, por enquanto, não me sinto bem...amanhã será um dia decisivo, o início de uma despedida ou a chegada a uma nova realidade.