quinta-feira, 30 de julho de 2009

Fiz Um Conto Para Me Embalar

Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.

Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.

Rosas fatais, as três donzelas
A mão de espuma as desfolhou.
Nenhum soube para qual delas
O príncipe do mar cantou.

Natália Correia

Do mito nasceu a história
Contada em antigos fados
Que cantavam a glória
Dos frutos já passados

A macieira que deu vida
À maçã podre da paixão
Desvaneceu-se na partida
De um já morto coração

Fruto podre, mal nascido
Fruto que não deu nada
Poeira sem sentido
Na derradeira estrada

Canto a mística esquecida
Os deuses e as divindades
Para esquecer a nossa vida
Feita de trivialidades.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Adão e Eva

Olhámo-nos um dia,
E cada um de nós sonhou que achara
O par que a alma e a carne lhe pedia.

- E cada um de nós sonhou que o achara...

E entre nós dois
Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente,
...Se deu, e se dará continuamente:

Na palma da tua mão,
Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.

- O meu nome é Adão...

E em que furor sagrado
Os nossos corpos nus e desejosos
Como serpentes brancas se enroscaram,
Tentando ser um só!

Ó beijos angustiados e raivosos
Que as nossas pobres bocas se atiraram,
Sobre um leito de terra, cinza e pó!

Ó abraços que os braços apertaram,
Dedos que se misturaram!

Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri,
Sede que nada mata, ânsia sem fim!
- Tu de entrar em mim,
Eu de entrar em ti.

Assim toda te deste,
E assim todo me dei:

Sobre o teu longo corpo agonizante,
Meu inferno celeste,
Cem vezes morri, prostrado...
Cem vezes ressuscitei
Para uma dor mais vibrante
E um prazer mais torturado.

E enquanto as nossas bocas se esmagavam,
E as doces curvas do teu corpo se ajustavam
Às linhas fortes do meu,
Os nossos olhos muito perto, imensos
No desespero desse abraço mudo,
Confessaram-me tudo!
...Enquanto nós pairávamos, suspensos
Entre a terra e o céu.

Assim as almas se entregaram,
Como os corpos se tinham entregado.
Assim duas metades se amoldaram
Ante as barbas, que tremeram,
Do velho Pai desprezado!

E assim Adão e Eva se conheceram:

Tu conheceste a força dos meus pulsos,
A miséria do meu ser,
Os recantos da minha humanidade,
A grandeza do meu amor cruel,
Os veios de oiro que o meu barro trouxe...

Eu os teus nervos convulsos,
O teu poder,
A tua fragilidade,
Os sinais da tua pele,
O gosto do teu sangue doce...

Depois...

Depois o quê, amor? Depois, mais nada,
- Que Jeová não sabe perdoar!

O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada...

Continuámos a ser dois,
E nunca nos pudemos penetrar!

José Régio


Somos Adão e Eva num
paraíso por inventar;

Ainda está para nascer
o fruto do pecado que
rompemos por entre o vento
irado que entrava pelos
beirais da velha casa

A velha casa era o Éden,
era esse tal sítio eleito
onde o pecado nasceu já feito
e onde o fruto antes de fruto
apenas sabe ser vida e nada mais

E fomos parar ao cais,
o tal cais da partida onde
tudo nasce e tudo se constrói
onde o sonho suspira pela
saudade que dói e a lâmina
penetra os nossos corpos nús

Só mais tarde veio a serpente,
de repente, sem avisar, perdida
por entre a folhagem e a gozar
a doce aragem que corre sem
se cansar

E fomos tudo, fomos a festa eleita
a ternura mais que perfeita; talvez
o grande amor da história, aquele
que vai ficar por toda a memória
que existe na raça humana

Morde o meu fruto do pecado...
...esquece a maçã.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Perdeu-se Uma Alma

Perdeu-se uma alma pela rua. Nunca ninguém a encontrou, por mais que a procurassem nunca conseguiram dar com ela; poderia, talvez, estar metida dentro de alguma cova, apenas com a cabeça de fora, afinal sempre gostou de dar pouco nas vistas, sempre se preferiu esconder daqueles que a procuravam. Perdeu-se uma alma, sim...não sei bem o tamanho ou a forma mas estas coisas também não costumam ser bem definidas, têm estranhos contornos, estranhas formas de agir, nunca se sabe o que vai na cabeça de uma alma à solta...nem na nossa, quanto mais.

