sábado, 31 de outubro de 2009

"...o que me torna firme na minha opinião, é a desigualdade dos actores que representam com a alma. Não podeis esperar nenhuma unidade da sua parte; a sua interpretação é alternativamente forte e fraca, quente e fria, aborrecida e sublime. Amanhã falharão no passo em que hoje foram excelentes; em contrapartida, serão excelentes naquele em que tinham falhado na véspera. Enquanto que o actor que interprete a partir da reflexão, do estudo da natureza humana, da imitação constante de qualquer modelo ideal, a partir da imaginação, da memória, será um, o mesmo em todas as representações, sempre igualmente perfeito: tudo foi medido, combinado, aprendido, ordenado dentro da sua cabeça; na sua declamação não há nem monotonia, nem dissonância...se há qualquer diferença de uma representação para outra, é normalmente para vantagem da última..."

DIDEROT

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

20h08m

20h08m

ouço o Espelho Quebrado da Amália e o veludo torna-se palpável; a garganta torna-se como que um corpo e as palavras de David Mourão-Ferreira são como as facas que o Manuel Alegre tão bem soube descrever.

horas de erudição e poesia acompanhadas com uma boa melodia do Oulman, um jantar servido sem termos pedido fosse o que fosse; para sobremesa temos a tristeza e a melancolia que existem nesta voz, o café é a solidão das letras aqui cantadas.

"em mim foi mais violento...o vento"

tema seguinte...anda o sol na minha rua...Mourão-Ferreira e Fontes Rocha...a eterna guitarra do Fontes Rocha, a viola do grande Martinho D'Assunção...há sempre quem apareça para jantar, estes são da casa...o Fontes, o Carlos Gonçalves, o Paquito, o Joel Pina, o Jorge Fernando, o Jaime Santos, o Carvalhinho, tantos outros...

Hoje a convidada é Amália. Emudece o tempo, lá fora está frio...aqui choram guitarras a dor nunca sentida. Lá vem a velha "Tirana"..."a arremendar a jaqueta...com pedaço de cortiça...julgando que era baeta...oh! Tirana! Olé Tirana" é a voz de um povo que se ergue, os cantares populares são as vozes de todos nós em uníssono. Pobre Tirana queimada no forno e apenas com a mão de fora (como somos trágicos, até na mais simples canção popular).

A tragédia...sempre a tragédia...até quando não pensei escrever sobre ela; cá está outra que também aparece sem ser convidada. Talvez por isso a voz da Amália seja a voz de uma Electra portuguesa. Contudo...
"cheira bem, cheira a Lisboa"...

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Fado Final

com o som das folhas caídas,
levadas p'lo vendaval,
surgirá um novo Outono,
meu vago e manso final

vou dar à terra primeiro
as brancas mãos cor de cera
e ao vento caminheiro
dar os meus cabelos de hera
e os meus segredos de amor
vou dá-los à Primavera

tristes são meus olhos tristes
vou levá-los ao mercado
das fantasias desfeitas
onde mos tinham criado

deixo à alma os meus tormentos
p'ra que os apague nas ondas
deixo ao vento os sofrimentos
dum caminho de mil rondas

com o som das folhas caídas
arrastadas pelo vento
será criado outro fado
livre das grades do tempo.

António Feijó Teixeira

domingo, 25 de outubro de 2009

O Tempo Não Perdoa

Quero perder-me de mim
E pensar que foi assim:
A vida num só momento
Perder-me pelo trivial
Por tudo aquilo que é banal
E se esconde no sentimento

Quero fugir do que fui
Encontrar o que serei
Ter a coroa da felicidade
E depois encontrarei
Por sombras que já nem sei
A minha manta de saudade

Quero encontrar o que perdi
O que jaz morto mesmo aqui
Nestes pés que pisam o vento
E por entre a velha lembrança
Lembrar ainda a criança
Que se perdeu sem intento

Encontrar as memórias
São apenas velhas histórias
De quem já não tem o que contar
E depois chora sozinho
Pois o homem já foi menino
E o tempo não lhe pode perdoar.

Ministras

Nunca ao longo deste tempo em que mantenho este espaço na internet falei de política (pelo menos que eu me recorde) e se o faço agora é por motivos de força maior. Faço-o para louvar a escolha de Gabriela Canavilhas para o Ministério da Cultura, primeiro por ser uma mulher (e também eu acredito que é nelas que está o possível futuro das nações), depois por ser uma artista e estar ligada a este mundo das artes em que todos gostamos de estar incluídos, e em terceiro (e talvez o maior motivo de regozijo) por não ter qualquer peso político; e talvez este seja o argumento da discórdia porque, pelo que tenho lido na imprensa, muito se fala da falta que fazia alguém com peso político numa pasta como a Cultura, mas eu penso que qualquer pessoa bem informada sabe o que esses cidadãos com peso político fizeram por esta pasta: NADA. É de louvar que a escolha tenha recaído numa mulher independente e com provas dadas numa situação tão díficil como a vivida pela Orquestra Metropolina de Lisboa, não precisamos de uma pessoa com peso político mas com peso cultural e que saiba minimamente o que é a Cultura com c maiúsculo.

