quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Destino de Viver

Talvez um dia a andar pela cidade
Passe por mim o corpo de uma andorinha
Que na asa carrega toda a saudade
De uma vida que vivi e já não é minha

Talvez ela traga as memórias esquecidas
De uma infância sempre pronta a despertar
E traga o doce aroma das lembranças vividas
Por entre as velas a arder de qualquer altar

E então tudo se transforme em memória
Tudo seja fogo a arder numa paixão
E as palavras sejam potros a correr

Para podermos inventar uma nova glória
Ganharmos a força de qualquer vulcão
Que na sua lava tem o destino de viver.

Carta de Amor

Para te dizer tão só que te queria
Como se o tempo fosse um sentimento
bastava o teu sorriso de um outro dia
nesse instante em que fomos um momento.

Dizer amor como se fosse proíbido
entre os meus braços enlaçar-te mais
como um livro devorado e nunca lido.

Será pecado, amor, amar-te demais?
Esperar como se fosse (des) esperar-te,
essa certeza de te ter antes de ter.
Ensaiar sozinho a nossa arte
de fazer amor antes de ser.

Adivinhar nos olhos que não vejo
a sede dessa boca que não canta
e deitar-me ao teu lado como o Tejo
aos pés dessa Lisboa que ele encanta.

Sentir falta de ti por tu não estares
talvez por não saber se tu existes
(percorrendo em silêncio esses altares
em sacríficios pagãos de olhos tristes).

Ausência, sim. Amor visto por dentro,
certezas ao contrário, por estar só.
Pesadelo no meu sonho noite adentro
quando, ao meu lado, dorme o que não sou.

E, afinal, depois o que ficou
das noites perdidas à procura
de um resto de virtude que passou
por nós em co(r)pos de loucura?

Apenas mais um corpo que marcou
a esperança disfarçada de aventura...
(Da estupidez dos dias já estou farto,
das noites repetidas já cansado.
Mas, afinal, meu Deus, quando é que parto
para começar, enfim, este meu fado?)

No fim deste caminho de pecados
feito de desencontros e de encantos,
de palavras e de corpos já usados
onde ficamos sós, sempre, entre tantos...

Que fique como um dedo a nossa marca
e do que fui um beijo o nosso cheiro:
Tesouro que não somos. Fique a arca
que guarde o que vivemos por inteiro.

Fernando Tavares Rodrigues

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Cinzas Arrefecidas

Saudade dos corpos entre os lençóis
E dos beijos com gosto a madrugadas
Que espalhámos num dia de emoções
Por entre as minhas cortinas fechadas

A volúpia dos corpos por despertar
E a seda que desliza dos sentimentos
Foram camas numa só cama por inventar
Por entre as marés dos nossos pensamentos

E tudo foi descoberta e renascer
Foi o acaso das horas vividas
Foi a ânsia do tempo a passar

E num fim de tarde tudo foi a morrer
Para voltar das cinzas arrefecidas
De cada vez que eu te encontrar.

Anda, vem...

Anda vem..., porque te negas,
Carne morena, toda perfume?
Porque te calas,
Porque esmoreces,
Boca vermelha --- rosa de lume?

Se a luz do dia
Te cobre de pejo,
Esperemos a noite presos num beijo.

Dá-me o infinito gozo
De contigo adormecer
Devagarinho, sentindo
O aroma e o calor
Da tua carne, meu amor!

E ouve, mancebo alado:
Entrega-te, sê contente!
--- Nem todo o prazer
Tem vileza ou tem pecado!

Anda, vem!... Dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos...
Tenho saudades da vida!
Tenho sede dos teus beijos!

António Botto

domingo, 28 de dezembro de 2008

Vem, Não Te Atrases

Quando te apressas
E me confessas
Que está na hora,
Eu não te digo
Que é um castigo
Ver-te ir embora

Finjo que a dor
Que sei de cor
Pouco me importa
Mas, mal me deixas,
Sinto que fechas
Para sempre a porta

Vem, não te atrases
O que fazes
Sem mim, a esta hora?
Volta para os meus braços,
Eu já esperei demais
Vem, não te atrases,
Eu perdoo-te a demora
Se morares nos meus abraços
E nunca mais me deixares

Quando tu partes,
Faltam-me as artes
Para te prender
Mas, se não estás,
Não sou capaz
De adormecer

Acendo estrelas
Pelas janelas
Da casa fria
Mas, se não chegas,
Sinto-me às cegas
Até ser dia.

Maria do Rosário Pedreira

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Natal

Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.

Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.

Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.

Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.

Manuel Alegre

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Dia de Natal

Hoje é dia de era bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprado.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

António Gedeão

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Sofrendo da Alma

Mais do que o corpo é a alma
É a alma que me dói
Que foi sofrendo da alma
Que a minha vida se foi
Que foi sofrendo da alma
Que a minha vida se foi
Mais do que o corpo é a alma
É a alma que me dói

Há muito que não sonhava
E esta noite sonhei
Sonhei hoje que te amava
Deus o que eu hoje sonhei

Longe do meu pensamento
A ideia de te amar
Amei-te em sonho um momento
Vê lá o que eu fui sonhar

Foi sonho que não esperava
Sonho que me deslumbrou
Não sabia que te amava
E hoje não sei quem sou.

Amália Rodrigues

Gato

Deslizo pela vida enquato busco
pequenas latas de sardinha
em vielas esquecidas da existência.

Movo-me com agilidade... e
transporto em mim toda a
força que tem quem é novo.

Por vezes olho para a lua e
perco-me na sua cor pois tem
a mesma textura do meu pêlo.

Sou da noite...um filho noite
que canta fados ao luar enquanto
retoca o seu bigode sempre perfeito.

Sou o animal dos animais... o
respeito em mim faz parte do corpo
e a sedução está sempre presente.

Não fujo de ninguém...
sou gato e basta.

domingo, 21 de dezembro de 2008

Traça

Vesti a roupa já desfeita
Pela traça que teima em comer
Tudo aquilo que não lhe pertence
E que depois cospe os restos
Como se fosse dona do mundo.

Um dia a traça vai-se engasgar
E eu vou ficar-me a rir
Desse seu torcer...torcer...
A traça bem apertada pelo
Seu próprio veneno.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Peixe

Fiz do meu corpo uma pedra
onde os bichos vieram comer
e a carne ficou seca e ressequida.

A réstea de vida
que ainda sobrava dele
foi sugada por uma ave
que voava sem destino.

Passaram eras
(anos, meses, dias...)
o tempo correu o tempo perdeu
tudo aquilo que antes tinha
ganhou aquilo que nunca teve

e eu transformei-me em peixe.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Garras dos Sentidos

Maldita a sorte dos portugueses por terem inventado a palavra saudade; há quem diga que a palavra tem gosto a mar, a caravelas, a tempos que já lá vão mas que teimamos sempre em recordar e em viver, como se o nosso presente fosse sempre feito de um eterno saudosismo que nos condiciona o futuro (temos de ir buscar ao passado a forma, o "barro" para fazer o futuro, mas não nos podemos esquecer que somos os escultores da nossa própria vida, somos sempre nós que a moldamos...mesmo que a tentem condicionar). A saudade causa alguma angústia em nós, um certo langor, como se fosse uma guitarra num canto de um sótão esquecida, à espera de ser dedilhada novamente, à espera que a toquem...quase como um corpo de mulher, um corpo manso e nu à espera do "acto da Primavera". Estranha forma a da mulher...escrevo estas linhas depois de ter visto a primeira hora e cinquenta de "Vale Abraão" de Manoel de Oliveira (e enquanto ganho coragem para o restante tempo do filme), não que o filme seja mau mas apenas porque tem o seu tempo, um filme que precisa de disponibilidade (tal como o desejo...e não é esse, afinal, o tema central do filme?). A escrita de Agustina Bessa Luís é acutilante e a realização de Oliveira soberba (o tempo...a densidade...a perfeição do Douro perante a imperfeição do ser humano) e Leonor Silveira...imaculada. Mas como se pode juntar nestas mesmas linhas a palavra saudade e "Vale Abraão"? É que o filme representa a saudade do desejo, a saudade de alguém que ainda não conhecemos, do desconhecido (e é apaixonante o olhar de Silveira). Estranho caminho este o dos portugueses...feitos de firmamento e longitude.
E qual a melhor maneira de acabar este texto se não com um excerto do único fado que Agustina escreveu ("Garras dos Sentidos" para Mísia)?

"Não quero cantar amores,
Amores são passos perdidos.
São frios raios solares,
Verdes garras dos sentidos."

Sem querer, Agustina, descreve aqui a sua Bovary de "Vale Abraão".

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Palavras

Palavras
soltei-as ao vento
fiz do meu lamento
um grito de vingança

E depois
esqueci a mágoa
e bebi dessa água
que se chama esperança

Segui
um caminho exausto
fiz pompa, criei fausto
a riqueza iludida

Fui
por caminhos incertos
mas com os passos certos
para a hora da partida

Adeus!
Agora é uma palavra
Que perdeu o sentido
Que não tem rumo
Não sabe para onde vai...

Adeus!
Não quer dizer nada
É um fado, um gemido
Que entoa mas que cai

Cai a esperança
Cai aquilo que criámos
Na ilusão

Cai o sonho
Cai a fé (o que isso é?)
O coração...

Até que um dia
Nasce a nova alegria
E vai-se manter
Porque depois descobrimos
Num sorriso de criança
Que bonito é viver.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Soneto

Não pode Amor por mais que as falas mude
exprimir quanto pesa ou quanto mede.
Se acaso a comoção concede
é tão mesquinho o tom que o desilude.

