domingo, 31 de outubro de 2010

A Rima Mais Bonita

Cansei-me dos poemas que escrevi
Mas não tive coragem de os rasgar
São versos meu amor... falam de ti
Mesmo que às vezes finjam não falar

O fado, quando chegou à noitinha,
Ficou todo contente por me ver
Pediu-me versos novos e eu não tinha
Rasguei-os antes mesmo de os escrever

Agora, quando o fado me visita
Já traz poemas feitos de tristeza
Cansado, escolhe a rima mais bonita
E deixa-a esquecida sobre a mesa

Então, chega a saudade e eu regresso
Às quadras que não tinha terminado
São versos, meu amor, quando as começo
Mas assim que as acabo já são fado.

Tiago Torres da Silva para
Marco Rodrigues

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

rosa madrugada

rosa desfolhada
pela madrugada
que em mim morreu
noite de lua
sem dizeres "sou tua"
ou eu pensar: "sou teu"

rosa que caiu
de mim partiu
sem me avisar
talvez volte a nascer
na fome de viver
deste meu cantar

rosa perdida
nas malhas da vida
na criação
rosa que murchou
caiu ao chão
rosa que ninguém apanhou

rosa que era minha
mas que sozinha
não conseguiu vingar
talvez um dia encontre
o seu lugar
e possa voltar a viver

rosa que morreu
à sede de água
que chorou
a minha velha mágoa
rosa que descobri
e que colhi para ti
numa velha madrugada.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

meu amor de janeiro

meu amor de janeiro
com cheiro a chuva e desejo
entrega-me o teu beijo
como se fosse uma promessa

meu amor de janeiro
triste fim sem conquista
meu amor despedaçado
que nasce na boca feito fado
e isola-se no peito de um fadista

e acende-se a velha lareira
onde a ternura incendeia
e nasce feita trovoada
janeiro tem destas loucuras
morre por entre ternuras
e perde-se na nossa velha estrada

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Recado

estou aqui, como se te procurasse
a fingir que não sei aonde estás
queria tanto falar-te, e se falasse
dizer as coisas que não sou capaz

dizer, eu sei lá, que te perdi
por não saber achar-te à minha beira
e na casa deserta então morri
como a luz do teu sorriso à cabeceira

queria tanto falar-te e não consigo
explicar o que se sofre, o que se sente
e perguntar, como ao teu retrato digo
se queres casar comigo novamente.

António Lobo Antunes

domingo, 24 de outubro de 2010

Mais uma vez aproxima-se a hora do poeta maldito.
Talvez em dose tripla.
Salve-se quem puder.

sábado, 23 de outubro de 2010

Um Fado Só Para Ti (Poema Tristonho)

Fiz um poema tristonho
Onde o teu amor risonho
Era promessa e desejo
Moldei teu corpo dormindo
E nos teus lábios sorrindo
A paz serena de um beijo

Podes ler neste poema
Todo o meu amor por tema
Minha alma em cada verso
Faz dele um hino de vida
Na grandeza desmedida
Do descrente universo

És o mote do poema
Misto de amor e saudade
De alegria e de verdade
És o retrato feliz
Daquilo que em ti mais quis
E em mim deixou saudade.

de uma grande poeta do fado
Maria de Lurdes de Carvalho

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Fado de Coimbra Nº4

Não vem ao caso dizer quanto te amo
Aperto o sol no peito e não és tu
Que noite nos meus braços se te chamo
Que vestido de sombra em corpo nu

Não vem ao caso dizer que sinto frio
Se amanheço a teu lado e tu não estás
E escrevo um poema que ninguém ouviu
Com as palavras que não sou capaz

Não vem ao caso dizer que ainda te espero
Como quem espera um filho que morreu
Digo que te desejo e não te quero
Digo que não te quero e não sou eu.

para quem ainda não conhece a poesia de
um dos nossos maiores autores António Lobo Antunes

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Outono da Partida

Vem ver-me no Outono da minha partida
Voltarei quando as folhas ficarem raiz
Se choro na hora da despedida
É porque senti, por vezes, ser feliz

Não deixo memórias nem retratos
Quero a minha imagem desvanecida
E onde houve rosas eu ponho cardos
Essa é a flor da minha partida

Não olho para trás, quero lá saber
Aquilo que passou já é passado
E se hoje ainda quero viver
É por a minha dor ser apenas fado.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Última Jogada

Fiz a minha última jogada
Mas saí sempre a perder
Quando se manda a última cartada
É preciso saber vencer

A vida às vezes tem sentidos
Que não conseguimos perceber
Por muito que queiramos vencer
Às vezes é tal a impossibilidade
Que nos entregamos à saudade
E saímos sempre sem nada
E a alma fica tão marcada
Que apenas me resta dizer:
Fiz a minha última jogada
Mas saí sempre a perder

A vida é como um baralho
Que apenas nos quer confundir
E quando tentamos rir
Daquilo que já passou
Percebemos que o tempo voou
E não nos deixou nada
Por isso grito à descarada
Sem precisar de me esconder:
Quando se manda a última cartada
É preciso saber vencer.

