quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Valsa

Ficámos finalmente meu amor
Na praia dos lençóis amarrotada
O mal que venha é sempre um mar menor
Sorriso de vazante na almofada

Se chamo som das ondas ao rumor
Dos passos dos vizinhos pela escada
É porque à noite acordo de terror
De me encontrar sem ti de madrugada

Qual a cor desta noite e de que dedos
São feitas estas mãos que não me dás
Ó meu amor a noite tem segredos
Que dizem coisas que não sou capaz.

António Lobo Antunes

domingo, 26 de outubro de 2008

Vinha Dizer Adeus

Vinha dizer adeus mas reparei
Que na faia do pátio era Setembro
Vinha dizer adeus mas encontrei
Um livro na cadeira do alpendre


Vinha dizer adeus mas as maçãs
Estavam no forno a assar e esse cheiro
Fez-me parar na porta das manhãs
A relembrar o nosso amor inteiro


Vinha dizer adeus mas o teu cão
Veio lamber-me os dedos hesitantes
Vinha dizer adeus mas vi no chão
A manta ao pé do lume, como dantes


Vinha dizer adeus mas senti fome
Ao ver a mesa posta para dois
Dálias e o guardanapo com o meu nome
Sem ter havido o antes nem depois


Vinha dizer adeus mas que surpresa
À passionata… o último andamento
Como se tu tivesses a certeza
Que eu ia chegar nesse momento


Vinha dizer adeus mas nesse olhar
Vi tanta solidão, tantos abraços
Tantas amendoeiras ao luar
Que me escondi chorando nos teus braços


Vinha dizer que já não estou contigo
Que este amor singular já não é nosso
Vinha dizer adeus mas já não digo
Vinha dizer adeus mas já não posso!


Rosa Lobato de Faria

Tu és a poeta eleita pelas frutas
Pelas cores, pelo aroma que têm as estações;
Só tu sabes ser a água fresca
Pelo meio da poesia
E trazes amoras escondidas
Num cesto já gasto.

Só tu sabes contar o amor
Como se fosse um segredo
E só tu és capaz de na alegria
Pores o estranho sabor a mel
Que quando menos se espera
Passa pela garganta da tristeza
E sai em pranto, feito fel.

És a festa dentro da nostalgia
És as cicatrizes que existem na poesia
Foste formiga que encontrou o seu carreiro
Trouxeste um mar de palavras a todos nós

Não se agradecem aos poetas
Agradecemos a Deus
Por pôr na Terra estes seres eleitos.

sábado, 25 de outubro de 2008

Eu Quero Ter Eternamente Este Segredo

Eu quero ter
Eternamente este segredo
Que juntou as nossas mãos
Linha a linha, dedo a dedo
Eu quero ver
E adivinhar as ratoeiras
Espalhadas no caminho
Insinuantes traiçoeiras

Eu quero ter
A cega e surda resistência
Que impede os nossos olhos
De perderem inocência
Eu quero estar
Para além da multidão inquieta
E afastá-la do cupido
Que nos aponta uma seta

Eu quero apenas
Ler no céu do meu país
Que conquistei o teu amor
E o meu direito a ser feliz
Eu quero dar
À nossa vida a dimensão
Dum sorriso de criança
Dum discurso de Platão

Eu quero estar
Em sintonia permanente
Quando fazemos amor
No nosso quarto crescente
Eu quero ter
À nossa porta um Deus antigo
Que nos guarde no seu reino
E nos proteja do perigo.

Ana Zanatti

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O Egoísmo Não Se Perdoa

Dá-me o doce cheiro de Novembro
E esse suave gosto a castanhas
Que ainda estão quentes da fogueira
Já extinta...

Dá-me as folhas do meu Outono
Para que eu possa lançá-las ao vento
E ver o desprezo que a natureza tem
Por quem apenas voa...

Dá-me essas gotas de chuva
Que levaste um dia nesse casaco
Ainda preso a um cabide da minha alma
Feita palavras...