Busca no rosto a cor que mais o ajude,
magoado parecer os olhos pede,
pois quando a fala a tudo o mais excede
não pode ser Amor com tal virtude.

Também eu das palavras me arredeio,
também sofro do mal sem saber onde
busque a expressão maior do meu anseio.

E acaso perde, o Amor que a fala esconde,
em verdade, em beleza, em doce enleio?
Olha bem os meus olhos, e responde.

Ao Luís Vaz, recordando o convívio da nossa mocidade

António Gedeão

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Ecce Homo

Desbaratamos deuses, procurando
Um que nos satisfaça ou justifique.
Desbaratamos esperança, imaginando
Uma causa maior que nos explique.

Pensando nos secamos e perdemos
Esta força selvagem e secreta,
Esta semente agreste que trazemos
E gera heróis e homens e poetas.

Pois Deuses somos nós. Deuses do fogo
Malhando-nos a carne, até que em brasa
Nossos sexos furiosos se confundam,

Nossos corpos pensantes se entrelacem
E sangue, raiva, desespero ou asa,
Os filhos que tivermos forem nossos.

José Carlos Ary dos Santos

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Figura

Tinha boquilha na boca,
do resto não me lembro pois
estava um tempo escuro
que pouco deixava ver;
por entre a névoa que pairava
sobre o seu rosto consegui ver
uns olhos fortes, marcantes...
talvez uns olhos que já não existam,
talvez até feitos à sua medida.

Ainda penso que não devia passar
de uma mera imagem do meu pensamento,
alguém que eu queria ver desde há muito,
como se viesse do fundo da minha memória
sem pedir licença e arrombasse todas as portas.

Partiu da mesma forma que apareceu;
hoje não sei nada dessa imagem
talvez apenas viva dentro de mim
como uma estranha memória.

Somos feitos de restos.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Nó Na Garganta

Desculpa este nó na garganta
Esta vontade de falar e não conseguir
Este sangue que pára no meu corpo
E que não sabe correr para outro lado

Desculpa a cobardia que está em mim
E que perante ti torna-se súplica
Imploro-te piedade...compaixão
Não sei se existe perdão para tais pecados...

Perdoa este modo de ser
Esta maneira de existir
Esta forma de sentir
Sou humano como tu já foste
Antes de estares nessa cruz crucificado

Perdoa estas palavras.

domingo, 7 de dezembro de 2008

O Enforcado

No gesto suspensivo de um sobreiro,
o enforcado.

Badalo que ninguém ouve,
espantalho que ninguém vê,
suas botas recusam o chão que o rejeitou.

Dele sobra o cajado.

Alexandre O'Neill

Ali está o corpo esquecido
como viveu...
Suspenso á terra
como se fosse uma marionete
que alguém esqueceu de manipular

Os corvos já lhe comem os olhos
e a boca já foi mais vermelha,
agora tem apenas a cor pálida
de uma cor que já não existe

As formigas olham para o corpo
e têm gula...

Chora o mundo
pela morte de um homem.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Ponham Flores Na Mesa

Encham a casa de rosas
Mas de rosas naturais
Dessas que trepam viçosas
Pelos muros dos quintais

Rosas de todas as cores
Que me tragam alegria
Que têm todas as flores
Abertas à luz do dia

E que sejam macias
Para as ter ao pé de mim
Mas não sejam rosas frias
Como essas de cetim

E seja tudo surpresa
Como se fosse a sonhar
Ponham, ponham flores na mesa
Que hoje não quero chorar.

Fernando Tavares Rodrigues

Agasalhei-me Em Teus Abraços

Fiz do teu inverno a gelada solidão
E agasalhei-me em teus abraços
Perdi-me no meio da escuridão
Que são os teus falsos cansaços

Dei moedas a um pedinte da rua
Olhei em busca de algum carinho
Perdi-me nessa sombra que é a tua
E não encontrei de novo o caminho

Vou por vielas e becos sem saída
Nesta encruzilhada sem sentido
Já me esqueci até do que é a vida
Meu amor...quem nos dera ter morrido.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Veio O Natal

Veio o natal em que nada me ofereceste.
Debaixo da árvore apenas o abandono
Que teimavas em entregar-me no teu sorriso
E uma réstia de esperança ainda acesa

Apagou-se a estrela que iluminava
Toda a nossa casa e em cada rosa
Há uma pétala que morre por não
Encontrar água que lhe mate a sede

Em cada ilusão há um rasto de abandono
E em cada medo há um pavor convertido
Afinal não há sonho que resista ao vento
Que corre por todo o lado sem sentido

Deus trouxe o natal para me atormentar
Mas o meu pinheiro há-de ser tão alto
Que a tua mão nunca conseguirá alcançá-lo
Nem o teu sonho conseguirá destruí-lo.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Era A Noite Que Caía

Era a noite que caía
E na sombra recolhia
O voo das andorinhas.
Era a voz que se calava,
Era a dor de ver que estava
Sem as tuas mãos nas minhas

Eram passos que escutei,
Que eram teus ainda pensei,
Iludiu-me o coração.
Foram pela rua escura
Longe da minha amargura
E acompanhei-os em vão

Fiquei perto da janela,
Pus-me a abri-la com cautela,
Fiz disfarce da cortina.
Vi então na luz incerta
Que a rua estava deserta
E deserta estava a esquina.

Era só eu na escuridão,
Era no peito um rasgão,
Era já no céu a lua,
Que me importa?, á minha porta
A sombra que se recorta
Bem pode ainda ser a tua.

Vasco Graça Moura

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Lírio Roxo

Viajei por toda a terra
Desde o norte até ao sul;
Em toda a parte do mundo
Vi mar verde e céu azul

Em toda a parte vi flores
Romperem do pó do chão
Universais, como as dores do mundo
Que em toda a parte se dão

Vi sempre estrelas serenas
E as ondas morrendo em espuma
Todo o sol, um sol apenas,
E a lua sempre só uma

Diferente de quanto existe
Só a dor que me reparte
Enquanto em mim morro triste
Nasço alegre em toda a parte.

António Gedeão

domingo, 30 de novembro de 2008

Não Chore Quem For Humano

Não chore quem for o cão da rua
que pisa as pedras com pés de gato
e não sabe onde vai passar a noite

Não chore quem for folha caída
que perdeu a esperança de voltar
aquela árvore que um dia a viu nascer

Não chore quem for pétala de rosa
que se desfolhou sem ter vontade
mas que cumpre um soberano desígnio

Não chore quem for triste, que
resista e mantenha a espada em riste
contra tudo aquilo que ainda vem

Não chore quem for gume de navalha
pois os peitos abertos em ferida
ainda hão-de florir e dar nova flor

Não chore quem for humano
pois a nossa raça sendo inacabada
é aquela que ainda pode sonhar.

sábado, 29 de novembro de 2008

Luar No Teu Corpo

Viemos desse tempo tão antigo
Entre esse mar das mãos que tu me dás
As ondas desse mar, por meu castigo,
Ficam presas no vento se não estás

Só posso ordenar aos meus sentidos
O tempo desse tempo que não esqueço
Ao lembrar os caminhos proibidos
Nas luas do teu corpo onde amanheço

Naquela estrela onde o sol se deita
Cabia tão perfeito o nosso espaço
Na janela do meu peito fico á espreita
Entre a vidraça aberta do cansaço

Das lágrimas que chorei eu fiz um mar
De oceanos de tristeza e alegria
Amei por entre as noites e o luar
Que ao nosso lado, amor, também dormia.


José Luís Gordo

Canto Português

Se quando só me sinto só me penso
Se quando só me penso estás comigo
Se o ardor do teu corpo me pertence
Amada pátria minha estou contigo!

Em ti fecundo a seiva do meu querer
Em ti respiro o pó do meu caminho
Para ti abro os meus braços de semente
De ti apanho a uva do meu vinho

No trigal mais loiro do teu pão
Eu dou o meu amor num canto enorme
Na força do meu peito toda a glória
Dos oceanos cheios do teu nome.


Maria de Lourdes de Carvalho

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...

Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá Carneiro

Como Um Poeta

Na noite mais secreta colho uma rosa
Que vem despontar o vermelho vivo
Que existe nos lábios da mulher amada
E de uma pequena rosa, pequeno nada,
Nasce a ilusão de um universo completo

Depois roubo as flores dos jardins da cidade
E, curiosamente, não me reconheço em ser ladrão
Roubo pedaços de vida para além da solidão
E vou semeando pelos rostos versos de saudade

Chamem-me construtor de versos ou proxeneta
Talvez um dia mordam as rosas mais amargas
E saibam ver que em alguns momentos
Consegui subir tão alto como um poeta.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Gritava Contra O Silêncio

Gritava como se estivesse só no mundo,
como se tivesse ultrapassado
toda a companhia e toda a razão
e tivesse encontrado a pura solidão.
Gritava contra as paredes, contra as pedras,
contra a sombra da noite.

Erguia a sua voz como se a arrancasse do chão,
como se o seu desespero e a sua dor
brotassem do próprio chão que a suportava.
Erguia a sua voz como se quisesse atingir com ela
os confins do universo e aí,
tocar alguém, acordar alguém, obrigar alguém a
responder.
Gritava contra o silêncio.

Sophia de Mello-Breyner Andresen

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Sagrada Inquisição

Não bebo o veneno pelo copo.
Se queres que eu o beba, é muito simples
Basta abrires as tuas mãos
E eu delas beberei até à última gota
Esse líquido que hoje me queres dar

Queima-me por dentro e talvez
Que isso se vá notar por fora...
Acaba com o meu corpo
Num golpe, apenas...
E depois deita-me à terra
Para que ela cumpra o seu ofício

Não faças disto um jogo
Ou sequer um desafio
Aceita as minhas palavras
Como um cipresta aceita a vida
Assim que a sua semente
É deitada a esta terra sem nome

Sagrada Inquisição...
Podia chamar-te outro nome
Dar-te apenas um apelido
Que te tornasse vísivel
Perante os outros

Mas não preciso que os outros
Sequer notem a tua presença...
É a mim que tu tens de queimar
É comigo que tens contas a acertar!

