segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Ninguém Limpa As Lágrimas A Quem Chora

A menina chorava à janela todos os dias, não sabia porque chorava e também não tinha interesse em saber, gostava de sentir as lágrimas a cairem-lhe pela cara, tinham o estranho gosto do mar e, por momentos, ela podia sentir-se como uma onda. Ninguém reparava na menina que chorava à janela, há já muito tempo que ninguém reparava na dor que pairava por aquela casa, já se tinha tornado um hábito ver os seus habitantes com os olhos rasos de lágrimas, era um cantochão que teimava em nunca acabar, uma dor que não podia ter fim, já fazia parte da família e era sempre convidada a jantar à mesa, como um formal convidado. A menina tinha uma boneca que apertava contra o peito quando sentia a dor mais intensa, nunca lhe tinha dado um nome, não precisava que aquele seu brinquedo tivesse um nome, apenas queria apertá-la contra o seu peito e sentir que tinha alguém com ela, ningúém gosta da solidão e ela tinha de arranjar uma companhia para não enlouquecer por entre as suas lágrimas; a boneca não era muito bonita, tinha uns longos cabelos pretos e uns olhos castanhos, mas não aquele castanho simpático, côr de avelã, era mais um castanho de sujo, de impuro, algo que trazia uma energia negativa, mas no entanto...no entanto aquilo era apenas uma boneca e a sua aparência não interessava para a menina, era a sua companhia e pronto, era mais que o suficiente. Melhor ainda ela não ser bonita, assim se alguém aparecesse não ia reparar na boneca mas sim na menina; também ninguém aparecia, a casa já não tinha visitas há muito, encontrava-se encerrada em si mesma, uma casa feita de sombras e fantasmas, onde os passos que se ouviam a meio da noite faziam-nos viajar para outro tempo, tempos em que naquela casa havia festas até altas horas e enconbria-se a tristeza em taças de champanhe. Ninguém limpa as lágrimas a quem chora, ninguém liga aquilo que não conhece e ninguém podia adivinhar o coração desesperado daquela criança, o coração desesperado por gritar mas no entanto, tendo de suportar uma garganta que não se queria abrir, apenas ficar encolhida dentro do corpo humano. O medo nunca se mostra, vive por detrás das vidraças mais encobertas e nunca lança um sorriso para a rua, no outro lado da janela, lá em baixo, no jardim, existia um baloiço que nunca tinha sido utilizado, claro que a menina, já por várias vezes até, tinha pedido para ir andar um pouco nele mas sempre lhe foi negada a vontade, a menina tinha era de ficar fechada no seu quarto e pronto, se quisesse balançar tinha os seus sonhos para fazê-lo. E ela sonhava...sonhava muito, o mais que podia, entrava noutro mundo de cada vez que um sonho a assaltava, era por isso que dormia até tarde, também não tinha nada para fazer caso acordasse cedo, tinha sempre a sua janela à espera e uma lágrima pronta a cair. Esperava que um dia alguém viesse e lhe trouxesse uma flor, qualquer flor, tinha um vaso pronto há já algum tempo para receber esse presente de alguém, queria dar um pouco de vida aquele quarto mas apenas com uma flor, nada mais do que isso, na vida nunca se deve cometer exageros, sempre tudo com ponderação, pelo menos era isso que lhe diziam de cada vez que a viam. Gostava de amar alguém, que alguém a ensinasse a amar, só sabia da existência do amor por um velho livro que escondia debaixo da cama, mas parecia tão bonito, parecia tão fácil amar alguém, e até o beijar parecia ser simples, o encostar os lábios e sentir a respiração da outra pessoa, tudo isso a intrigava e fascinava, além de que fazia ela querer saber mais e mais, mas nunca conseguiu ir até à biblioteca da casa, apenas tinha encontrado aquele velho livro esquecido em cima de uma cadeira. Ela sabia que um dia tudo ia mudar, um dia ia sentir vontade de sorrir em vez de chorar e a partir daí mais nenhuma lágrima iria percorrer o seu rosto, não sabia se esse dia estava perto ou longe mas também não interessava, ela tinha tempo...e a sua boneca também.

