domingo, 31 de agosto de 2008

Canção

Tenho a certeza
De que entre nós tudo acabou.
- Não há bem que sempre dure,
E o meu, bem pouco durou.

Não levantes os teus braços
Para de novo cingir
A minha carne de seda;
- Vou deixar-te, vou partir!

E se um dia te lembrares
dos meus olhos cor de bronze
e do meu corpo franzino,
Acalma
A tua sensualidade
Bebendo vinho e cantando
os versos que te mandei
naquela tarde cinzenta!

Adeus!
Quem fica sofre, bem sei;
Mas sofre mais quem se ausenta!

António Botto

Nada mais

Imagino o teu corpo coberto
de rosas vermelhas abertas à luta
dos sentidos.
Por vezes ainda vejo os teus olhos esquivos
olhos que não se deixam prender
e que ganham asas para voar.
O teu corpo era campo imenso
onde se podiam plantar as flores
que a natureza não recolhe
e oferece ao abandono.
Gostava de prender a imaginação,
dar-lhe o sentido que eu quisesse
e que ela não me dominasse,
queria apenas pensar em ruas
cheias de gente, onde não passa ninguém.
Queria mandar nos sentidos
e pô-los na palma da minha mão,
que eles apenas se abrissem
para quem eu quisesse
e que não fossem vísiveis perante
os olhos desta selva em que estamos.
Tudo isto é imaginação...
Sonho. Nada mais.

sábado, 30 de agosto de 2008

Paraíso / Ternura

Deixa ficar comigo a madrugada,
Para que a luz do sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
Deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
Onde eu oiça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois podes partir. Só te aconselho
Que acendas, para tudo ser perfeito,
À cabeceira a luz do teu joelho,
Entre os lençóis o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso
Para a minha ilusão do Paraíso.

.................................................................................

Desvio dos teus ombros o lençol,
Que é feito de ternura amarrotada,
Da frescura que vem depois do sol,
Quando depois do sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sovreveio...

Começas a vestir-te lentamente,
E é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

David Mourão-Ferreira

Silêncio

Abre a madrugada nos meus olhos
para ver se esqueço que a noite habita
em meu corpo.

Dá-me de beber do copo da loucura
para ver se não me lembro do licor
que corre em mim.

Sou o estranho sabor da amêndoa amarga
que fica esquecida numa garrafa
em cima da mesa de um bar.

A saudade percorre a memória
como se fosse o cavalo à solta
que vive no nosso pensamento.

Sou a estranha força das marés
que não encontram rochas onde bater
mas têm sempre o acidente à vista.

Fechem as cortinas, encerrem os palcos
ninguém mais passa para este palco
apaguem as luzes.

Silêncio.
Quero ouvir a noite.

Noivado

Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de ternura.
- És tu Ernesto, meu amor?
Não era. Era o Bernardo.
Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes.
É o que faz a miopia.

Mário Henrique Leiria

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

La Pianiste

Não te revelo os meus segredos mais intímos.
Talvez um dia os escreva num papel qualquer
ou talvez até te ligue para os dizer
mas por enquanto não os vou revelar,
e escusas de me dizer aquilo que queres de mim
porque é completamente indiferente,
farás o que eu quero e não aquilo que te apetece.
E se pensas que a minha cara empedernida
se vai abrir, enganas-te, isso fica para mim;
se eu quiser rir não tens nada com isso,
é uma coisa minha, nada mais.
Nem esperes afeição...por favor, não ia suportar isso
porque simplesmente não ta vou dar,
isto é apenas uma espécie de favor, percebes?
Uma troca entre nós...nada mais.
Por isso não leves isto para outros campos...
apenas te aviso porque será pior para ti
se o fizeres.
E desiste de tocar piano, faz esse favor perante ti,
tem ao menos a coragem de admitir que o teu futuro
está noutra coisa qualquer...sim, gostei de te ouvir, não o nego
mas daí a teres futuro perante uma plateia...
Ah! E não me ligues, a sério...não valerá a pena,
eu quando quiser dou notícias, sim? Fica prometido.
Mas também não fiques a olhar para o telefone
como se não houvesse amanhã...
mais tarde ou mais cedo ele vai apitar, vais ver.
Agora tenho de ir, daqui a pouco a minha aluna chega
e não quero que ela esteja à minha espera...
não gosto de fazer ninguém esperar, pelo menos
quando os compromissos estão marcados
porque quanto ao resto...é deixar fluir.
Adeus, não esperes por mim.

A partir de "La Pianiste" de Michael Haneke, com Isabelle Huppert e Benôit Magimel.

O Menino De Sua Mãe

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
de balas trespassado
- Duas, de lado a lado -
Jaz morto e arrefece

Raia-lhe a farda o sangue
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino de sua mãe"

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve
Dera-lhe a mão. Está inteira
É boa a cigarreira.
Ele é que já não serve

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço...deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo

Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o império tece)
Jaz morto, e apodrece,
O menino de sua mãe.