Qual será a cor de uma alma? Será que cada uma tem a sua ou são uniformes nesse aspecto? Nunca vi uma a sair pelo corpo, será que vão rumo ao céu? E batem à porta de Deus? E se Deus não está lá para abrir a porta? Será que há uma sala de espera para almas penadas? E será que têm doenças como todos nós? Qual será o estado de uma alma que acabou de morrer? As almas morrem? Não há respostas para nada disto, afinal de contas poucas respostas são dadas hoje em dia.

Somos feitos de dúvidas, duvidamos de tudo, pomos em causa o próprio ser, pomos em causa nós próprios, sem saber o que somos, sem saber o que vamos ser, sem saber, sequer, o que fomos...eu não sei para onde vou, apenas sei para onde gostava de ir, o que gostava de fazer, o que me falta fazer, descobrir, reinventar, inventar, destruir...tantos adjectivos para tão pouca coisa, tanta palavra para no fim de contas ser tudo tão vão e efémero, passa tudo tão rápido. "Afinal o tempo fica / Nós é que vamos passando"...não gostava de ficar cá com o tempo, tudo tem o seu tempo e até ele devia acabar um dia. Devia começar tudo de novo, voltar aos traços originais, alguém voltar a pegar num pincel e desenhar tudo outra vez, talvez fazer novas linhas por onde seguir.

Um dia alguém inventou o sorriso e deve ter sido feliz; talvez o sorriso e a felicidade tenham nascido no mesmo instante, de mãos juntas, como se fossem amigos há décadas ou algo assim...qual terá sido o ser humano que foi feliz pela primeira vez? Será que conseguiu voltar a sentir tudo isso mais tarde? Será que não ficou triste por nunca mais ter tido um sentimento como aquele? Se calhar suicidou-se e a sua alma perdeu-se, como tantas outras que ainda estão para aí a andar...ou então ficou a chorar o resto da vida, cara fechada e boca cerrada.

Ninguém sabe a origem, ninguém sabe o fim...eis o porquê de tudo ser assim.

Duas e Três

A senhora tristeza anda cansada
Levando sacos de sonhos que no
fim dão em nada

A dona amargura anda a sorrir
Por ver que à sua volta anda
quase tudo a ruir

A menina lágrima tenta aguentar
Mas a menina por mais que tente
não consegue estancar

O senhor riso anda infiltrado
Não se mostra a ninguém para não
ser raptado

A dona molenguice anda sorrateira
Não lhe vão descobrir a careca
e arrancar-lhe a moleira

O senhor cansaço deu-me o braço
andamos os dois de cá para lá
em grande embaraço

E no meio dos sentimentos
No meio da confusão
Nascem os contentamentos
De quem só tem tormentos
Para andar pela mão.

sábado, 11 de julho de 2009

Eu Não Existo Sem Você

Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste

Por isso, meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos me encaminham pra você
Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só têm razão se se cantar

Assim como a nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer
Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você.

Vinicius de Moraes

Nós...para sempre.

sábado, 4 de julho de 2009

A Pequena Criança

A pequena criança traz a janela do peito estilhaçada em mil pedaços.
A pequena criança traz gotas de sangue nas mãos de uma rosa mal arranjada.
A pequena criança traz os pés sujos da lama que é obrigada a pisar.
A pequena criança conta pelos dedos porque ninguém a ensinou de outra maneira.
A pequena criança não sabe o que é a vida porque ao seu lado só vê morte.
A pequena criança não sabe dizer a palavra mãe porque nunca a conheceu.
A pequena criança só lança grunhidos porque ninguém a ensinou a falar.
A pequena criança chora todas as noites porque não sabe o que é rir.
A pequena criança foge da polícia porque podem prender o seu pai.
A pequena criança cospe para o chão porque vê no chão a sua imagem.
A pequena criança não brinca com a chuva porque pode limpá-la.
A pequena criança foge da comida porque é uma sorte que nunca teve.
A pequena criança foge do amor porque tem medo de apaixonar-se.
A pequena criança não acredita na felicidade porque nunca a conheceu.
A pequena criança não ouve as bombas porque o tempo a fez surda.
A pequena criança anda de joelhos porque os pés estão cravados de balas.
A pequena criança chora a sua vida porque apenas quer conhecer a morte.
A pequena criança toma o sofrimento como coisa certa...

...e sonha com o mar azul de onde vêem as gaivotas.