Gratas memórias também tenho de Isabel Alçada; só tenho a dizer que espero que continuem a ser gratas.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Cavaleiro

E galgou fontes por onde nunca andou
Foi chamado de cavaleiro das tempestades
Por entre os sargaços ele ainda amou
Tudo aquilo que é feito de saudades

E correu por memórias de vidas passadas
E foi a lembrança que ainda não nasceu
Sonhando com aquelas horas desesperadas
Em que um sonho ao nascer já morreu

Esperança que foge por entre os dedos
Cavaleiro do tempo já passado
Os teus medos ainda são os nossos medos
Mudam-se os tempos mas não muda o teu fado.

domingo, 18 de outubro de 2009

Quase Um Anjo / Fado Vadio (Má Fama)

Sei que já foste gaivota
És tão antiga a voar
Sabes da ilha remota
Que só se encontra no mar
Leva-me ave do destino
Faz de mim o teu poente
Tu que és quase, quase um anjo
Faz-me perto de ser gente

Sei que já foste gaivota
Candeia de um pescador
Amante de caravela
Aquele voo incolor
És um anjo sem andor
À procura de uma estrela
Quase nada, quase dor
Quase vão de uma janela

Sei que já foste gaivota
Sei de cor por onde andaste
Sei de cor todos os mapas
Do coração que traçaste
Leva-me ave do destino
Faz de mim o teu poente
Tu que és quase, quase um anjo
Faz-me perto de ser gente

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já andei pelos telhados
para me vingar do céu
abri feridas na lua
mas de todos os pecados
aquele que me perdeu
foi demorar a ser tua

fui de viela em viela
bebi água da chuva
dormi onde me acolhiam
tive casas sem janela
mais de mil vezes viúva
dos amores que me morriam

já marquei homens dos tais
roguei pragas a quem passa
ganhei fama de vadia
como os gatos dos quintais
fui caçadora e fui caça
mas só queria companhia.

João Monge

palavras para quê? quem escreve assim nasceu de uma estrela e chegou à terra com uma caneta na mão

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Varina do Mar

Saia curta mas a direito
Leva a tristeza ao peito
Como se fosse um condão
Varina desta cidade
Ainda vendes a saudade
No grito do teu pregão

Canastra com sardinha
A tua dor é a minha
Partilhamos a amargura
Procuramos o sossego
Por entre um aconchego
Encontramos a ternura

Somos o hino da liberdade
No mar temos a nossa cidade
Nele tens o teu ganha pão
Levantas-te de madrugada
No soar de cada alvorada
É onde nasce a nossa canção.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Janela Aberta

Numa esquina de uma cidade
A pedir com a mão estendida
Está a dor mais a saudade
São pedintes da cidade
A pedirem esperança à vida

Sobre os pés uma calçada
Com basalto de tristeza
Sobre os pés não têem nada
Apenas a dor magoada
Que encobre a pobreza

Uma manta cobre a dor
Que existe sempre encoberta
Ainda há quem espere amor
Por entre peçados de dor
Ainda há uma janela aberta.

A Nossa Velha Infância

Despes a mágoa perante o corpo nu
E alguém te olha da varanda
Não reparas que esse alguém és tu
A quem a mágoa sempre levanta

E a dor que tinhas em ti contida
Esbraceja do corpo já usado
Liberta os grilhões e grita à vida
Alguém há-de ouvir-te no outro lado

E procura um sinal, um contratempo
Procura tudo o que está numa quimera
Talvez no infinito de um momento
Vejas as estações à tua espera

E sê a folha viva, outrora morta
Grita por entre o vento e a lembrança
E vais ver que se há-de abrir a porta
Para aquela que foi a nossa velha infância.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Mágoa Contida

A tua vida na minha mão
Um só coração a bater
Acreditar que de cada ilusão
Há uma realidade a nascer

A simplicidade da vida
Na sombra que nos segue
A saudade esquecida
Pela dor que nos persegue

E da mágoa contida
Fazer um grito alcançado
De toda a dor infinita
Terminada num fado.

sábado, 3 de outubro de 2009

Sombras da Ilusão

Despiu os véus que lhe cobriam o corpo
E o pudor caíu em marés de nudez
Viu-se ao espelho, e que espanto...corpo morto
Morto pela saudade sem revés

Chorou lágrimas que não tinha
E a mágoa fez-se mais tarde em pó
A criança que foi já não é minha
Triste imagem em mim a causar dó

Hoje as naus têm outro rumo
Já não vão para Ítaca desejada
A saudade, essa fez-se em fumo
E fez do deserto uma praia povoada

Pobres sombras da ilusão perdida
Vultos que encobrem a solidão
Perdemos tudo, adeus à vida!
Que me deste por castigo a paixão.