sábado, 29 de agosto de 2009

À Janela

Cada vez que eu olhava para o lago esperava o barco que ia trazê-lo; para dizer a verdade isto não passava de um sonho que me acompanhou a juventude toda, para ser sincera nem precisava de ser um barco, ele poderia vir num cavalo ou até numa mota (embora esta ideia da mota não tenha metade do romantismo de um homem a cavalo). Às vezes até abonecava-me um bocado, afinal de contas queria estar apresentável no dia em que ele me aparecesse, não podia ser surpreendida porque depois ele podia não se apaixonar por mim. Isto não passam de sonhos, apenas isso, sonhos que eu fui acalentando durante a minha vida toda, ideias que nasceram dos romances que eu nunca li e dos quais apenas vi as capas, ideias vindas dos filmes com os actores da moda, e de alguns filmes antigos também, ainda estremeço um bocado quando vejo a imagem do Brando, talvez trema por ele me fazer lembrar o meu pai, por ter os olhos dele e até algumas parecenças físicas, mas também isto pode apenas ser a minha imaginação. Não conheço o meu pai, dele apenas tenho uma foto em cima do aparador e nada mais, acho que a minha mãe tem mais algumas coisas mas nunca mas mostrou, são coisas dela e ninguém tem nada a ver com isso, que ninguém mexa em nada do que lhe pertence. Lembro-me quando era pequenina, antes de ficar os meus dias aqui á janela, e ia ao quarto dela às escondidas, mexia em tudo o que podia e depois voltava a arrumar com o máximo dos cuidados pois se ela viesse a descobrir alguma coisa era mais que certo que me dava alguma palmada; adorava experimentar os vestidos dela e andar-me a roçar pelas paredes da casa, às vezes até punha um pouco de perfume atrás das orelhas porque dizem que é onde menos se nota, ah! E não me posso esquecer do baton, o velho baton vermelho que ela punha todos os dias. Hoje já nada disso persiste, nem os vestidos nem os perfumes, é apenas uma miragem daquilo que já foi, vive de vida morta e não sabe como sair dela, sinceramente também acho que ela não quer sair da masmorra em que ela própria se pôs, talvez se sinta protegida e já não esteja preparada para a vida cá fora. O que me mete confusão é como é que nós sobrevivemos, não sei de onde vem o dinheiro para a nossa sobrevivência, apenas sei que ele aparece, nada mais. Até hoje nunca me faltou nada, se quero alguma coisa basta ir ao quarto e falar com ela, e depois as coisas vão aparecendo. Há já alguns anos que eu escolhi este lugar aqui à janela, escolhi-o porque sei que o meu príncipe há-de aparecer, seja no pequeno lago em frente à casa pelo bosque que a cerca, o que me interessa é que ele vai aparecer, isso é o importante! A minha mãe diz que eu já não tenho idade para acreditar nestas coisas mas ela também não sabe nada da vida, já não sai daquele quarto há anos, não tem a noção de como estão as coisas cá fora agora. Eu gostava que ela saísse, que viesse ter comigo e que fossemos passear, nem que fosse durante pouco tempo, gostava de passar alguns momentos com ela fora daqui e fingirmos…fingirmos que somos normais, não sei…não sei explicar-me, nunca fui muito boa com as palavras, nunca as soube escolher e também nunca tive muita aptidão para o português, sei o básico para comer e dormir e é mais que suficiente. Sim, talvez seja uma mulher das cavernas encerrada num tempo moderno, ou então talvez seja um mito que eu própria criei de mim mesma e não exista, talvez nem mesmo este lago não exista e seja tudo apenas o fruto da minha imaginação precoce. Viemos do nada e ao nada voltaremos um dia, eu acho que já nasci em cinzas e não vejo a maneira de renascer delas, não fui talhada a ser um ser vivo, apenas mais uma que aqui anda à procura do nada e que dá sempre de frente com o tudo. Não sei o que sou nem para onde vou, talvez um dia ganhe coragem e vá por este lago adiante até à outra margem. Depois digo adeus à minha mãe, pode ser que ela venha ter comigo.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Mandei Recado À Cidade

Vendi as palavras todas
Vendi-as para te encontrar
E comprei o meu silêncio
Como quem vai navegar

Dos jardins falei às flores
Do teu nome começado
Do espelho dos teus olhos
E do teu corpo fechado

Mandei recado á cidade
Mandei recado ao país
E cantei para não estar só
A libertar a raiz

Depois, amor, fui á praia
Molhar-me do coração
E regressei no instante
De me dar à tua mão.