Ganha coragem e vem!
Eu...
Eu não vou fugir.



domingo, 23 de novembro de 2008

Hoy El Mar Es Más Azul Que El Cielo

Mira amor!
Hoy el mar es más azul que el cielo!

No sé por qué, pero necesitaba decírtelo
porque, sentiéndome cansado, sé perfectamente
que me fatiga no viene de la tierra, sino de
esse lugar azul,
de ese largo camino extenso que me hace pensar.

Por otra parte, dejé a medianoche
mi silencio al otro lado de la puerta.
Cuando llamaste. Qué oíste?
No fue un torbellino de semblantes
con las voces de mi proprio eco?

Sí, amor, puedes estar segura.
Hoy el mar es más azul que el cielo.

José Manuel Capêlo

Fica aqui gravada a nossa canção
A ferro e fogo como se marca o amor
Nesses tempos de guerra...

Ou Fado

Caíu uma lágrima à saudade quando viu a tristeza na sua rua
Não era uma visita desejada, não a esperava encontrar
Mas a tristeza costuma ter o estranho vício de aparecer sem avisar
E a saudade sentiu-se nua...tão nua

Com ela não veio a esperança
Nem um riso de criança
Nem um sorriso no olhar
Nada...
Foi apenas a tristeza a chegar

Não bateu á porta
Tem o dom de ser mal-educada
De entrar sem ter a chave da entrada
E de arrombar janelas
Passar por cima delas
Como se não as visse

Chorou quando entrou...
Chorou porque viu na saudade
O estranho rosto que tinha
Quando ainda era fantasia
E sabia ser um pouco de alegria

A tristeza não passa de uma saudade descalça
De uma saudade com frio
Que anda num enorme desvario
À procura de um sapato que lhe sirva

Riram na cara uma da outra
Mas quando deram por elas
Já estavam boca na boca
Como se o amor nascesse
Por entre as duas...

Nas ruas
Não se ouvia som algum
O passado estava de jejum
E apenas se alimentava o futuro

O presente é um burguês
Que nunca come à vez
Mas que passa a vida a comer
A alimentar-se...
A ficar cada vez mais anafado

Enfim...
Talvez isto seja apenas estória
Ou fado.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Acreditar Na Felicidade

Abre as minhas mãos
E delas faz um navio
Que navegue por águas
Cheias de lodo, mas que chegue
A um porto feito de verdes limos
E com conchas de areia
Nada mais que areia...

Depois faremos a festa
Das ondas que não têm direcção
E que correm pelo mar a dentro
Como só podem fazer os seres livres

Acabamos encostados a uma rocha
A ver o mar passar a nossos pés
Sentimos a brisa...
Acreditamos na felicidade.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Fogo Preso

Quando se ateia em nós um fogo preso,
O corpo a corpo em que ele vai girando
Faz o meu corpo arder no teu aceso
E nos calcina e assim nos vai matando

Essa luz repentina
Até perder alento,
E então é quando
A sombra se ilumina,
E é tudo esquecimento,
Tão violento e brando

Sacode a luz o nosso ser surpreso
E devastados nós vamos a seu mando,
Nessa prisão o mundo perde o peso
E em fogo preso à noite as chamas vão pairando

E vão-se libertando
Fogo e contentamento,
A revoar num bando
De beijos tão sem tento
Que não sabemos quando
São fogo, ou água, ou vento

A revoar num bando
De beijos tão sem tento,
Que perdem o comando
Do próprio esquecimento.

Vasco Graça Moura

domingo, 16 de novembro de 2008

Conversa Telefónica

"Já lhe disse que hoje é completamente impossível encontrarmo-nos, ainda tenho ali cinco na sala de espera...a minha mulher já começa a desconfiar de qualquer coisa, não me peça impossíveis...oh minha querida você sabe perfeitamente o que eu gosto de si, mas eu tenho aquele monstro lá em casa e...divórcio? Não seja parva Tareka, onde é que já se viu um homem como eu divorciar-se?...sim, até pode ser o que se vê mais hoje em dia, mas eu não sou desses, eu assumi um compromisso com a minha mulher...oh minha gatinha, você sabe o quanto eu gosto de si, mas eu tenho uma família, percebe?...mas porque é que você não começa uma família com outro homem? Talvez assim até me entendesse melhor e...não diga isso que magoa o meu coraçãozinho, tente apenas compreender o meu lado e...mas já lhe disse que hoje não pode ser, ainda estou cheio de trabalho. Olhe, fazemos assim, amanhã à hora de almoço encontramo-nos no restaurante do costume e depois podemos ir até à praia ver as ondas e...eu sei que você não gosta de ver as ondas, mas então ficamos a olhar para a areia e talvez...sim, eu sei que a menina tem uma pequena alergia à areia e que não pára de espirrar, mas podemos, então, ir ao campo e ver...eu sei que a menina é alérgica a algumas flores, mas então vamos para um sítio que apenas tenha relva e...olhe bebé, então não sei, não sei onde a menina quer ir. Escolha e depois diga-me qualquer coisa...onde?...Não pode ser...mas isso é muito longe, não podemos ir para um sítio assim tão distante, minha querida...claro que gosto de si...claro que gosto muito da minha faneca...claro que lhe quero bem, mas tente compreender que...sim...ah, sim...claro que gosto...ahh você sabe minha querida...sim...faça isso sim...e depois faz...sim...e depois pode fazer o...sim...faça as malas querida, amanhã vamos para longe!"

Começar De Novo

Esta gaivota que vai
Seguindo o navio
Este céu que despreza a morte
Esta luz, este rio

Tudo num sonho que apenas
Foi desenhado
Para eu aprender de novo
A viver a teu lado

Dentro de nós temos nós
De seguir a lição
Desta luz que a manhã
Nos oferece novamente

Dentro de nós vai o mundo
Tornar-se canção
É preciso que tudo
Comece novamente

Vento no rosto
E tanto sol nos meus braços
Tanto sol que depois te cerca
A travar os teus passos

Tudo num sonho
Que foi assim desenhado
Para tu começares de novo
A viver a meu lado.

David Mourão-Ferreira

sábado, 15 de novembro de 2008

A Minha Menina

Quero ser o fado que canta na tua voz
E ter o doce embalar das tardes de Verão
Em que por estarmos longe somos nós
Que não se desatam á mínima contradição

Quero ser a doce melodia na garganta
Embalado ao som de guitarras dedilhadas
Ser a voz do fado que te encanta
E ser as tuas paisagens nunca sonhadas

Quero ser o sonho que se transforma em dia
Ser a noite que acorda e é madrugada
Ser a voz que te acompanha na agonia
E ser tudo quando pensas que não tens nada

Vou estar aqui à tua espera nesta esquina
Que o tempo não se lembrou de visitar
E vou sempre dizer que és a minha menina
Mesmo quando a idade te cansar.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Um Pouco Da Tua Alma

Afinal talvez as palavras estejam mesmo gastas
E os gestos ganhem o seu significado...
(como se o teu corpo tivesse roubado
à língua portuguesa todos os adjectivos
que possam dizer o que é a perfeição)

Os teus dentes de marfim erguem-se nuns lábios
Que vêm pousar junto dos meus e parecemos
Rochas junto do mar, sempre ali a levar com as ondas
E a observar o estranho rumo dos barcos

Deixa-me navegar em ti
Deixa-me olhar para o teu rosto
E pensar que os meus sonhos ganharam forma
E que és tudo aquilo que alguma vez ambicionei
(ousei sonhar tão alto e a manhã trouxe-te
em seus braços como recém nascido)

Aperta-me em teus braços
E talvez consigas sentir uma alma
A pousar no Outono que tu és
(trazes a chuva em meu rosto
e fazes de mim aquela folha
que sempre quis ser para poder
voar sem direcção)

Quero falar-te ao ouvido
Quero dizer-te as palavras
Que estão fechadas a cadeado
E que gritam de sufoco
Por já nao aguentarem esta prisão

Trouxeste as chaves destas algemas
E (dura contradição) és prisão;
Mas uma prisão onde me entrego de livre vontade
Onde quero que o meu corpo fique preso
E de onde a minha alma não encontre fuga
(prende-me em ti...deixa-me ficar em ti)

E adormece...
Adormece nesta noite para eu te poder sonhar,
Para eu poder ver os teus olhos brilhantes
(mesmo estando fechados)
Pois são apenas eles que fazem a minha noite

Atrevo-me a soltar as palavras
Atrevo-me a dizer que talvez sejas a parte de mim
Que eu lutei por encontrar e que ganhou a tua forma
És o poema que nunca ousei escrever
Por pensar que não seria possível
(hoje sei que não há versos que te bastem
e que tudo saberá a pouco, a um resumo
daquilo que realmente és)

Não te posso descrever em palavras
Nem quero! (Elas iriam faltar...)
Olha para os meus olhos
E talvez eles digam o que agora
Me falta contar

Dá-me o teu ouvido
E talvez consiga morder
Um pouco da tua alma.


terça-feira, 11 de novembro de 2008

Sempre Que Tu Vens É Primavera

Aqui, em Portugal, donde partiste
No tempo da coragem de lutar
Em cada terra os ventos te murmuram
E as cartas da ausência te procuram
Para que venhas ver o teu lugar

Há um banco debaixo da videira
Que espreita a sombra que outra sombra dera
E há um rio a contar á sua margem
Que te chama do longe da viagem
Pois sempre que tu vens é Primavera

Ficou no cais do céu um lenço branco
Ou numa estrada a curva do horizonte
E uns olhos de mulher contam as horas
Nos pinheiros que sentem que demoras
Nas silvas do caminho ao pé da fonte

Vem ter aquela estrela que deixaste
E essa roseira no jardim que espera
E traz os filhos que te são raíz
Para que sintam o sol do seu país
Pois sempre que tu vens é Primavera.