Lençóis de Lua

Amar-te,
Não pode, somente, ser um gesto vago
Tão pouco beber-te, demente,
Apenas num trago
Amar-te
É ter a alma, a voz, só por este prazer
De junto de ti, saber ser mulher

Com lençóis de lua
Abro a minha cama
E entrego-me nua,
Só, como quem ama
Com lençóis de lua,
Hora madrugada,
Abraço o teu corpo
Não preciso de mais nada

Amar-te,
É esse desejo, aceso na alma,
A fome maior, dum teu beijo,
Que nunca se acalma
Amar-te
É ter, em cada manhã, teus olhos nos meus
Dizer-te até logo e nunca um adeus.

Mário Raínho para a voz de
Maria Armanda

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Saltos Altos

Estava hesitante na direcção a seguir. As opções também não eram muitas, há bastante tempo que apenas dois caminhos se desenhavam á sua frente. Não sabia se a sua opção seria entrar no comboio ou seguir a direito e ver onde a estação poderia acabar (mas ela sabia onde a estação acabava, afinal de contas tinha-a percorrido uma vida quase inteira, e nunca tinha reparado em nada de diferente). O tempo nem sempre muda aquilo que está à nossa volta. Às vezes, somos apenas nós que mudamos, que vamos envelhecendo, e tudo o resto até vai ficando com um aspecto mais jovial e perfeito. Sim, há coisas que a nossos olhos parecem perfeitas. Provavelmente serão aberrações para outros olhos menos circunspectos que os nossos. Acabou por entrar no comboio, afinal era a única coisa plausível a fazer. Entrou e sentou-se num dos primeiros bancos que lhe apareceram, sem reparar sequer em quem estava ao seu lado ou à sua frente. Sentou-se e descalçou os seus velhos sapatos de salto alto. Não sabia por que insistia em andar com aqueles sapatos mas... bem, talvez soubesse porque os usava. Não era pelos centímetros a mais nem pelas dores nas costas que ganhava sempre como recompensa. A sua mãe usava sempre saltos altos, e para ela, aquilo era um símbolo da mulher. Pelo menos um símbolo da única mulher que alguma vez admirou. Não conseguiu conter um pequeno suspiro que lhe saiu da boca ao retirar os sapatos. Tinha calos e tinha-os apertados, até podemos falar em sofrimento se nos apetecer, embora seja um sofrimento consentido; enfim...
Olhou pela janela e não reconheceu a paisagem que se adivinhava à sua volta, isto também é normal pois nunca tinha ido naquele comboio e não sabia tão pouco onde ele iria parar. Apenas disse, na estação, que queria um bilhete para bem longe, e aquele pobre homem atrás do balcão vendeu-lhe mesmo um bilhete para um sítio qualquer longínquo, ou talvez não fosse assim tão longínquo mas ela não reconhecia sequer o nome que estava impresso naquele pedaço de cartão, por isso servia perfeitamente os seus propósitos. Reparou no homem que estava à sua frente. Preferia não o ter feito, agora teria de dizer alguma coisa para não parecer uma maníaca qualquer que se mete com o primeiro que lhe aparece à frente. Mas não abriu a boca, queria lá saber o que pensavam dela, há muito que isso a deixara de importunar. Bem, talvez não há muito tempo mas ao suficiente, umas horas já seriam o suficiente. Decidiu tomar um novo rumo, desaparecer da sua velha vida e tentar encontrar alguma que lhe ajeitasse melhor no corpo. Será que vendem vidas? Ou que andam vidas perdidas? Nunca o saberia pois mesmo que encontrasse alguma, certamente que não lhe iria falar com receio do que pudesse ouvir. Conclusão: esta melhor encontra-se num comboio com um bilhete de ida para nenhures. Mas também isso não é importante, se ela própria não se conhece para quê ir para um sítio que lhe fosse familiar? Sim, nenhures foi a melhor opção, é sempre.

sábado, 9 de outubro de 2010

Em Todos os Jardins

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como um beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 2 de outubro de 2010

Ai! Os Olhos de Bette Davis!
O talento, a força, a energia, o saber estar, o saber fazer, o saber atirar cada frase, cada sarcasmo, cada suspiro.
Mulher por inteiro, sem pedir licença a ninguém.
A grande actriz, a que se entrega, a que não foge.
Olha para a câmara à espera que esta olhe para si, e caso o seu olhar fuja, ela agarra-o com ambas as mãos.
E como descrever o seu encontro com Joan Crawford? Ainda existem actrizes assim? Ainda se fazem cenas daquelas? Ainda se encontra tanta fome no meio de tanta arte? Cada uma a ver o que pode comer, as presas que estão á sua volta, cada uma a lutar pelo seu ringue.
E o que dizer da Bette do Eve? A grande actriz, a grande sofredora, o amor nunca encontrado.
E a sua Queen Elisabeth? Mais uma vez o amor por encontrar.
O que aconteceu a estas actrizes?
O que aconteceu ao seu talento?
Porque é que não deixaram nada?
O que é que aconteceu a Baby Jane?