Vasco de Lima Couto

mais um poema do Vasco de Lima Couto, mais um pedaço de mim, mais um pedaço de fado.

sábado, 22 de agosto de 2009

Ninguém Se Casa Em Agosto

Ela olhou para a montra da loja de vestidos de noiva e desatou num pranto; obviamente que quem passava pensava que ela era uma solteirona qualquer a pensar no grande dia, ou então uma virgem para sempre entregue a orações e nada mais do que isso, mas não, o problema não era nenhum destes que passava pela cabeça dos banais humanos que olhavam para ela: como é que alguém arranja um vestido de noiva em Agosto se a loja está fechada? Claro que agora o comum leitor deste texto vai chamá-la de irresponsável e dizer que não se guarda tudo para a última, que ela já devia ter escolhido o vestido à muito tempo e que agora era tarde para ela fazer fosse o que fosse se não aceitar os factos. O que o estimado leitor deste texto não sabe é que o acompanhante desta menina (vulgo namorado) a tinha pedido em casamento exactamente à dois dias, e milagre dos milagres (visto ainda existirem homens eficazes, ou então com medo que as mulheres pensem melhor e resolvam fugir...) tinha marcado o casamento para exactamente três dias a seguir ao pedido. Sim, esta história pode parecer um pouco inverosímil e até, talvez, já tenha deixado alguns de vós desesperados e, como conclusão desistiram de a ler (o que é uma perda enorme para qualquer leitor atento dos textos de grande qualidade literária que vão passando por aqui), mas a verdade é que tudo isto é verídico e o homem cismou mesmo em casar daí a três dias; o problema, e nisto nós homens também somos culpados, é que ele não pensou em tudo aquilo que a noiva também tem para resolver (para começar porque é uma indelicadeza marcar um casamento sem saber se a respectiva senhora está no tal período complicado do mês, porque convenhamos: o vestido é branco!!), mas isto não intererrou minimamente ao macho latino e por isso mesmo encontramos esta pobre mulher a chorar frente a uma loja de vestidos de noiva. Pensam agora vocês, e muito bem, o porquê de ela não meter-se no seu carrinho e ir procurar outra loja mas esta mulher encontra-se presa ao chão, porque está presa ao vestido cor de creme que apenas ali encontrou, ali, naquela montra! "Mas ela ainda está com caprichos?" pensam todos vocês, e mais uma vez a demonstrar rápida eficácia mental, mas caramba! É o casamento dela, o único que ela vai ter (não se aceitam opiniões quanto a esta frase, vocês não conhecem o namorado da senhora também não podem opinar quanto tempo é que isto tudo vai durar) e não quer que ele seja de qualquer maneira, já bem basta não saber minimamente o que a espera no próprio dia (ainda por cima tinha sido um homem a preparar tudo), compreenda-se que esta mulher está como nós perante um filme com o Harrison Ford, à espera de uma enorme catástrofe e, ao menos, queria ir bem vestida para ter algo de positivo para recordar (ela já estava a pôr em causa todo o resto da festa, é verdade). Bem...ela tinha sempre outra opção, mais difícil, é verdade, mas mesmo assim uma opção mais que válida dadas as circunstâncias...pegar no seu telemóvel e pura e simplesmente dizer ao rapaz que já não se queria casar com ele, que tinha tido um espasmo no momento em que ele se declarou e que aquilo que parecia ter sido um sim a sair da sua boca foi apenas um pequeno fio de baba acompanhado de alguns monossílabos; ou então dizer a verdadeira razão porque sempre gostou de filmes com a Meg Ryan: era uma lésbica incurável, louca por loiras e com tendência a usar sacos de pão no lugar das cuecas (peço desculpa mas esta última parte obviamente que não tem nada a ver com a Meg Ryan...quer dizer, para ser sincero também nunca vi as cuecas dela, mas prefiro não ir por aí...). Havia tantas desculpas possíveis mas nenhuma tinha sentido, nenhuma era dotada de razão, nenhuma era...era...nenhuma era o suficiente para ela conseguir esquecer aquele vestido! Ela apenas se queria casar para poder usar aquele vestido, ela queria lá saber do rapaz, da festa e fosse do que fosse: a sua razão de viver naquele momento era aquele vestido, e devido a isso os seus olhos pareciam uma pequena catarata prestes a explodir perante a povoação mais próxima. Ela até podia não se casar, mas aquele vestido tinha de ser dela, e naquele momento, agora que o tinha visto não o podia perder, e não foi de modas: vá de agarrar numa pedra e pregar com ela na bela vitrine daquela imponente loja de noivas, e então, como se tivesse acabadinha de sair dum filme de gangsters, vá de roubar o vestido e enfiar-se com ele dentro do metro (entretanto tenho de referir que ia sofrendo de cinco avc's consecutivos). E claro que todos vocês pensam que a história vai acabar assim, com ela a fugir e a casar-se com o seu belo vestido, mas enganam-se, eis que quando ela entra no metro repara numa cigana que dentro de um saco verde, um enorme saco verde, tem exactamente cerca de dez vestidos iguais aquele que ela tinha acabado de roubar e, para finalizar, a cigana ainda teve o descaramento de dizer:
"Por dez euros e noventa cêntimos já não se encontram vestidos destes, foi uma sorte a prima Cidália ainda ter lá estes todos para eu casar as minhas meninas, vão ficar tão lindas...." "E quando são os casamentos" pergunta um homem que...(bem, não sei se era bem um homem, mas tinha bigode, embora também tivesse qualquer coisa que parecessem uns seios...enfim) "Quando são os casamentos? Então isso é pergunta que se faça? Em Setembro, ora essa! Mas alguém se casa em Agosto??"
Adeus vestido, adeus festa, adeus casamento, adeus noivo. O vestido ficou no lixo, a festa não se concretizou, o casamento foi cancelado e o noivo ficou a chorar no colo da mãe dela. Ela comprou um bikini e anda a pavonear-se por Vilamoura.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Carta de Amor a Lisboa