Dá-me tudo aquilo que me deves!
Quanto a mim...nada te dou...nada te devolvo
O que tenho é meu e fica comigo
O Egoismo não se perdoa...

Mas quem rouba ao vento
Não merece desculpa.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Tenho A Pátria Num Rosto De Criança

Tenho a Pátria num rosto de criança
Que me pergunta porque estou alegre...
Ouve criança: são as ruas todas
Com a pureza que o passado deve

E fico a olhar-me e a olhar o reino aberto
Nas palavras caladas do lamento
Que fez a minha infância adormecida
A chorar, em silêncio, o pensamento

Horas perdidas nos regaços frios
Anos achados para te dizer:
O Sol começa agora a ter sentido,
E nós criança, vamos renascer.

Vasco de Lima Couto

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Desculpa

Desculpa ter nascido com as mãos pequenas e não poder construir tudo aquilo que te digo, mas não tenho a culpa de não ter umas mãos tão grandes como a lua ou como o sol, bem sei o que vais dizer, que ninguém tem a mão do tamanho de prédios e eles são construídos por homens à mesma; então talvez tenha de reconhecer que tenho de te pedir desculpa pela minha cobardia, tenho medo que a obra fique tão grande que me engula e eu nunca mais veja a luz dos teus olhos, se a luz de Lisboa podesse ter ficar viva em algom retrato seria no teu; as tuas pernas são como duas pontes onde passa o Tejo e o teu peito são as colinas do Castelo, lá bem no alto...tens Lisboa no corpo e nem o sabes reconhecer. Apenas queria que fosses também a minha cidade, que fosses um pouco minha, não toda, não sou ninguém para ter uma cidade só para mim, um pouco de Lisboa bastava-me. Desculpa este tamanho com que nasci, mas é assim que todos nascemos, não foi uma escolha minha, foi uma coisa que me foi dada sem me terem pedido opinião. Seria tudo tão diferente se eu fosse grande, do tamanho dos arranha-céus, ou maior ainda...mas isto é apenas um sonho, e nem sempre ele comanda a vida...

domingo, 19 de outubro de 2008

Que Nasce Da Minha Sede

Invento o teu seio na memória
Sou cabeça sem corpo sem vida
E penso que inventei uma glória
Onde só havia a vontade vencida

Sou o desejo de algo que aconteceu
Sou a fome que não pode ser saciada
Sou o mito mais completo de Prometeu
Sou a poesia de Camões nunca pensada

Afinal, sou vã poesia, vão momento
Sou tudo aquilo que o poema é
Sou todo este corcel do pensamento
Que nasce de cada gesto, cada maré

Sou esta vida, este ciúme, esta lenha
Que ateia um fogo que em mim se perde
Sou mais tudo aquilo que ainda venha
Eterna mágoa que nasce da minha sede.


Dei-te Um Nome Em Minha Cama / Preciso de Espaço

Dei-te um nome em minha cama
Aberta no meu Outono
Depois amei-te em silêncio
Que é uma forma de abandono

Dei-te um nome em minha cama
Rasgada em lençóis de sono
Tentei ser tudo o que era
No gesto da mão parada

Campo e corpo aberto ao vento
Que encaminha a madrugada
Tentei ser a Primavera
Mas chorei meu triste nada

Vi-te ao canto da memória
Por te viver e sonhar
Amor de amor sem glória
Como um rio ao começar
Que te veio contando a história
Onde eu não posso morar.

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Preciso de espaço
Para ser feliz
Preciso de espaço
Para ser raíz
Ter a rede pronta
Para o mar de sempre
Ter aves e sonho
Quando a terra escuta
E falar de amor
Aos tambores da luta

Ter palavras certas
No sol do caminho
E beber a rir
O doirado vinho
Misturar a vida
Misturar o vento
E nas madrugadas
Quando o povo abraço
Para estar contigo
Preciso de espaço

Preciso de espaço
Para ser feliz
Preciso de espaço
Para ser raíz
Caminhar sem ódio
Falar sem mentira
Ter meus olhos longe
Na luz d'uma estrela
E ser como um rio
Que se agita ao vê-la.