Fernando Pessoa

Devolve-me o meu filho! Entrega de novo esta criança aos meus braços, ao meu afecto. Não sabia que eras ladra, mas já roubas tantas vidas, que diferença te faz a do meu filho? Porque me roubas a única coisa que eu tenho? Quero o meu filho de novo em mim, quero o meu filho vivo! Ao longe ainda ouço tiros... mais mães que ficam sem os seus meninos, mais lágrimas na cara do mundo, mais vergonha na cara dos homens. Que um tiro trespasse todos estes que matam os filhos dos outros, pobres inocentes que apenas têm por destino a morte desde pequenos, que a mesma "sorte" que o meu filho teve caia em cima deles. Ainda ontem o tinha nos braços, ainda ontem ele me dizia o quanto gostava de mim e eu o acariciava lentamente enquanto ele sorria para mim...nunca mais vou ver o sorriso do meu filho (nem o meu). A pouca alegria que ainda restava em mim vai com o sangue do meu filho que entra agora na terra que o viu nascer, o sangue vai descendo pela rua lentamente, como se fosse um rio impuro onde ninguém tem a coragem de ir beber. Nenhuma mãe devia assistir à morte do seu filho, é contra natura, é contra tudo aquilo que sempre nos disseram, é contra nós! Nós vivemos para ver os nossos filhos viver e para eles nos verem a partir, que estranha condição é esta dos nossos filhos nos morrerem nos braços? Onde é que está escrito que isto é possível? Quem inventou isto? Não me venham falar em Deus! O meu filho está morto nos meus braços, há explicação para isto? Era por ele ser mau? Ele tinha oito anos! Oito! Que criança é má com esta idade? Não me tentem consolar, devolvam-me o meu filho! Isso sim! Ou pelo menos tenham a piedade de me levarem com ele, onde estão esses homens com armas no punho? Que me matem também a mim! Que trespassem este meu corpo de balas! Levem-me para junto do meu filho! Se existes, Deus...apenas um pedido...põe-me ao lado do meu filho...já!

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Te Extraño

Te extraño
Como se extrañan las noches sin estrellas
Como se extrañan las mañanas bellas
No estar contigo por dios que me hace daño

Te extraño
Cuando camino, cuando lloro, cuando rio
Cuando el sol brilla, cuando hace mucho frio
Porque te siento como algo muy mio

Te extraño
Como los arboles extrañan el otoño
En esas noches que no concilio el sueño
No te imaginas amor como te extraño

Te extraño
En cada paso que siento solitario
Cada momento que voy viviendo a diario
Estoy muriendo amor porque te extraño

Te extraño
Cuando la aurora comienza a dar colores
Con todas tus virtudes, con todos tus errores
Por lo que quieras no se pero te extraño.

Bolero de Armando Manzanero

Prece

Aqui tens o peito aberto, agora é contigo. Não sustenhas a respiração, faz apenas o que tens a fazer. Dispara essa arma!! Não é isso que te apetece? Não é com isso que tens sonhado? Agora o teu sonho é realidade, estás à minha frente e tens uma arma pronta a disparar...então? Sem coragem para concretizar o teu próprio sonho? Não tens vergonha de ser assim? Não tens vergonha de por uma vez na tua vida poderes fazer a coisa certa e estares para aí a transpirar sem saber o que fazer? Não penses, actua! Dá-me a bala final, dá-me um tiro certeiro! Sem medos. Não está aqui ninguém, ninguém vai ouvir o que estás aqui a fazer. Somos apenas os dois esta noite, e ambos sabemos que esta noite vai ser memorável. Ou não vai? Claro que não vai. Não tens coragem nem para disparar a porra de uma arma que já está na tua mão. Pensas que se eu safar-me desta te vou perdoar? Enganas-te...vou-te perseguir até ao fim dos teus dias e quando conseguir estar frente a frente contigo não vou hesitar como tu, enfio-te um balázio bem no meio dessa tua cabeça e vou ficar-me a rir do teu sofrimento, bem na tua cara. Metes-me nojo, sabes? A tua cobardia, pelo menos...pensava que eras mais forte, que tinhas outro carácter, mas não, desiludiste-me mais uma vez, não mereces nem o próprio chão que pisas, não mereces andar na terra a fazer de estorvo a todos os outros. Estorvo, sim! Uma pessoa que não realiza os seus desejos quando tem essa oportunidade não passa de um estorvo para o mundo. Acaba comigo. Vá...pressiona esse gatilho. Faz-te um ser humano! Que Deus tenha pena da tua fraqueza.