Gosto de Lisboa com paixão
e às vezes agarro-a pela mão
e sem ela querer, como um esticão
corro da Sé até ao Alto de São João
para ela ver como ainda é tão popular

Gosto da Lisboa de riso traquina
da eterna menina que ri com garra
que cora quando passa por Alfama
mas sabe sorrir no velho Alto do Pina

E que bem que eu a vejo...
oh! Velha Lisboa que casaste com o Tejo
mas a tua mãe nunca o soube, o teu
pai, para o casamento, nem foi convidado
e para maior desgraça tiveste por madrinha
uma guitarra e por padrinho...o fado

Hoje nenhum te larga, em cada viela
é ver ela a cantar com o padrinho...
que gracinha! que bonitinho...
dizem os camones que dão um ar de mirones
quando passam pelas tuas velhas tascas
com ar rasca, sim senhor! Mas não é miséria
encobrida, é apenas a tua cor garrida
que ainda tem o mesmo valor

E agora já nem sei se foi visão
mas no outro dia, ao passar pela Madragoa
julguei ver uma varina a cantar o "Lá
vai Lisboa"...mas se calhar é apenas a saudade
de uma velha cidade que eu não conheci

A cidade do Páteo das Cantigas
e das velhas amigas que falavam
de janela para janela, para comentarem
a vida alheia que a vida delas não
interessava a ninguém...olha! Lá vai
aquela que já não tem pai nem mãe

É prostituta e fez-se à vida, é
esquina de rua e anda por becos e travessas
a ver o que dá para render, também ela
tem lá em casa um filho que precisa de comer
e um chulo que lhe dá porrada a valer

E o meu velho Parque Mayer, hoje
só veste de luto e há sempre uma lágrima
que enxuto quando vejo aqueles teatros a
arder...sim, não se deixem enganar porque
o fogo às vezes queima e nós sentimo-lo
cá dentro a latejar

Ao menos tenho o Rossio, e também o Nacional;
para recordar a dona Amélia, o Robles Monteiro... e
ao longe ainda vejo um cacilheiro com velha fama, e
se não me engano vai lá dentro o grande José Viana!

Oh tempo volta para trás, se fores capaz
dá-me de volta a minha velha paixão,
traz a voz da Berta, da Lucília e até
a do sempre novo António Mourão

Oh tempos que já lá vão e não voltam
nunca mais...apenas a saudade é que fica,
já nem tenho a guitarra para recordar
esse que ficou conhecido como o miúdo
da Bica...isto é uma memória muito minha
e para quem não sabe falo desse grande
Fernando Farinha

Lisboa é fado, é marcha popular,
é verso por compôr e fado por cantar,
é poema nunca feito, e tem sempre
o mesmo jeito de menina louca,
que anda em arraiais à procura
de uma boca para dar um beijo...

Adeus, adeus oh Tejo! Leva
as mágoas desta gente para Espanha
e depois volta para nós, se o fizeres
nós soltamos a voz e vamos por todo o lado
gritar viva Lisboa! Viva à memória! Viva ao fado!

Para a cidade que eu amo, para a música que me viu nascer, para os artistas que ainda posso ouvir e ver, uma carta de amor à cidade.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