Vasco de Lima Couto

As tuas veias eram rios de fado
Que corriam pelas palavras...

sábado, 18 de outubro de 2008

Visita

Esconde-te da noite inquieta
Que te visita sem te pedir licença,
Talvez que ela desista e procure
Outro corpo onde seja bem-vinda
E não olhada com um certo desprezo.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Na Corda Bamba

Desculpa por ter roubado as rosas do jardim
Mas o vermelho desperta em mim a cor do ciúme
E não consigo que os meus olhos se escondam
Neste desassossego que decidiu fazer morada em mim

Talvez que na hora em que a noite cai
E a alma parece elevar-se ao céu
Com asas feitas de sonho
Eu consiga ser o gigante que vive na montanha
E que de vez em quando espreita a cidade

Mas hoje apenas consegui ser ladrão
E roubar essas rosas que plantavas
Para um dia darem algo de mais puro
(desculpa o fim deste tempo...)

Quando bater o meio-dia podes
Podes vir buscar as sementes
Que guardei para ti...
Não substituem as rosas
Mas poderás plantar sonhos nossos
(desculpa o egoísmo...)

Talvez que um dia chegue
Em que eu saiba ser destino
E os teus passos caminhem para os meus
(vã glória...sonho desfeito)

Peço desculpa pelos meus sonhos
Mas não tenho culpa da cabeça
Não querer saber de comandos
E seguir um caminho que só ela
Sabe onde pode chegar...

Desculpa as palavras que não te digo
Mas quando chegar o tempo das cerejas
Talvez caia em nós a realidade
E eu prefiro suspender o tempo
Nesta indefinição...

Estamos na corda bamba
Quem será o primeiro a cair?

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Um Dia / Ás Vezes Perco-me De Mim

Um dia rasgo os teus olhos cor de mel
Um dia serei a abelha do teu corpo
Um dia dou-te a provar o amargo fel
Que existe num homem vivo ao estar morto

Um dia vou ser a glória compreendida
Um dia serei charco mas de lua
Um dia serei a história mais vivida
Que por ser vivida é minha e tua

As nossas vidas andam par a par
Nossas vidas são a brisa calma
É tudo aquilo que brilha no ar
E quando pousa aconchega a alma

Um dia vou ser partida em ser chegada
Um dia…já não sei…nada cuido
Um dia acordo e continuo a ser nada
Porque ousei sonhar ser quase tudo.


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Às vezes perco-me de mim
E nem sei dizer onde estou
Ah! Porquê de eu ser assim
Ser este pássaro que não voou

Continuo com os pés em terra
Sou árvore sem ter jardim
Cresço para lá da flor da serra
Às vezes perco-me de mim

Sou de longe, onde o futuro
Foi canto que não cantou
Às vezes tento ser mais puro
E nem sei dizer onde estou

Quero ser a coisa amada
Coisa viva que viva em mim
Mas perco-me neste não ser nada
Ah! Porquê de eu ser assim

Queria ser palavras na liberdade
Sou utopia que não terminou…
Mas apenas consigo, na verdade,
Ser este pássaro que não voou.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Adriano / Amália

Não era só a voz o som a oitava
Que ele queria sempre mais acima
Nem sequer a palavra que nos dava
Restituída ao som de cada rima

Era a tristeza dentro da alegria
Era um fundo de festa na amargura
E a quase insuportável nostalgia
Que trazia por dentro da ternura

O corpo grande e a alma de menino
Trazia no olhar aquele assombro
De quem queria caber e não cabia

Os pés fora do berço e do destino
Pediu uma cerveja e poesia
E foi-se embora de viola ao ombro.