Vem guardar o tempo na cidade que te espera
Guardar o sol e o mar no vento da amizade
Pois sempre que tu vens é Primavera.


Vasco de Lima Couto

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Porque Tu És Vida

"Gosto das tuas risadas
Da cor que os teus olhos ganham ao sorrir
Abrindo manhãs e desenhando estradas
Por onde os meus passos se atrevem a ir..."

Gosto dos teus cabelos a cair pelos ombros,
Do lenço que te afaga o pescoço como se fosse ternura
E até do príncipio das tuas costas (estrada sem curvas...)

Gosto do teu cheiro a casa,
A lar onde se come a fruta colhida
Pelas mãos de um trabalhador
Que se levanta com o nascer do sol

Gosto das tuas mãos feitas de setas
Desses dez caminhos de onde se avista o horizonte
E onde o mar faz pequenas ondas...

Gosto do teu andar, da segurança que ele tem
De quem nunca pára mas que sabe donde vem
E que nele transporta a mágoa que o fado contém

Gosto do teu sorriso (manhã sem nuvens)
E até do teu nariz (sim, até dele...)

Dá-me a tua mão
Aperta-a com a minha
E faz-me ter a ilusão de que hoje
Podemos ser apenas um só corpo

Dá-me o teu abraço
E faz-me acreditar que
A felicidade está aqui tão perto...

Sim,
É bom estar vivo
Porque tu és Vida.

domingo, 9 de novembro de 2008

Creio

Creio nos anjos
que andam pelo mundo
Creio na deusa
com olhos de diamantes
Creio em amores lunares
com piano ao fundo,
Creio nas lendas,
nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho
que falta mais fecundo
De harmonizar
as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno
num segundo,
Creio num céu futuro
que houve dantes,

Creio nos deuses
de um astral mais puro,
Na flor humilde
que se encosta ao muro
Creio na carne
que enfeitiça o além

Creio no incrível,
nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo
pelas rosas,
Creio que o amor
tem asas de ouro.

Amén.

Natália Correia

Como O Tempo Corre

No céu de estrelas lavado
Pelo luar que beija o chão
Nasce um cinzento azulado
Que me aquece o coração

Como o tempo seca o pranto
Adormece a própria dor
E vejo com desencanto
Passar o tempo do amor

No seu correr tudo leva
Na fúria da tempestade
Se parte nunca mais chega
Chega em seu lugar saudade

Meu Deus como o tempo corre
No tempo do meu viver
Parece que o tempo morre
Mesmo antes de nascer.

Fernando Mata

sábado, 8 de novembro de 2008

Vou Nascer Cabelo

Vou nascer cabelo
E ser a trança de Inês
Aquela que D. Pedro
Nunca desfez

Talvez que o pai nada saiba
Pois um rei nunca está de guarda
Talvez que a mãe nunca descubra
Este romance será sol de muita dura...

Vou nascer cabelo
Vou ser trança perfeita
A madeixa mais bem feita
No teu cabelo...

Talvez que o pajem não saiba falar
Talvez que ele nada vá contar
Mas se for
Será melhor
Que eu vá buscar o meu cavalo
E será um regalo
Ver a corte atrás de nós

Vou nascer cabelo
Vou brilhar á lua
E hás-de dizer:
Sou tua...

Vamos fazer desta estória secreta
O que o cupido faz com a seta
Vamos disparar isto pelo ar
E ver onde vai parar...

O destino, desta vez,
Não pode destinar.

Para Um Fim Do Mundo

É nestas noites de fogueira acesa
Que a memória me vem mostrar
Que a poesia é uma candeia
Que não sabe quando se apagar

É nestas noites de memórias dúbias
Que eu não sei distinguir a realidade
Sei que há certas alturas
Em que fecho os olhos e não vejo a verdade

Há coisas que quero apagar
Do fundo desta alma tecedeira
Mas a memória é um baú por encontrar
E durmo com a saudade à cabeceira

Há poemas que são o infinito
Há versos que são rimas de perdão
E há noites que são apenas gritos
Abafados pela solidão...

Eu sei que lá em cima estão anjos
À espera de um dilúvio universal
Cá em baixo há demónios mundanos
Que vivem em eterno Carnaval

Mas um dia isto há-de ter fim
Mas um dia isto há-de acabar
Tudo será como no início
Quando não conhecia o mar

E quando a faca vier apontada
Eu respondo com um tiro de canhão
Porque neste tudo somos nada
E só alguns têm coração.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Uma Vez Que Seja

Tu que navegas ao sabor do vento
Sem outra rota que o que se deseja
Tu que tens por mapa o fimamento
Vem descobrir-me, uma vez que seja

E diz-me das viagens que não faço
Dos mundos cintilantes que antevejo
E traz-me mares de mel no teu abraço
Poeira de ouro velho no teu beijo

De ti não espero amarras nem promessas
É livre que te quero neste cais
Até que um dia em mim não amanheças
E te faças ao mar uma vez mais...

E mesmo nessa hora de perder-te
Sabendo que a magia se desfez
Terá valido a pena conhecer-te
E deslumbrar-me ao menos uma vez.

Ana Vidal

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O Meu É Teu

O meu é teu. O teu é meu
e o nosso é nosso quando posso
dizer que um dente nos cresceu
roendo o mal até ao osso.

O teu é nosso. O nosso é teu.
O nosso é meu. O meu é nosso.
E tudo o mais que aconteceu
é uma amêndoa sem caroço.

Dizem que sou. Dizem que faço.
Que tenho braços e pescoço
- que é da cabeça que desfaço,
que é dos poemas que eu não ouço?

O meu é teu. O teu é meu.
E o nosso, nosso quando posso
olhar de frente para o céu
e sem o ver galgar o fosso.

Mas tu és tu e eu sou eu
Não vejo o fundo ao nosso poço,
o meu é meu dá-me o que é teu
depois veremos o que é nosso.

Ary dos Santos

Ao egoísta que há em cada um de nós...

domingo, 2 de novembro de 2008

Tu Tens Um Medo

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

Cecília Meireles

Apenas Umas Palavras...

As lágrimas rolam pelo rosto da menina e ela pensa que o Inverno chegou ao seu corpo. Toda ela treme de frio (quem sabe se com medo também...) perante as duras pedras que a observam, sem nada fazerem, sem dizerem sequer uma palavra de calor que lhe possa confortar o coração endurecido. Pensa na vida que teve e na que pode vir a ter...tudo vai ser igual; o destino para ela nasceu com duas facas na mão e com um olhar de sangue (as lágrimas da tristeza são rios de sangue a escorrer num rosto já morto...), ela apenas queria o conforto de uma castanha de Outubro com uma cereja de Julho, queria sentir o amor dos poetas, a febre incontida de estar viva, e tem apenas o langor que lhe traz o vento. Ninguém muda a sorte de um destino já fechado, hoje ela é apenas feita de desalento e vive com o pensamento lá longe...em casas duras que não caem por serem feitas de paz. Chora doce menina...pensa que amanhã talvez seja tudo diferente, não custa ter esperança, basta perderes os teus olhos em algo mais longínquo, pensa para lá do mar, das serras, pensa que tens algo de teu para lá de tudo isto, afinal, também tu tens o teu pedaço de terra.

Recurso

Apenas quando as lágrimas me dão
um sentido mais fundo ao teu segredo
é que eu me sinto puro e me concedo
a graça de escutar o coração.

Logo a seguir (porquê?), vem a suspeita
de que em nós dois tudo é premeditado.
E as lágrimas então seguem o fado
de tudo quanto o nosso amor rejeita.

Não mais queremos saber do coração,
nem nos importa o que ele nos concede,
regressando, febris, áquela sede
onde só vale o que os sentidos dão.

David Mourão-Ferreira

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Valsa

Ficámos finalmente meu amor
Na praia dos lençóis amarrotada
O mal que venha é sempre um mar menor
Sorriso de vazante na almofada

Se chamo som das ondas ao rumor
Dos passos dos vizinhos pela escada
É porque à noite acordo de terror
De me encontrar sem ti de madrugada

Qual a cor desta noite e de que dedos
São feitas estas mãos que não me dás
Ó meu amor a noite tem segredos
Que dizem coisas que não sou capaz.

António Lobo Antunes

domingo, 26 de outubro de 2008

Vinha Dizer Adeus

Vinha dizer adeus mas reparei
Que na faia do pátio era Setembro
Vinha dizer adeus mas encontrei
Um livro na cadeira do alpendre


Vinha dizer adeus mas as maçãs
Estavam no forno a assar e esse cheiro
Fez-me parar na porta das manhãs
A relembrar o nosso amor inteiro


Vinha dizer adeus mas o teu cão
Veio lamber-me os dedos hesitantes
Vinha dizer adeus mas vi no chão
A manta ao pé do lume, como dantes


Vinha dizer adeus mas senti fome
Ao ver a mesa posta para dois
Dálias e o guardanapo com o meu nome
Sem ter havido o antes nem depois


Vinha dizer adeus mas que surpresa
À passionata… o último andamento
Como se tu tivesses a certeza
Que eu ia chegar nesse momento


Vinha dizer adeus mas nesse olhar
Vi tanta solidão, tantos abraços
Tantas amendoeiras ao luar
Que me escondi chorando nos teus braços


Vinha dizer que já não estou contigo
Que este amor singular já não é nosso
Vinha dizer adeus mas já não digo
Vinha dizer adeus mas já não posso!