No Príncipio...Era A Terra

E de repente vejo-me a matar a minha filha e a pensar que não tinha outra hipótese, penso que a honra é aquilo que mais valioso temos na nossa vida e que a vontade de um não pode ser a vontade dos outros, mas que a vontade dos outros, por vezes, tem de ser a vontade de um. Que estranho é este homem que começa a nascer e agora, a esta hora da noite, pus-me a pensar que homem é este que mata a sua filha em nome de uma guerra, isto não cabia na cabeça de ninguém hoje em dia, bem...talvez coubesse na cabeça de certos fanáticos que ainda hoje matam os filhos, mas para um mero rapaz ocidental nascido num dos berços da Europa? Que homem este, que força que ele tem...será que eu, com este corpo e esta cabeça, consigo entrar dentro dele? Aos poucos...aos poucos penso que sim. Não ando a ler todos os livros que me aparecem sobre ele, todos os textos, todas as ideias que já foram escritas, isso não me interessa por agora; agora é o conhecimento, são as bases, sou eu e o texto que tenho para dizer e é através desse texto que eu vou ficar a conhecê-lo, não através daquilo que os outros escreveram, o que me interessa é aquele homem naquele momento, no momento em que eu o encontro, em que eu digo aquilo que ele pensa, só o texto e nada mais, o resto vem depois...o destruirem-me as ideias que eu já tinha sobre ele, o darem cabo daquilo que eu pensei, mas isso é o normal, mas mesmo assim não me rendo, defendo até à última linha cada coisa que acho que está certa porque sou eu que o faço, é de mim que ele nasce, o que ele sofre, o que ele transporta é através de mim que tem de passar por isso ninguém melhor do que eu para saber o que ele quer. Claro que está aqui um pouco de egocentrismo, mas caramba...nunca mais o vou poder fazer e muito menos nestes moldes; o normal será até nunca mais fazer uma personagem em que mato a minha própria filha, por isso o melhor é aproveitar agora e esburacar cada pedaço da sua alma, que por momentos (insisto) que por momentos...vai ser a minha alma. Vou voltar a ser rei (que saudades, sabem que sim, os bons velhos tempos...), voltar a transportar toda a importância para uma personagem, voltar a ter aquele olhar (que olhar!!), mas não o mesmo olhar, os olhos continuam a ser os meus mas os desígnios são outros, agora obedeço a um Oráculo, há uma força suprema por cima de mim, um céu que me pode cair em cima (sempre deve doer um pouco mais o céu inteiro do que apenas o céu da Dinamarca...). Mas estou pronto, ou por outra, começo a estar pronto para levar com esse céu. Começo a ter a velha vontade de voltar a trabalhar, de encontrar o meu irmão, ver a minha mulher, abraçar pela última vez a minha filha, bem...até pareço um homem de família num daqueles contos de Natal da Disney. Vou voltar aos primórdios, ao príncipio de tudo, ser um dos primeiros homens que pisou a Terra (claro que ele não é assim tão antigo, mas fica mais poético), e vou estar atento porque coisas destas...só se vivem uma vez na vida.

Vou abrir os céus, calcorrear a terra
Fazer da minha vontade a do meu povo
E conhecer aquilo que o mar encerra
No sangue ardente que eu próprio revolvo...

terça-feira, 18 de agosto de 2009

O Relógio Parou...

E o abraço fez parar o relógio que teimosamente marcava as horas. Não sabemos se foi o dela ou o dele, afinal somos meros espectadores e nem nos é permitido fazer juízos de valor, mas pela forma como ambos se entregavam à paixão quase de certeza que foi o braço dela que bateu no ponteiro do relógio e o fez parar. Talvez tivesse de ser assim para não contarem o tempo, talvez estivesse escrito nalgum destino que ela tinha de tocar com aquela mão naquele relógio aquele exacto momento. Não sabem como a história começou, e aquilo que eu sei é que ele começou por subir os degraus devagarinho, um a um, sem pressas (afinal o tempo nunca intererrou a nenhum deles), ele acendia o cigarro lentamente e sabia que ela já sentia o cheiro do seu tabaco, mais do que o som nas escadas ela reconhecia-o pelo cheiro dos cigarros dele, os mesmos há anos, como se fosse um ritual que não se pode alterar. Ele abriu a porta devagariinho, sabia que ela não gostava de ser surpreendida, ela esperava-o com o sorriso de sempre. Claro que ele fez com que ela se levantasse, a intimidade não podia ser motivo para ela não ter um gesto de gentileza para com ele mal o visse, e ela sempre percebeu isso. Levantou-se como se fosse aquela gata em telhado de zinco quente, com medo de pisar o chão, com medo de pisar alguma ratoeira ali posta por engano, ela foi ter com ele, felinamente, saboreava cada momento, cada olhar dele de desejo, sentia que ele a despia com os olhos, e quanto mais ela sentia aquela paixão mantida ao longo de anos de silêncios mais ele se excitava com o corpo dela. Quando ela estava apenas à distância de um abraço ele agarrou-a e não deixou-a sair mais, prendeu-a como se fosse um pássaro, ficou cativa dele naquele preciso instante (como se já não o fosse antes...). Bem, deve ter sido nesse instante que o relógio sofreu aquele pequeno hematoma, não sei bem quando foi porque fui apenas um espectador, um voyeur que não foi convidado a participar em nada mas que não conseguiu conter o desejo de espiar a vida que não é a sua. Não sei como aquela história acabou, para dizer a verdade sei, acabava sempre da mesma maneira, com ele a pousar a cabeça no peito dela e a sentir que tinha nascido dali, que a sua terra era aquele ventre, que o seu seio era a sua bandeira e que o seu corpo era a sua arma contra qualquer guerra. Fantasias, fantasias e devaneios, nada mais. Já tinham idade para terem juízo mas queriam lá saber de convenções, de leis feitas por outros, naquele quarto as leis eram escritas por ela e redigidas por ele, e obviamente que ambos assinavam por baixo. Acabaram a noite a rir-se, sim, também tenho a certeza que acabaram a noite a rir-se e a dizer disparates um ao outro, era assim há anos, há séculos talvez...aquele relógio nem estava lá quando tudo começou, e de certeza que não ia lá estar quando tudo terminasse também; tal como eu o relógio não passava de um espectador, mas ao menos ele foi lá posto por eles, o que quer dizer que é um convidado, agora eu...eu apenas me encostei à fantasia que lhes servia de refúgio, apenas quis sentir aquilo que eles sentiam, mas ainda hoje não sei porque os espiei noites e noites a fio...desculpem, se calhar tinha dito que apenas os tinha visto naquela noite, já nem sei o que disse...também não interessa para o caso, o interessante são os factos, apenas isso.