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Na tua voz há tudo o que não há
Há tudo o que se diz e não se diz
Há os sítios da saudade em tua voz
O passado o futuro o nunca o já
Há as sílabas da alma e há um país
Porque tu mais que tu és todos nós

Na tua voz embarca-se e não mais
Não mais senão o mar e a despedida
Há um rastro de naufrágio em tua voz
Onde há navios a sair do cais
Nessa voz por mil vozes repartida
Porque tu mais que tu és todos nós

Há mar e mágoa e a sombra de uma nau
A gaivota de O'Neill e o rio Tejo
Saudade da saudade em tua voz
Um eco de Camões e o escravo Jau
Amor Ciúme Cinza e Vão Desejo
Porque tu mais que tu és todos nós.

Manuel Alegre

Nada Relativo

Chama de poeta às estrelas
E depois olha de soslaio para a lua
E vê o ciúme que mora nos seus olhos,
Já não lhe bastava o sol a matá-la
Diariamente...

Mas não percas o teu rumo
Continua a olhar e observa os pontos
Que se acendem lá em cima
Quando os sonhos descem à terra
E tudo parece relativo e fácil...

A minha vida é assim
É aquilo que eu quis, quero!
Aquilo que eu sonhei, sonho!
Aquilo que eu desejei e desejo!
Nada relativo
Tudo com a sua devida importância.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Desde Que Me Deixem Ser Vida

Escrevo as mais belas palavras
Que a língua portuguesa deu ao mar
Sou o sal sem rota da nossa terra
Sou o trigo que cresce farto no campo
E sou a vida do meu povo trabalhador

Fiz-me uma enxada de terra lavrada
E sou semente ainda por crescer
Sou a minha terra toda ela levantada
Pela alvorada que não sabe morrer

Hoje eu escrevo à pátria
Dentro de mim Camões, Pessoa
E nos poemas que escrevo
Há um pouco de Lisboa
Que é um pouco de saudade

Hoje sou o campo liberto
Sou a Avenida iluminada
E eu que vivi no deserto
Encontro, enfim, o "Encoberto"
Que era a voz de um povo
Assassinada

Hoje sou D. Sebastião
E sou o ventre de onde saí
Sou a fome daquilo que fui
E sou aquilo que vivi

Hoje sou o grito que vem do fundo
E que se faz dia perante o sol
O Astro Rei escrito
A palavra dita e repetida
Sou tudo o que quiserem
Desde que me deixem ser Vida!

Fecho os olhos

Esperei por ti todas as horas
Mas não sou a sombra dos teus passos
Nesses fins de tarde de Outono
Em que as folhas se lembraram de cair
E de seguir o seu rumo natural

Talvez hoje eu deva ser Inverno
E seguir outro caminho de neve
Pois não se pode esperar que os passos voltem
Quando eles não querem voltar...

Temos de seguir o caminho natural
Das estações do ano

Talvez um dia fosse folha da tua árvore
Mas hoje elas caem sem rumo certo
E eu vou voar para longe
Onde os Invernos são mais quentes
E lareiras ardem sem se extinguirem

Desculpa
Mas agora vou fechar os olhos
E reter apenas as imagens que eu quero
No pensamento...talvez que ele me obedeça
Só os volto a abrir quando á minha frente
A Primavera se apresentar como nova estação
Aí eu talvez volte a acreditar em árvores
Em sonhos...em folhas...

Por agora
Fecho os olhos
E vejo apenas o que eu quero.

sábado, 11 de outubro de 2008

Sombra do Desejo

Não vês a sombra do desejo
Furtiva em cada esquina do teu gesto
Não vês que tudo aquilo que em ti vejo
É tudo em que o amor é manifesto

Não vês que as mariposas no cabelo
E a rosa que em teus lábios se desnuda
Não vês que o teu olhar é o modelo
Das vinte madrugadas de Neruda

Não vês no teu sorriso fogo posto
Que lavra nos fados onde morei
Se não vês tudo isto no teu rosto
Perdoa meu amor porque sonhei.