Rosa Lobato de Faria

Tu és a poeta eleita pelas frutas
Pelas cores, pelo aroma que têm as estações;
Só tu sabes ser a água fresca
Pelo meio da poesia
E trazes amoras escondidas
Num cesto já gasto.

Só tu sabes contar o amor
Como se fosse um segredo
E só tu és capaz de na alegria
Pores o estranho sabor a mel
Que quando menos se espera
Passa pela garganta da tristeza
E sai em pranto, feito fel.

És a festa dentro da nostalgia
És as cicatrizes que existem na poesia
Foste formiga que encontrou o seu carreiro
Trouxeste um mar de palavras a todos nós

Não se agradecem aos poetas
Agradecemos a Deus
Por pôr na Terra estes seres eleitos.

sábado, 25 de outubro de 2008

Eu Quero Ter Eternamente Este Segredo

Eu quero ter
Eternamente este segredo
Que juntou as nossas mãos
Linha a linha, dedo a dedo
Eu quero ver
E adivinhar as ratoeiras
Espalhadas no caminho
Insinuantes traiçoeiras

Eu quero ter
A cega e surda resistência
Que impede os nossos olhos
De perderem inocência
Eu quero estar
Para além da multidão inquieta
E afastá-la do cupido
Que nos aponta uma seta

Eu quero apenas
Ler no céu do meu país
Que conquistei o teu amor
E o meu direito a ser feliz
Eu quero dar
À nossa vida a dimensão
Dum sorriso de criança
Dum discurso de Platão

Eu quero estar
Em sintonia permanente
Quando fazemos amor
No nosso quarto crescente
Eu quero ter
À nossa porta um Deus antigo
Que nos guarde no seu reino
E nos proteja do perigo.

Ana Zanatti

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O Egoísmo Não Se Perdoa

Dá-me o doce cheiro de Novembro
E esse suave gosto a castanhas
Que ainda estão quentes da fogueira
Já extinta...

Dá-me as folhas do meu Outono
Para que eu possa lançá-las ao vento
E ver o desprezo que a natureza tem
Por quem apenas voa...

Dá-me essas gotas de chuva
Que levaste um dia nesse casaco
Ainda preso a um cabide da minha alma
Feita palavras...

Dá-me tudo aquilo que me deves!
Quanto a mim...nada te dou...nada te devolvo
O que tenho é meu e fica comigo
O Egoismo não se perdoa...

Mas quem rouba ao vento
Não merece desculpa.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Tenho A Pátria Num Rosto De Criança

Tenho a Pátria num rosto de criança
Que me pergunta porque estou alegre...
Ouve criança: são as ruas todas
Com a pureza que o passado deve

E fico a olhar-me e a olhar o reino aberto
Nas palavras caladas do lamento
Que fez a minha infância adormecida
A chorar, em silêncio, o pensamento

Horas perdidas nos regaços frios
Anos achados para te dizer:
O Sol começa agora a ter sentido,
E nós criança, vamos renascer.

Vasco de Lima Couto

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Desculpa

Desculpa ter nascido com as mãos pequenas e não poder construir tudo aquilo que te digo, mas não tenho a culpa de não ter umas mãos tão grandes como a lua ou como o sol, bem sei o que vais dizer, que ninguém tem a mão do tamanho de prédios e eles são construídos por homens à mesma; então talvez tenha de reconhecer que tenho de te pedir desculpa pela minha cobardia, tenho medo que a obra fique tão grande que me engula e eu nunca mais veja a luz dos teus olhos, se a luz de Lisboa podesse ter ficar viva em algom retrato seria no teu; as tuas pernas são como duas pontes onde passa o Tejo e o teu peito são as colinas do Castelo, lá bem no alto...tens Lisboa no corpo e nem o sabes reconhecer. Apenas queria que fosses também a minha cidade, que fosses um pouco minha, não toda, não sou ninguém para ter uma cidade só para mim, um pouco de Lisboa bastava-me. Desculpa este tamanho com que nasci, mas é assim que todos nascemos, não foi uma escolha minha, foi uma coisa que me foi dada sem me terem pedido opinião. Seria tudo tão diferente se eu fosse grande, do tamanho dos arranha-céus, ou maior ainda...mas isto é apenas um sonho, e nem sempre ele comanda a vida...

domingo, 19 de outubro de 2008

Que Nasce Da Minha Sede

Invento o teu seio na memória
Sou cabeça sem corpo sem vida
E penso que inventei uma glória
Onde só havia a vontade vencida

Sou o desejo de algo que aconteceu
Sou a fome que não pode ser saciada
Sou o mito mais completo de Prometeu
Sou a poesia de Camões nunca pensada

Afinal, sou vã poesia, vão momento
Sou tudo aquilo que o poema é
Sou todo este corcel do pensamento
Que nasce de cada gesto, cada maré

Sou esta vida, este ciúme, esta lenha
Que ateia um fogo que em mim se perde
Sou mais tudo aquilo que ainda venha
Eterna mágoa que nasce da minha sede.


Dei-te Um Nome Em Minha Cama / Preciso de Espaço

Dei-te um nome em minha cama
Aberta no meu Outono
Depois amei-te em silêncio
Que é uma forma de abandono

Dei-te um nome em minha cama
Rasgada em lençóis de sono
Tentei ser tudo o que era
No gesto da mão parada

Campo e corpo aberto ao vento
Que encaminha a madrugada
Tentei ser a Primavera
Mas chorei meu triste nada

Vi-te ao canto da memória
Por te viver e sonhar
Amor de amor sem glória
Como um rio ao começar
Que te veio contando a história
Onde eu não posso morar.

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Preciso de espaço
Para ser feliz
Preciso de espaço
Para ser raíz
Ter a rede pronta
Para o mar de sempre
Ter aves e sonho
Quando a terra escuta
E falar de amor
Aos tambores da luta

Ter palavras certas
No sol do caminho
E beber a rir
O doirado vinho
Misturar a vida
Misturar o vento
E nas madrugadas
Quando o povo abraço
Para estar contigo
Preciso de espaço

Preciso de espaço
Para ser feliz
Preciso de espaço
Para ser raíz
Caminhar sem ódio
Falar sem mentira
Ter meus olhos longe
Na luz d'uma estrela
E ser como um rio
Que se agita ao vê-la.

Vasco de Lima Couto

As tuas veias eram rios de fado
Que corriam pelas palavras...

sábado, 18 de outubro de 2008

Visita

Esconde-te da noite inquieta
Que te visita sem te pedir licença,
Talvez que ela desista e procure
Outro corpo onde seja bem-vinda
E não olhada com um certo desprezo.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Na Corda Bamba

Desculpa por ter roubado as rosas do jardim
Mas o vermelho desperta em mim a cor do ciúme
E não consigo que os meus olhos se escondam
Neste desassossego que decidiu fazer morada em mim

Talvez que na hora em que a noite cai
E a alma parece elevar-se ao céu
Com asas feitas de sonho
Eu consiga ser o gigante que vive na montanha
E que de vez em quando espreita a cidade

Mas hoje apenas consegui ser ladrão
E roubar essas rosas que plantavas
Para um dia darem algo de mais puro
(desculpa o fim deste tempo...)

Quando bater o meio-dia podes
Podes vir buscar as sementes
Que guardei para ti...
Não substituem as rosas
Mas poderás plantar sonhos nossos
(desculpa o egoísmo...)

Talvez que um dia chegue
Em que eu saiba ser destino
E os teus passos caminhem para os meus
(vã glória...sonho desfeito)

Peço desculpa pelos meus sonhos
Mas não tenho culpa da cabeça
Não querer saber de comandos
E seguir um caminho que só ela
Sabe onde pode chegar...

Desculpa as palavras que não te digo
Mas quando chegar o tempo das cerejas
Talvez caia em nós a realidade
E eu prefiro suspender o tempo
Nesta indefinição...

Estamos na corda bamba
Quem será o primeiro a cair?

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Um Dia / Ás Vezes Perco-me De Mim

Um dia rasgo os teus olhos cor de mel
Um dia serei a abelha do teu corpo
Um dia dou-te a provar o amargo fel
Que existe num homem vivo ao estar morto

Um dia vou ser a glória compreendida
Um dia serei charco mas de lua
Um dia serei a história mais vivida
Que por ser vivida é minha e tua

As nossas vidas andam par a par
Nossas vidas são a brisa calma
É tudo aquilo que brilha no ar
E quando pousa aconchega a alma

Um dia vou ser partida em ser chegada
Um dia…já não sei…nada cuido
Um dia acordo e continuo a ser nada
Porque ousei sonhar ser quase tudo.


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Às vezes perco-me de mim
E nem sei dizer onde estou
Ah! Porquê de eu ser assim
Ser este pássaro que não voou

Continuo com os pés em terra
Sou árvore sem ter jardim
Cresço para lá da flor da serra
Às vezes perco-me de mim

Sou de longe, onde o futuro
Foi canto que não cantou
Às vezes tento ser mais puro
E nem sei dizer onde estou

Quero ser a coisa amada
Coisa viva que viva em mim
Mas perco-me neste não ser nada
Ah! Porquê de eu ser assim

Queria ser palavras na liberdade
Sou utopia que não terminou…
Mas apenas consigo, na verdade,
Ser este pássaro que não voou.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Adriano / Amália

Não era só a voz o som a oitava
Que ele queria sempre mais acima
Nem sequer a palavra que nos dava
Restituída ao som de cada rima

Era a tristeza dentro da alegria
Era um fundo de festa na amargura
E a quase insuportável nostalgia
Que trazia por dentro da ternura

O corpo grande e a alma de menino
Trazia no olhar aquele assombro
De quem queria caber e não cabia

Os pés fora do berço e do destino
Pediu uma cerveja e poesia
E foi-se embora de viola ao ombro.