Primeiro são os teus passos pela escada
A madeira a dizer-me que chegaste
Depois a porta a pouco e pouco aberta
E o silêncio que...só prova que já entraste

Sim, também hoje me deixei levar pela Simone e por essa canção chamada "À Tua Espera"...foi ela que me fez conhecer estes amantes que existiram...ou existem...ou são uma invenção minha...sei lá, são tantos os amantes perdidos que de certeza que esta história encaixa em alguns deles.

Que se continuem a partir relógios...
...e a fazer parar o tempo
Para guardar para sempre...
...a eternidade num só momento.

sábado, 15 de agosto de 2009

Brando, Davis, Bertolucci...

A arte entra em mim diariamente das mais diversas formas. Há dois dias atrás tive a oportunidade de ver pela primeira vez um filme com a sempre falada Bette Davis e fiquei fascinado, primeiro pela riqueza da técnica, por cada gesto, cada esgar do seu sorriso, de cada vez que movia uma mão sentia-se todo o seu corpo a revolver-se, tinha aquela calma que só têm os grandes quando já sabem que são grandes e que não têm de se preocupar com o que se passa à sua volta porque façam o que fizerem fazem bem

(sim, é verdade, existem actores que chegam a este grau, que por muito que olhemos não conseguem fazer algo que possa ser considerado errado, é como se tudo fosse premeditado, quando sabemos perfeitamente que não foi)

o filme em questão chama-se "Eve" e foi dos filmes mais nomeados para os Oscars da Academia até hoje, um daqueles filmes de duas horas que nos fazem ter saudades do que foi Hollywood, um filme que fala dos meandros do teatro e que põe frente a frente a nova com a velha geração, um filme que retrata a ganância daqueles que aparecem sabe-se lá de onde e que deitam tudo a perder pois mais tarde ou mais cedo são apanhados na sua própria ratoeira

(obviamente que também tenho de referir o extraordinário desempenho da Anne Baxter, aquela cara de anjo com olhos de demónio podiam enganar qualquer um)

um extraordinário filme com uma direcção de actores perfeita, cada lágrima, cada contenção, cada gesto da câmara é perfeito, mais do que aconselhar é obrigatório vê-lo, e para quem estiver atento há-de reparar na pequena Marylin Monroe, digo pequena porque foi um dos seus primeiros papéis no cinema, mas já então era impossível de não reparar na beleza e sensualidade que ela transportou até ao fim da sua vida. Por último um pequeno reparo...reparem nos olhos da Bette Davis e digam se não se parecem com os de alguém, reparem na cara, nos gestos, nas feições...não vou dizer mais pois ainda me acusam de serem coisas da minha cabeça mas deixo aqui uma pista: "...corpo de linho...lábios de mosto..."; se fossem irmãs não eram tão parecidas.