João Monge

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Rasgar o Ventre

Dá-me um pouco da tua vida
Mete sal na minha mão
Faz o mar
Constrói a lua
Há quem diga que ela
Se insinua...

Quero um oceano de paz
Quero ser capaz de rasgar
Estas ondas, rasgar este mar
Ir por aí fora, ser antes...agora
Ser futuro em ser passado
Ser tudo em não ser nada
Ser sonho...ser ilusão...

E acreditar nos astros
Nessas tais coisas siderais
Nesses caminhos que nascem
Nas palmas das mãos
E que rasgam a Via Láctea

Ser o Universo na Terra
Ser uma estrela no infinito
E acima de tudo, ser grito
Neste silêncio que nos aperta
E pedir sempre à terra deserta
Que me dê um oásis

Rasgar o ventre da minha mãe
Foi marginalidade sem verso
E hoje eu sei que o reverso
Disto tudo...
É ser na vida o que sempre quis.

Não Disse Nada Amor

Não disse nada, amor, não disse nada
Foi o rio que falou com a minha voz
A dizer que era noite e é madrugada
A dizer que eras tu e somos nós

A dizer os mil rostos de Lisboa
Ao longo do teu rosto se te beijo
À luz de um pombo chamo Madragoa
E Bairro Alto ao mar se te desejo

Não disse nada, amor, juro, calei-me
Foi uma voz que ao longe se perdeu
Cuidei que era Lisboa e enganei-me
Pensei que eramos dois e sou só eu.

António Lobo Antunes

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Carne Viva

Corta-me os pulsos
Com a faca mais aguda
E bebe o sangue que escorre
Por estas veias de tristeza
Que percorrem um corpo morto
E que não sabe ter instinto
Mexer-se...

Depois grita-me aos ouvidos
Faz de conta que eu sou surdo
E brinca comigo até a tua garganta
Perder a pulsação natural
E sentires as mãos dormentes
E as pernas a desfalecerem...

Por fim, agarra-me pelos pés
E arrasta-me pela rua mais sombria
Levando-me por becos que nunca vi
Para eu poder sentir o cheiro
A veneno que jorra pelas ruas

Faz tudo isto rapidamente
Que os golpes sejam certeiros
E acabes comigo num fôlego.

Não respires antes
Não te concentres
Para actos carnais
Basta ter a carne viva.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

E Agora?

E se de repente
A noite se fizesse dia
E acreditássemos que os nossos
Maiores sonhos podiam ser realidade?

E se o sorriso com que sempre sonhámos
Tivesse forma e ganhasse brilho...
O que faríamos?

Corríamos o risco e iamos
Até ao fim do caminho?
Ou apenas víamos da margem
O que podiamos ter ganho
Ou o que perdemos...

Mas por vezes vale a pena arriscar
Há olhos onde cabem o mundo
E onde queremos entrar
Nem que se tenham de arrombar portas

Nunca foi assim...
Até hoje não sabia o que era isto
E agora?
Por onde ir?




domingo, 5 de outubro de 2008

O Mar Fala De Ti

Eu nasci nalgum lugar
Donde se avista o mar
Tecendo o horizonte
E ouvindo o mar gemer
Nasci como a água a correr
Da fonte

E eu vivi noutro lugar
Onde se escuta o mar
Batendo contra o cais
Mas vivi, não sei porquê
Como um barco à mercê
Dos temporais

Eu sei que o mar não me escolheu
Eu sei que o mar fala de ti
Mas ele sabe que fui eu
Que te levei ao mar quando te vi
Eu sei que o mar não me escolheu
Eu sei que o mar fala de ti
Mas ele sabe que fui eu
Quem dele se perdeu
Assim que te perdi

Vou morrer nalgum lugar
De onde possa avistar
A onda que me tente
A morrer livre e sem pressa
Como um rio que regressa
À nascente

Talvez ali seja o lugar
Onde eu possa afirmar
Que me fiz mais humano
Quando, por perder o pé,
Senti que a alma é
Um oceano.