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Na tua voz há tudo o que não há
Há tudo o que se diz e não se diz
Há os sítios da saudade em tua voz
O passado o futuro o nunca o já
Há as sílabas da alma e há um país
Porque tu mais que tu és todos nós

Na tua voz embarca-se e não mais
Não mais senão o mar e a despedida
Há um rastro de naufrágio em tua voz
Onde há navios a sair do cais
Nessa voz por mil vozes repartida
Porque tu mais que tu és todos nós

Há mar e mágoa e a sombra de uma nau
A gaivota de O'Neill e o rio Tejo
Saudade da saudade em tua voz
Um eco de Camões e o escravo Jau
Amor Ciúme Cinza e Vão Desejo
Porque tu mais que tu és todos nós.

Manuel Alegre

Nada Relativo

Chama de poeta às estrelas
E depois olha de soslaio para a lua
E vê o ciúme que mora nos seus olhos,
Já não lhe bastava o sol a matá-la
Diariamente...

Mas não percas o teu rumo
Continua a olhar e observa os pontos
Que se acendem lá em cima
Quando os sonhos descem à terra
E tudo parece relativo e fácil...

A minha vida é assim
É aquilo que eu quis, quero!
Aquilo que eu sonhei, sonho!
Aquilo que eu desejei e desejo!
Nada relativo
Tudo com a sua devida importância.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Desde Que Me Deixem Ser Vida

Escrevo as mais belas palavras
Que a língua portuguesa deu ao mar
Sou o sal sem rota da nossa terra
Sou o trigo que cresce farto no campo
E sou a vida do meu povo trabalhador

Fiz-me uma enxada de terra lavrada
E sou semente ainda por crescer
Sou a minha terra toda ela levantada
Pela alvorada que não sabe morrer

Hoje eu escrevo à pátria
Dentro de mim Camões, Pessoa
E nos poemas que escrevo
Há um pouco de Lisboa
Que é um pouco de saudade

Hoje sou o campo liberto
Sou a Avenida iluminada
E eu que vivi no deserto
Encontro, enfim, o "Encoberto"
Que era a voz de um povo
Assassinada

Hoje sou D. Sebastião
E sou o ventre de onde saí
Sou a fome daquilo que fui
E sou aquilo que vivi

Hoje sou o grito que vem do fundo
E que se faz dia perante o sol
O Astro Rei escrito
A palavra dita e repetida
Sou tudo o que quiserem
Desde que me deixem ser Vida!

Fecho os olhos

Esperei por ti todas as horas
Mas não sou a sombra dos teus passos
Nesses fins de tarde de Outono
Em que as folhas se lembraram de cair
E de seguir o seu rumo natural

Talvez hoje eu deva ser Inverno
E seguir outro caminho de neve
Pois não se pode esperar que os passos voltem
Quando eles não querem voltar...

Temos de seguir o caminho natural
Das estações do ano

Talvez um dia fosse folha da tua árvore
Mas hoje elas caem sem rumo certo
E eu vou voar para longe
Onde os Invernos são mais quentes
E lareiras ardem sem se extinguirem

Desculpa
Mas agora vou fechar os olhos
E reter apenas as imagens que eu quero
No pensamento...talvez que ele me obedeça
Só os volto a abrir quando á minha frente
A Primavera se apresentar como nova estação
Aí eu talvez volte a acreditar em árvores
Em sonhos...em folhas...

Por agora
Fecho os olhos
E vejo apenas o que eu quero.

sábado, 11 de outubro de 2008

Sombra do Desejo

Não vês a sombra do desejo
Furtiva em cada esquina do teu gesto
Não vês que tudo aquilo que em ti vejo
É tudo em que o amor é manifesto

Não vês que as mariposas no cabelo
E a rosa que em teus lábios se desnuda
Não vês que o teu olhar é o modelo
Das vinte madrugadas de Neruda

Não vês no teu sorriso fogo posto
Que lavra nos fados onde morei
Se não vês tudo isto no teu rosto
Perdoa meu amor porque sonhei.

João Monge

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Rasgar o Ventre

Dá-me um pouco da tua vida
Mete sal na minha mão
Faz o mar
Constrói a lua
Há quem diga que ela
Se insinua...

Quero um oceano de paz
Quero ser capaz de rasgar
Estas ondas, rasgar este mar
Ir por aí fora, ser antes...agora
Ser futuro em ser passado
Ser tudo em não ser nada
Ser sonho...ser ilusão...

E acreditar nos astros
Nessas tais coisas siderais
Nesses caminhos que nascem
Nas palmas das mãos
E que rasgam a Via Láctea

Ser o Universo na Terra
Ser uma estrela no infinito
E acima de tudo, ser grito
Neste silêncio que nos aperta
E pedir sempre à terra deserta
Que me dê um oásis

Rasgar o ventre da minha mãe
Foi marginalidade sem verso
E hoje eu sei que o reverso
Disto tudo...
É ser na vida o que sempre quis.

Não Disse Nada Amor

Não disse nada, amor, não disse nada
Foi o rio que falou com a minha voz
A dizer que era noite e é madrugada
A dizer que eras tu e somos nós

A dizer os mil rostos de Lisboa
Ao longo do teu rosto se te beijo
À luz de um pombo chamo Madragoa
E Bairro Alto ao mar se te desejo

Não disse nada, amor, juro, calei-me
Foi uma voz que ao longe se perdeu
Cuidei que era Lisboa e enganei-me
Pensei que eramos dois e sou só eu.

António Lobo Antunes

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Carne Viva

Corta-me os pulsos
Com a faca mais aguda
E bebe o sangue que escorre
Por estas veias de tristeza
Que percorrem um corpo morto
E que não sabe ter instinto
Mexer-se...

Depois grita-me aos ouvidos
Faz de conta que eu sou surdo
E brinca comigo até a tua garganta
Perder a pulsação natural
E sentires as mãos dormentes
E as pernas a desfalecerem...

Por fim, agarra-me pelos pés
E arrasta-me pela rua mais sombria
Levando-me por becos que nunca vi
Para eu poder sentir o cheiro
A veneno que jorra pelas ruas

Faz tudo isto rapidamente
Que os golpes sejam certeiros
E acabes comigo num fôlego.

Não respires antes
Não te concentres
Para actos carnais
Basta ter a carne viva.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

E Agora?

E se de repente
A noite se fizesse dia
E acreditássemos que os nossos
Maiores sonhos podiam ser realidade?

E se o sorriso com que sempre sonhámos
Tivesse forma e ganhasse brilho...
O que faríamos?

Corríamos o risco e iamos
Até ao fim do caminho?
Ou apenas víamos da margem
O que podiamos ter ganho
Ou o que perdemos...

Mas por vezes vale a pena arriscar
Há olhos onde cabem o mundo
E onde queremos entrar
Nem que se tenham de arrombar portas

Nunca foi assim...
Até hoje não sabia o que era isto
E agora?
Por onde ir?




domingo, 5 de outubro de 2008

O Mar Fala De Ti

Eu nasci nalgum lugar
Donde se avista o mar
Tecendo o horizonte
E ouvindo o mar gemer
Nasci como a água a correr
Da fonte

E eu vivi noutro lugar
Onde se escuta o mar
Batendo contra o cais
Mas vivi, não sei porquê
Como um barco à mercê
Dos temporais

Eu sei que o mar não me escolheu
Eu sei que o mar fala de ti
Mas ele sabe que fui eu
Que te levei ao mar quando te vi
Eu sei que o mar não me escolheu
Eu sei que o mar fala de ti
Mas ele sabe que fui eu
Quem dele se perdeu
Assim que te perdi

Vou morrer nalgum lugar
De onde possa avistar
A onda que me tente
A morrer livre e sem pressa
Como um rio que regressa
À nascente

Talvez ali seja o lugar
Onde eu possa afirmar
Que me fiz mais humano
Quando, por perder o pé,
Senti que a alma é
Um oceano.

Tiago Torres da Silva

Um Homem Na Cidade

Agarro a madrugada
como se fosse uma criança
uma roseira entrelaçada
uma videira de esperança
tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem por força da vontade
de trabalhar nunca se cansa.

Vou pela rua
desta lua
que no meu Tejo acende o cio
vou por Lisboa maré nua
que desagua no Rossio.

Eu sou um homem na cidade
que manhã cedo acorda e canta
e por amar a liberdade
com a cidade se levanta.

Vou pela estrada
deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresça na vela da canoa.

Sou a gaivota
que derrota
todo o mau tempo no mar alto
eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.

E quando agarro a madrugada
colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada
um malmequer azul na cor.

O malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém
o malmequer desta cidade
que me quer bem que me quer bem!

Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis que me quer bem!

José Carlos Ary dos Santos

Foi no Coliseu

Naquela noite no Coliseu
Não sei o que aconteceu
Quando o olhar se cruzou
E alguém perguntou:
Falas tu / Falo eu

Foi a vida em concreto
Foi a palavra no tom certo
Foi a canção mais original
Foi o pecado no Carnaval

Mascarada
Fitas
Cores
Tudo à volta
Em mil andores

Confusão
Canções
Pelo ar andam
Ambições

Naquela noite no Coliseu
Tudo foi diferente
Tudo aconteceu...