Outra referência cinematográfica que vi

(e como é bom estar de férias e poder fazer uma descoberta a cada dia que passa...)

foi esse drama erótico de Bertolucci chamado "O Último Tango em Paris", e que tango...e que monstro da representação foi esse Homem chamado Marlon Brando, como ele é subtil, como ele é trágico, como ele respira, como ele diz um texto, como ele transforma o desespero em algo tão fácil e como ele transporta a sensualidade daquela personagem em cada segundo de película, Maria Schneider fica agarrada e qualquer um de nós. E díga-se em abono da verdade, ninguém como Bertolucci para gravar cenas de sexo sem se tornar vulgar, ninguém como ele para mandar a cada minuto uma carta de amor ao cinema

(e sim, torna-se obrigatório recordar aqui essa outra carta que foi Dreamers, esse seu devaneio adolescente, talvez essa seja a sua verdadeira despedida, seja o beijo que ele nunca pôde entregar à sétima arte, é ali que sentimos cada pulsação de um Bertolucci a celebrar o cinema mas também a juventude e os seus excessos, as suas festas, o seu prazer de viver)

ninguém como Brando para tornar aquilo que podia ser vulgar em sagrado, e se a actuação nos parece, no ínicio, forçada, é logo dissolvida ao longo do filme, Brando vai-se deixando levar pela história e pelo enredo, talvez pela própria Schneider de vinte anos, sabemos como ele gostava de ser galã dentro e fora dos ecrãs...é um marco da sétima arte, é um prazer ver como Bertolucci filme Brando a correr pelas ruas de Paris e ver como um grande actor torna um simples tango num grande festim grego, é a celebração da tragédia, é Piazolla posto ao mesmo nível de Sófocles

(claro que também isto foi agora um devaneio...)

Bem haja aos actores, por a cada dia, ainda nos fazerem sonhar.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Daqui Desta Lisboa

Daqui, desta Lisboa compassiva,
Nápoles por Suíços habitada,
onde a tristeza vil, e apagada,
se disfarça de gente mais activa;

Daqui, deste pregão de voz antiga,
deste traquejo feroz de motoreta
ou do outro de gente mais selecta
que roda a quatro a nalga e a barriga;

Daqui, deste azulejo incandescente,
da soleira da vida e piaçaba,
da sacada suspensa no poente,
do ramudo tristôlho que se apaga;

Daqui, só paciência, amigos meus !
Peguem lá o soneto e vão com Deus...

Alexandre O'Neill

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Allen e Almodóvar (e tanto mais...)

Continuo a gostar de Woody Allen e Almodóvar.
A ler Mia Couto e Agualusa como se fosse a primeira vez.
A ouvir a Fernanda Maria, a Maria da Nazaré e a pensar que se fosse Mulher a minha voz seria uma mistura das duas (o que é um tanto complicado visto uma ser exímia nos agudos e a outra nos graves).
Acho que continuo a ter uma paixão secreta pela Simone de Oliveira (que ela nunca venha a ler isto, ou se ler que me tente contactar) e pelos "nossos" poetas (que o Ary continue a ser o meu tango ribeirinho, as minhas sete letras; que o David seja sempre o meu Começar de Novo; que o meu eterno Vasco de Lima Couto continue a dar-me uma mesa sem ninguém e uma cama com tão pouco...).
E nunca me vou esquecer dos meus actores: do Perry do homem dos olhos tristes; da Marina no ora bolas pró parque (doce memória, a minha primeira paixão pelo teatro); da Maria do Céu Guerra nessa profissão da Senhora Warren; do João D'Ávila no seu alter-ego do Inspector Geral; da Batarda no Ibsen; do Cintra na tragédia de Júlio César, e tantos..tantos outros maiores do que eu (talvez um dia chegue ao calcanhar de um deles, talvez um dia possa pertencer a esse selecto grupo).
Continuo a chorar com a lágrima, com o grito, com a valsa dos eternos amantes, com o sei de um rio e tantos outros fados que me trazem recordações de tanta coisa distinta.

Ainda me emociono pelo Teatro, talvez não consiga derramar as lágrimas em palco mas fora dele continuo a chorar por não saber o que a vida me reserva, por não saber se terei sempre umas tábuas onde alguém me possa ver. Não sei viver sem isto, respiro tudo aquilo que engloba o representar, amo ver um filme, ver uma peça (e sinto uma inveja por não ser eu que estou ali, por ainda estar tão no início...). Claro que ambiciono fazer os grandes... desespero pelo Lear, pelo Ricardo II, quando chega a minha hora de também eu fazer o Pirandello, o Ibsen, ou até mesmo um Neil Labute (sempre uma boa surpresa) e um Genet (vencer o medo e fazer o tal Genet, ir para lá das barreiras e pensar que sou capaz de fazer aquilo que me é pedido). Tenho medo de um dia me tirarem as tábuas e eu ficar no vazio, não saberei o que fazer nesse dia, também sei que vou lutar até ao fim para que isso não aconteça e para que tenha sempre o meu lugar.