Tiago Torres da Silva

Um Homem Na Cidade

Agarro a madrugada
como se fosse uma criança
uma roseira entrelaçada
uma videira de esperança
tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem por força da vontade
de trabalhar nunca se cansa.

Vou pela rua
desta lua
que no meu Tejo acende o cio
vou por Lisboa maré nua
que desagua no Rossio.

Eu sou um homem na cidade
que manhã cedo acorda e canta
e por amar a liberdade
com a cidade se levanta.

Vou pela estrada
deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresça na vela da canoa.

Sou a gaivota
que derrota
todo o mau tempo no mar alto
eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.

E quando agarro a madrugada
colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada
um malmequer azul na cor.

O malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém
o malmequer desta cidade
que me quer bem que me quer bem!

Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis que me quer bem!

José Carlos Ary dos Santos

Foi no Coliseu

Naquela noite no Coliseu
Não sei o que aconteceu
Quando o olhar se cruzou
E alguém perguntou:
Falas tu / Falo eu

Foi a vida em concreto
Foi a palavra no tom certo
Foi a canção mais original
Foi o pecado no Carnaval

Mascarada
Fitas
Cores
Tudo à volta
Em mil andores

Confusão
Canções
Pelo ar andam
Ambições

Naquela noite no Coliseu
Tudo foi diferente
Tudo aconteceu...

Foi poema em concreto
Foi o longe que se faz perto
Foi o olhar que se adivinha
Foi a vida que é tua e minha

Foi aquilo que não tem explicação
Foi o bater do coração
Pulsação
Ritmo / Andor
Mascarada
Sem fulgor

Não sei explicar
O que esse olhar
Tinha de diferente
Um olhar que mente
Que fala verdade
Que sabe o que quer
Que sabe onde vai
Que canta poemas
Em tons desiguais
Um olhar de longe
De outros Carnavais

Foi no Coliseu
Que aconteceu
Aquilo que ninguém
Sabe.

sábado, 4 de outubro de 2008

Coisa Nova, Coisa Amar

Quando ela passa
Há uma coisa que anda pelo ar
Tem aquela graça
De quem sabe andar

Ombros direitos
Olhar perfilado
E sobre o peito
Um poema
Que sabe a fado

Seus pés têm sempre direcção
Viram para todo o lado
Mas sabem onde vão

Tem aquela coisa que não se sabe
Explicar
É aquela coisa
Que se nota ao andar...

Tem o pé do tamanho do mundo
Os cabelos são tranças de luar
São a história
A história sonhada
Que ninguém conseguiu inventar

É a viola que toca a compasso
O segredo está todo no passo...
É o caminho, é o atalho
É a mata, o ferro, o arado
É a terra, é o pão
Que se come e nasce do chão

É Portugal feito corpo novo
Num só corpo, todo um povo
É a magia que anda por aí
Que pára e volta a andar
É tudo o que se conta, o que se diz
O que se é capaz de amar

È razão
Poema feito
Corpo nascido
Sopro e fôlego
Coisa nova
Poema antigo
Discrição, medo
Angústia, fome
Tudo o que se conta
Tudo o que se diz
Tem nome
É feliz
Nasce felicidade
Cresce no vento
É razão, é realidade
É o passo da verdade

São passos escuros a andar
São pés feitos de luar
É tudo o que não se consegue
Explicar...

Coisa Nova
Coisa Amar.


Tinta Verde

Tinta verde dos teus olhos
Escreve torto no meu peito
Amores tenho eu aos molhos
Se pró teu me faltar jeito

No meu peito escreve torto
Na minha alma a dar a dar
Nunca mais eu chego ao Porto
Se lá for por este andar

Nunca mais eu chego ao Porto
Ao porto de Matosinhos
Adeus verde dos teus olhos
Estão cá outros mais escurinhos.