Foi poema em concreto
Foi o longe que se faz perto
Foi o olhar que se adivinha
Foi a vida que é tua e minha

Foi aquilo que não tem explicação
Foi o bater do coração
Pulsação
Ritmo / Andor
Mascarada
Sem fulgor

Não sei explicar
O que esse olhar
Tinha de diferente
Um olhar que mente
Que fala verdade
Que sabe o que quer
Que sabe onde vai
Que canta poemas
Em tons desiguais
Um olhar de longe
De outros Carnavais

Foi no Coliseu
Que aconteceu
Aquilo que ninguém
Sabe.

sábado, 4 de outubro de 2008

Coisa Nova, Coisa Amar

Quando ela passa
Há uma coisa que anda pelo ar
Tem aquela graça
De quem sabe andar

Ombros direitos
Olhar perfilado
E sobre o peito
Um poema
Que sabe a fado

Seus pés têm sempre direcção
Viram para todo o lado
Mas sabem onde vão

Tem aquela coisa que não se sabe
Explicar
É aquela coisa
Que se nota ao andar...

Tem o pé do tamanho do mundo
Os cabelos são tranças de luar
São a história
A história sonhada
Que ninguém conseguiu inventar

É a viola que toca a compasso
O segredo está todo no passo...
É o caminho, é o atalho
É a mata, o ferro, o arado
É a terra, é o pão
Que se come e nasce do chão

É Portugal feito corpo novo
Num só corpo, todo um povo
É a magia que anda por aí
Que pára e volta a andar
É tudo o que se conta, o que se diz
O que se é capaz de amar

È razão
Poema feito
Corpo nascido
Sopro e fôlego
Coisa nova
Poema antigo
Discrição, medo
Angústia, fome
Tudo o que se conta
Tudo o que se diz
Tem nome
É feliz
Nasce felicidade
Cresce no vento
É razão, é realidade
É o passo da verdade

São passos escuros a andar
São pés feitos de luar
É tudo o que não se consegue
Explicar...

Coisa Nova
Coisa Amar.


Tinta Verde

Tinta verde dos teus olhos
Escreve torto no meu peito
Amores tenho eu aos molhos
Se pró teu me faltar jeito

No meu peito escreve torto
Na minha alma a dar a dar
Nunca mais eu chego ao Porto
Se lá for por este andar

Nunca mais eu chego ao Porto
Ao porto de Matosinhos
Adeus verde dos teus olhos
Estão cá outros mais escurinhos.


Vitorino

A esses olhos cor de bolota...

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

As Facas

Quatro facas nos matam quatro facas
que no corpo me gravam o teu nome
Quatro facas meu amor com que me matas
sem que eu mate esta sede e esta fome

Este amor é de guerra de arma branca
amando ataco amando contratacas
este amor é de sangue que não estanca
quatro letras nos matam quatro facas

Amando estou de amor e desarmado
morro assaltando morro se me assaltas
e em cada assalto sou assassinado

Ninguém sabe porquê nem como foi
e as facas ferem mais quando me faltas
quatro letras nos matam quatro facas
quatro facas meu amor com que me matas.

Manuel Alegre

Há experiências que não se esquecem, coisas que nos marcam, vivências que nunca se apagam. No final de 2005, início de 2006 tive essa experiência ao acreditar num sonho colectivo (fomos mais de um milhão): o de ter Manuel Alegre na Presidência da República. O mito feito corpo é completamente diferente, ter o poeta à nossa frente é inexplicável, é ter uma fonte onde não se pode beber toda a água. Nos discursos a que tive oportunidade de assistir era visível nos olhos de todos a vontade de mudança, a vontade de alterar algo, de recuperar algo que foi nosso e que é nosso (a pátria está entrenhada em Manuel Alegre; D. Sebastião nasce nos seus dedos e não há nevoeiro algum na sua escrita), havia a esperança de um futuro literário para o país, um Portugal feito poema, ousámos acreditar...
As palavras ficam-nos marcadas para sempre, aqueles momentos ficam gravados na memória, mais do que um corpo a visão de toda uma história num Homem, um Homem para além das páginas, um Ser Humano que nasce na liberdade do pensamento, na vontade de correr contra o tempo, contra a angústia...em algumas ocasiões chegamos a acreditar que D. Sebastião tenha voltado noutro corpo.

Partida

Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.

Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não há muitos que a saibam reflectir.

A minha alma nostálgica de além
Cheia de orgulho, ensombra-me entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a força de sumir também.

Porque eu reajo. A vida, a natureza
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar a bruma,
Correr no azul à busca da beleza.

Mário de Sá-Carneiro

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Ali, Então

Hoje crescem novas palavras e a estrada ganha um sentido único; hoje apetece-me representar, viver na pele de outro, voltar a sentir todas as emoções que não são minhas e sorrir por aí (embora algumas coisas ainda mantenham o sorriso fechado mas com trabalho e esforço a boca vai voltar a ficar iluminada por essa luz que não se explica); hoje arrumei mais um bocado do passado, mandei alguns papéis fora que já não tinham sentido algum e apenas traziam lembranças (para quê papéis? A memória vai fazendo o seu percurso sem precisar de sinais passados), tudo está diferente, é o regresso ao trabalho por um objectivo a longo prazo, é uma vontade que se renova diariamente. Hoje vivo mais, sinto mais Vida, e definitivamente são estes os caminhos que quero seguir...agora...sempre...pela eternidade.


Ali, então em pleno mundo antigo
À sombra do cipreste e da videira
Olhando o longo tremular do mar
Num silêncio de luas e de trigo

(Como se a morte a dor e o tempo e a sorte
Não nos tivessem nunca acontecido)

Em nossas mãos a pausa há-de poisar
Como o luar que poisa nas videiras
E em frente ao longo tremular do mar
Num perfume de vinho e de roseiras
A sombra da videira há-de poisar
Em nossas mãos e havemos de habitar
O silêncio das luas e do trigo
No instante ameaçado e prometido.

E os poemas serão o próprio ar
- Canto do ser inteiro e reunido -
Tudo será tão próximo do mar
Como o primeiro dia conhecido.

Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Porta Aberta

Porta aberta a quem bater
Quem mo havia de dizer
Que isso seria verdade
Esse teu corpo sonhado
O teu corpo bem-amado
Aberto a toda a cidade

Braço dado com a aventura
Vais de rua a outra rua
Em busca doutros amores
És de todos, de ninguém,
És a imagem de quem
Vende um punhado de flores

E dizer que te quis tanto
Que foste todo o encanto
Todo o sol do meu jardim
Quem sabe como eu te quis
Sabe bem que em ti perdi
Mais de metade de mim.

António Calém

domingo, 28 de setembro de 2008

Corpo (Na Pele das Mãos)

Há dias em que as portas batem com maior violência e em que as janelas se abrem com mais rapidez, há dias que passam tão rápido que parecem o estranho galopar de um cavalo por qualquer colina, há dias tão diferentes um dos outros que nos fazem pensar que ligação é que isto tudo pode ter? Que ligação têm as coisas que nos acontecem? O que é que isto pode dar? O que é que vai acontecer? Às vezes gostava de ter as respostas sem ter de fazer as perguntas, gostava que elas aparecessem escritas algures. Gostava de acreditar em alguma coisa de sobrenatural, que exista para lá de tudo isto, mas tenho a racionalidade demasiado entrenhada em mim e apenas acredito naquilo que vejo, devem ser felizes aqueles que acreditam em coisas para lá do visível, vivem sempre no mundo do "mas noutro sítio é diferente, vai ser diferente"; eu apenas sei o que se passa neste mundo. Somos malabaristas, temos várias coisas nas mãos e vamo-las mandando ao ar para depois tentarmos equilibrar tudo outra vez, mas às vezes acontece as coisas cairem, e parece que tudo se desmoronou, mas é tão simples voltar a pegar nas coisas e repetir os mesmos gestos, tá tudo nas mãos, nas nossas mãos, está na pele, pertence-nos. O corpo é um rio que não sabe onde é a foz, um rio sempre em viagem, e às vezes barco que não sabe onde vai parar, é uma estrada sem mapa, direcção, livre...sem grilhetas, sem algemas...livre. O corpo é tudo aquilo que temos de nosso e que não pertence a mais ninguém, fazemos com ele o que bem entendermos sem ter de lhe dar justificações. Às vezes ele reclama, não percebe, mas há razões que a própria razão desconhece...e sabe tão bem utilizá-lo apenas...porque sim.

Guarda-me A Vida Na Mão / Desculpa (Seria Quase Voz)

Guarda-me a vida na mão
Guarda-me os olhos nos teus
Dentro desta solidão
Nem há presença de Deus

Como a queda dum sorriso
P'lo canto triste da boca
Neste vazio impreciso
Só a loucura me toca

Esperei por ti todas as horas
Frágil sombra olhando o cais
Mas mais triste que as demoras
É saber que não vens mais

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Desculpa de não ser como tu queres
De ser o lado errado entre nós
Aperta-me em teus braços de mulher
Disse-te eu num soluço quase voz

Desculpa não ser mais p'ra te oferecer
No tudo que te dou e que é tão pouco
Repousa-me em teus braços de mulher
Disse-te eu num tom velado e rouco

Desculpa a pequenez que me apequena
Aos teus olhos adultos penetrantes
Acolhe com piedade a alma enferma
Disse-te à flor duns lábios delirantes

Desculpa por te olhar aquém do pranto
Que dos meus olhos corre ao estarmos sós
Desculpa por ainda te amar tanto
Disse-te eu num soluço quase voz.