Quero ser irreverente como o Jarmusch, ter a nostalgia do Wenders, a simplicidade da Isabel Coixet, o despojamento do Lumet, a ousadia do Lynch, o deslumbramento do Bergman, a paixão do Antonioni, o tempo do Manoel de Oliveira... e tantos, tantos outros que fazem parte de uma lista infindável...acabo por onde comecei...

...com o humor do Allen e o fogo escondido do Almodóvar...
entre um e o outro, talvez esteja o meu ponto de equílibrio.

sábado, 8 de agosto de 2009

Para Sempre, Solnado

Lembro-me de ti sentado à minha frente a dizer-me: "agora diz lá isso" e a dar-me cada pausa, cada entoação, a descobrir o Gil Vicente para lá do óbvio, a desbravar o Esopo e a saber a medida perfeita para o fazer, soubeste dar-me os tempos dos grandes, aqueles que se ouvem entre cada respiração, soubeste dar-me a base daquilo que sou hoje e nunca o escondi. Lembro-me do primeiro impacto, o ter Raul Solnado mesmo à minha frente, o primeiro sorriso quando percebeste que a comédia pulsava em mim, a vontade de me veres no Parque Mayer quando tinha decidido concorrer ao casting do "Hip Hop'Arque": "vou falar ao Nicholson de ti, vou dar-lhe uma apitadela". Lembras-te do S.O.S Suícidio? O que tu te riste, o que tu me ensinaste com aquele texto que tinha escrito mesmo no dia anterior a mostrar-to (mais uma vez as pausas, os tempos, e até um novo final, um remate como só tu sabias fazer). Lembro-me também quando tentaste fazer connosco uma cena dramática, eras o patrão e nós queríamos desesperadamente um emprego, as tuas palavras foram: "está bem, pedes um emprego como um cómico mas está bem"; nunca quiseste ver nada para além da comédia em mim, sabias que era aquilo que eu fazia melhor e que devia ser esse o caminho que eu devia seguir, mas tal como tu não queria ficar agarrado a um certo tipo de teatro, precisava de mais, tinha a pulsação dramática dentro de mim, sabia que tinha um jeito natural para a comédia mas queria mais para além disso. Toda a minha base nunca me vou esquecer de onde vem: agradeço a ti, à Jô, ao Zé Renato, ao Thiago, tudo aquilo que eu sou hoje começou pelo vosso incentivo, não, não me esqueci dos olhos brilhantes da Jô e tenho saudades deles, saudades da forma como era acarinhado, saudades de ouvir o Zé Renato a dizer: "ainda havemos de fazer uma Revista", saudades de fazermos a tal grande comédia que eu há muito ando a pedir. Nunca me esqueço de vocês tal como nunca me vou esquecer de ti, Raul. Vais ter a tua merecida homenagem, infelizmente não tive tempo em vida para te dizer o quanto te agradeço, mas vou agora redimir-me do que não consegui fazer por o tempo ser pouco (mas não quero utilizar o tempo como uma desculpa, devia ter tido o tempo para voltar onde fui tão feliz e onde aprendi tanto), quero fazer o pequeno grande espectáculo que mereces, quero recordar esse "Malmequer" que tu eternizaste, quero dar uma sincera homenagem a alguém que me deixa memórias tão profundas neste meu camarim da saudade. Obrigado, Raul, obrigado por tudo. Se hoje sou quase um actor é a ti que o devo agradecer, o apoio que me deste, o que disseste do Carlos Avilez (se ele soubesse o carinho que tinhas por ele, o respeito que tinhas pelo Carlos, dizias que ele era o melhor, que para ensinar e encenar não se podia ter melhor mestre, e tantas vezes disseste que ele ia fazer de mim um Actor).

Por agora o teu malmequer ficou desfolhado
até já, Raul...
...para sempre, Solnado.

domingo, 2 de agosto de 2009

Soneto de Mal Amar

Invento-te recordo-te distorço
a tua imagem mal e bem amada
sou apenas a forja em que me forço
a fazer das palavras tudo ou nada.

A palavra desejo incendiada
lambendo a trave mestra do teu corpo
a palavra ciúme atormentada
a provar-me que ainda não estou morto.

E as coisas que eu não disse? Que não digo:
Meu terraço de ausência meu castigo
meu pântano de rosas afogadas.

Por ti me reconheço e contradigo
chão das palavras mágoa joio e trigo
apenas por ternura levedadas.

José Carlos Ary dos Santos