Vitorino

A esses olhos cor de bolota...

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

As Facas

Quatro facas nos matam quatro facas
que no corpo me gravam o teu nome
Quatro facas meu amor com que me matas
sem que eu mate esta sede e esta fome

Este amor é de guerra de arma branca
amando ataco amando contratacas
este amor é de sangue que não estanca
quatro letras nos matam quatro facas

Amando estou de amor e desarmado
morro assaltando morro se me assaltas
e em cada assalto sou assassinado

Ninguém sabe porquê nem como foi
e as facas ferem mais quando me faltas
quatro letras nos matam quatro facas
quatro facas meu amor com que me matas.

Manuel Alegre

Há experiências que não se esquecem, coisas que nos marcam, vivências que nunca se apagam. No final de 2005, início de 2006 tive essa experiência ao acreditar num sonho colectivo (fomos mais de um milhão): o de ter Manuel Alegre na Presidência da República. O mito feito corpo é completamente diferente, ter o poeta à nossa frente é inexplicável, é ter uma fonte onde não se pode beber toda a água. Nos discursos a que tive oportunidade de assistir era visível nos olhos de todos a vontade de mudança, a vontade de alterar algo, de recuperar algo que foi nosso e que é nosso (a pátria está entrenhada em Manuel Alegre; D. Sebastião nasce nos seus dedos e não há nevoeiro algum na sua escrita), havia a esperança de um futuro literário para o país, um Portugal feito poema, ousámos acreditar...
As palavras ficam-nos marcadas para sempre, aqueles momentos ficam gravados na memória, mais do que um corpo a visão de toda uma história num Homem, um Homem para além das páginas, um Ser Humano que nasce na liberdade do pensamento, na vontade de correr contra o tempo, contra a angústia...em algumas ocasiões chegamos a acreditar que D. Sebastião tenha voltado noutro corpo.

Partida

Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.

Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não há muitos que a saibam reflectir.

A minha alma nostálgica de além
Cheia de orgulho, ensombra-me entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a força de sumir também.

Porque eu reajo. A vida, a natureza
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar a bruma,
Correr no azul à busca da beleza.

Mário de Sá-Carneiro

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Ali, Então

Hoje crescem novas palavras e a estrada ganha um sentido único; hoje apetece-me representar, viver na pele de outro, voltar a sentir todas as emoções que não são minhas e sorrir por aí (embora algumas coisas ainda mantenham o sorriso fechado mas com trabalho e esforço a boca vai voltar a ficar iluminada por essa luz que não se explica); hoje arrumei mais um bocado do passado, mandei alguns papéis fora que já não tinham sentido algum e apenas traziam lembranças (para quê papéis? A memória vai fazendo o seu percurso sem precisar de sinais passados), tudo está diferente, é o regresso ao trabalho por um objectivo a longo prazo, é uma vontade que se renova diariamente. Hoje vivo mais, sinto mais Vida, e definitivamente são estes os caminhos que quero seguir...agora...sempre...pela eternidade.


Ali, então em pleno mundo antigo
À sombra do cipreste e da videira
Olhando o longo tremular do mar
Num silêncio de luas e de trigo

(Como se a morte a dor e o tempo e a sorte
Não nos tivessem nunca acontecido)

Em nossas mãos a pausa há-de poisar
Como o luar que poisa nas videiras
E em frente ao longo tremular do mar
Num perfume de vinho e de roseiras
A sombra da videira há-de poisar
Em nossas mãos e havemos de habitar
O silêncio das luas e do trigo
No instante ameaçado e prometido.

E os poemas serão o próprio ar
- Canto do ser inteiro e reunido -
Tudo será tão próximo do mar
Como o primeiro dia conhecido.

Sophia de Mello Breyner Andresen