Jorge Fernando

sábado, 27 de setembro de 2008

Loucos

Vivem de amor, deixa-os viver assim
Que nos importa o amor dos outros
Tudo o que tem princípio há-de ter fim
Deixa-os seguir em paz porque são loucos

São loucos como nós ainda somos
E amam como nós também amámos
São jovens como nós também já fomos
Namoram como nós já namorámos

Trazem na boca em cada beijo um grito
Grito de amor que o seu amor ilude
O amor e uma cabana é tão bonito
Quando se tem nas mãos a juventude

Momentos de prazer na vida há poucos
Breves como o cantar da cotovia
Deixa-os amar em paz porque são loucos
São loucos como nós fomos um dia.

José Luís Gordo e Mário Raínho

Para quando a neve cair nos cabelos de todos nós e o Outono for a estação derradeira...

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Algumas Palavras

É tarde e as palavras têm o sabor estranho de amoras.
Roubo-as no jardim da frente. Sinto o sabor.
A noite tem um sentido que ninguém conhece
Traz rosas por entre as estrelas como se fosse campo
Adão e Eva riem-se no paraíso neste momento
O que fará a maçã?
Alguém deve estar a gritar numa rua qualquer
Alguém deve estar a soltar pequenos gemidos
Será que a Terra parou de girar? Está tudo tão calmo...
O tempo está tranquilo...não se ouvem animais
Estranho tempo este...

Ficção

Ele acende um cigarro, como quem domina o tempo.

Vou-te fazer uma proposta indecente, menos própria se preferires...ah! E tu vais aceitar.

Ela sorri ligeiramente, como que se adivinhasse o que vai ser dito.

Faz então.

Ele senta-se e solta pequenos circúlos de fumo.

Esta noite...esta noite quero fazer coisas diferentes, quero sentir-me diferente, ir um pouco mais longe.

Os olhos dela mostram interrogação.

Não sei o que queres dizer com isso. O que pretendes de mim?

Ele levanta-se e apaga o cigarro mal fumado no cinzeiro. Do bolso do casaco tira uma corda branca.

Já percebes o que quero dizer? Sabes o que isto significa.

Ela solta uma pequena gargalhada, contida.

Não te sabia assim tão original...vais-me amarrar?

Ele inclina-se ligeiramente por cima dela.

Vou-te amarrar...beijar...apertar...e o que mais me apetecer.

Ela deixa-se ir.

Queres os meus braços? São teus...

Ele abre os lábios num ligeiro sorriso.

Não te incomodes, os braços não são necessários para isto.

Suor. Sangue. Odor. Gemidos. Gritos.

Casa Sombria (A Solidão)

Naquela estranha noite de Dezembro o frio entrava pelas janelas da casa abandonada sem que alguém pudesse encerrar de vez as portas e janelas abertas à madrugada. Não havia ninguém dentro da casa, há muito que era apenas um sítio perdido no meio de um pequeno vale; a água que escorria pelos seus canos, em pequenas pingas, era podre da cor do tédio, acizentada por tanta podridão que continha, há muito que a vida morrera ali. Pequenas ervas cresciam de encontro às paredes, ervas daninhas e grossas, como se fossem cascos de árvores a quererem erguer-se do fundo de um poço, ervas altivas, crescidas, com sangue por entre a sua cor verde, ervas de morte e de assombro. Tudo estava morto ali dentro, não havia réstea de vida por entre os quartos, outrora habitados por corpos esguios e sorridentes, famílias abrasonadas e cheias de sonhos de riqueza. Sentia-se o cheiro a solidão, o estranho cheiro das coisas paradas, da perseguição mal explicada, dos fantasmas vestidos de negro para não serem notados na noite. Lá longe ouvia-se o canto de uma coruja acordada fora do tempo, com os seus olhos brilhantes abertos à noite, e com o seu piar frio, distante, ausente...como se tudo o que estivesse diante dos olhos existisse mas não pudesse ser explicado. Havia um antigo relógio junto a um armário fechado, um daqueles relógios de grandes ponteiros, prontos a marcar as horas de minuto a minuto como se fosse um condenado no corredor da morte, tic tac tic tac...repetidamente, sem fazer pausas, era o único objecto vivo dentro daquela casa que a vida se esquecera de visitar. As telhas estavam repletas de fendas e quando chovia a casa parecia uma pequena catarata sem rochedos, pronta a que qualquer corpo se viesse lavar. Mas nunca ninguém apareceu, a casa manteve-se sempre sozinha com as suas ervas, o seu relógio, o seu tempo, a sua noite...a vida não sabia a sua morada.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Eu Não Sei Quem Te Perdeu

Quando veio,
Mostrou-me as mãos vazias,
As mãos como os meus dias,
Tão leves e banais.
E pediu-me
Que lhe levasse o medo,
Eu disse-lhe um segredo:
Não partas nunca mais.

E dançou,
Rodou no chão molhado,
Num beijo apertado
De barco contra o cais.

E uma asa voa
A cada beijo teu,
Esta noite
Sou dono do céu
E eu não sei quem te perdeu.

Abraçou-me
Como se abraça o tempo,
A vida num momento
Em gestos nunca iguais.
E parou,
Cantou contra o meu peito,
Num beijo imperfeito
Roubado nos umbrais.

E partiu,
Sem me dizer o nome,
Levando-me o perfume
De tantas noites mais.

Pedro Abrunhosa

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Don't Speak

Não me tome por arrogante, meu senhor, eu sou apenas como sou, percebe? Tente entender, eu sou uma alma elevada, alguém que nasceu acima, entende? Mas está mesmo a entender? Eu penso que o senhor não está bem a ver a importância da pessoa com quem está a falar...eu já fiz, Shakespeare e todos os grandes autores ingeleses, está a ver? Quais? Então...quais...todos, percebe? Nenhum em específico mas todos em particular, entende? O que eu lhe quero transmitir é que sou uma pessoa com enorme crédito, e vendo bem nas bilheteiras como você sabe e sinceramente...esta sua primeira peça, rapaz...não é que seja má, quem sou eu para dizer isso, mas não é a indicada para mim, entende? Eu preciso de outras coisas, das grandes palavras, dos grandes textos, dos grandes dramatismos da arte inglesa, uma certa maneira de fazer teatro...não sei se está a ver onde eu quero chegar. Mas ouça, porque é que não vai para casa e volta daqui a uns tempos com uma nova peça? Teria todo o gosto em lê-la e quem sabe até poderia interessar-me por ela e fazê-la, mas não esta, isso não. Isto é bom para uma actriz estreante mas como deve compreender o meu estatuto já não é para este tipo de papéis, eu fiz lady Macbeth, a das mãos sabe? Limpava todas as noites as mãos à mesma toalha...enfim, histórias do teatro, que você não deve estar interessado em ouvir. Mas compreendo que tenha vindo ter comigo, eu tenho um certo fascínio, é muito natural que me tenha procurado, não acho nada estranho, afinal de contas sou uma grande estrela, é preciso ter a noção clara disso, e eu, graças a Deus tenho, ah, meu amigo! Sou a melhor a representar. Ninguém decora textos como eu...e representa como eu claro, nao é só decorar, não pense que apenas decoro, eu trabalho, eu tenho...bem, você entendeu. Mas porque está tão pálido? E porque treme assim das mãos? O que se passa consigo? Quer dizer-me alguma coisa? E porque está a tocar-me assim? Que é...
Don´t speak!!!

A partir de "Bullets Over Broadway" de Woody Allen

Segredos

Meu amor, porque me prendes?
Meu amor, tu não entendes?
eu nasci para ser gaivota.
meu amor, não desesperes
meu amor, quando me queres
fico sem rumo e sem rota.

Meu amor, eu tenho medo
de te contar o segredo
que trago dentro de mim
sou como as ondas do mar
ninguém as sabe agarrar
meu amor, eu sou assim.

fui amado, fui negado
fugi e fui encontrado
sou um grito de revolta
mesmo assim, porque te prendes?
foge de mim, não entendes?
eu nasci para ser gaivota.

Paulo Valentim

Porque não conseguimos fugir das gaivotas? Porque elas teimam sempre em pairar? Liberdade...não te vou cortar as asas.

O Que Farei Quando Tudo Arde?

A janela estava aberta como sempre esteve, como se fosse esperado um visitante que nunca apareceu, como se as almas estivessem ali à espera que algo acontecesse; talvez o sol não nascesse naquele dia em respeito a ele, que ali estava, simplesmente à espera, sem contar o tempo, sem olhar para o relógio, apenas a ver o estranho rumo da natureza quando o vento se lembra de levantar as pequenas folhas que caem pelo chão. Estava um dia cinzento, daqueles que não apetece fazer nada, a não ser ficar parado e a lembrar tempos que já passaram, tempos vividos (bem vividos), de sorrisos, de amor, de beijos, das estranhas tardes de sol que só Junho sabe ter...somos tão diferentes em Setembro; Setembro tem a doce melancolia dos dias que já foram, aviva as memórias, faz-nos recordar as coisas que passaram, as coisas que ficaram, "o que farei quando tudo arde?" escreveu Lobo Antunes, o que faremos quando as memórias não queimam? Não ficam em cinzas? Quando há sempre esta fogueira dentro de nós pronta a expulsar labaredas para quem quer que se aproxime (cala-te coração! Não digas mais nada! Não vês que alguém te pode ouvir? Não vês que estás demasiado acelerado? Olha se alguém dá por ti a bater dessa maneira? O que vai pensar de mim? Sim...quem tem um coração a este ritmo não pode estar muito bem!) Não mandamos em nós, nem no que queremos, apenas podemos tentar esconder aquilo que sentimos, umas vezes com sucesso, noutras a verdade é demasiado nítida. E sabem o que nos resta quando tudo arde? Uma janela aberta...como sempre...como antes...à espera da estranha alma que tem pernas e anda...por aí.