Senhor, acaba comigo
antes do dia marcado;
Um golpe bem acertado;
O tiro de um inimigo...
Qualquer pretexto tirado
Dos sarcasmos que te digo.

Miguel Torga

Hoje

Hoje escrevo como se fosse o último dia
como se a febre que consome o mundo
estivesse dentro de mim.
Hoje as palavras são espadas contra o vento
e as minhas mãos são facas
com que corto a garganta da noite.
Hoje não há canções; hoje há o copo,
aquele copo meio cheio que eu esqueci
em cima de uma mesa talhada a pedra fina.
Hoje os gritos do mar são tempestade
em terra, e eu sou o náufrago que
resiste perante as intempéries.
Hoje o fogo chama-me, hoje sou labareda
que vibra pelo ar sem direcção
e cai no eterno de qualquer estrada.
Hoje eu sou o caminho que percorro
Hoje eu sou feito de luta, de ódio
de amor, paixão, rancor, repulsa;
Hoje os sentimentos se confundem
em mim e eu sou o cocktail que fumega
perante o mundo.
Hoje sou o vulcão que explode
quando a terra quer expulsar as vidas
pendentes que carrega há anos.
Hoje sou eu!

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Típico...

Ele: Vou sair de casa.

Ela: E fazes tu muito bem, já vais é tarde.

Ele: Ah, pensas assim, nao é? Pois olha, vou e deixo aqui as chaves que é para veres que não volto.

Ela: Ora aí está uma coisa sensata de se dizer.

Ele: Tu pensas que eu estou a brincar, não é? Mas olha que eu saio e não volto hã...

Ela: Olha que pena que eu tenho.

Ele: Tu...tu não tens noção da gravidade da coisa, pois não?

Ela: Claro que tenho noção da gravidade...ainda não me saíste da frente, és a perfeita imagem da gravidade.

Ele: Quem é que tu julgas que és para me dizeres uma coisa dessas?

Ela: E quem é que tu julgas que és para continuares a ocupar os meus ricos ouvidos?

Ele: Descansa que não me vais ouvir durante muito tempo.

Ela: Era tão bom se eu acreditasse nisso...

Ele: Duvidas? Duvidas que eu saio e não volto?

Ela: Claro que não duvido, vou mudar a fechadura, portanto...

Ele: Ah, vais? Fazes bem! Pois fica a saber que...que eu...pois...vais mudar não é?...pois...podes mudar, podes perfeitamente mudar a fechadura! Perfeitamente...

Ela: Eu sei.

Ele: Não me vais deter, pois não? Vais deixar-me sair, não é?

Ela: Ui...hmm...deixa ver...hmm...vou!

Ele: Insensivel.

Ela: Sensata.

Ele: Pois olha, que sejas muito feliz.

Ela: Vou ser.

Ele: Que tenhas tudo o que queiras.

Ela: Vou ter.

Ele: Que...

Ela: Vais demorar muito mais? É que as pessoas já estão cansadas de ler isto e ainda por cima o final é mais que óbvio...

Ele: Ah...pois ok...então é agora que faço a saída dramática com aquele gesto que ensaiámos, não é? Cof Cof...cá vai então (pondo o a mão na testa) Vou partir, e não voltarei mais! Adeus....adeus...

Ela: Isso, agora vai para a porta e sai.

Ele: Vou para a...ah, pois...faz sentido...ok. (pondo a mão na testa) Vou para a porta e vou sair...pela porta...para fora da porta...lá para fora portanto...fora da casa.

Ela: VAI!

Ele: Pois...ok...

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Foi Hoje A Enterrar

Morreu.
Foi hoje a enterrar.
Hoje eu sei que já não sinto nada
A poeira que ficou o vento a leva.
Morreu.
Apaguei completamente as memórias
Apaguei tudo o que podia ter ficado
Hoje é apenas poeira,
e essa...essa o vento leva-a.
Foi hoje a enterrar.

sábado, 16 de agosto de 2008

Posso Escrever Os Versos Mais Tristes Esta Noite (II)

Olho para o relógio da estação e ainda tenho cinco minutos antes do comboio partir. Olho para as pessoas à minha volta e não conheço ninguém...não contenho um pequeno sorriso, é tão bom ser desconhecido, ninguém nos conhecer, não vermos ninguém que não queremos ver. Por mim ficava aqui parado nesta estação durante horas, mas tenho compromissos urgentes, compromissos comigo mesmo, inalteráveis. Trago pouca bagagem, deixei tudo por aí, apenas tenho o essencial comigo, o que precisar vou roubando ao mundo. Está um pouco de frio aqui, mas os motores já estão a trabalhar, vem uma pequena aragem quente. Volto a olhar à minha volta e reparo que uma pequena menina me observa. Está sentada num banco da estação, tem a juventude no rosto e uns pequenos dedos (como não reparar em dedos tão pequenos?) Não sou capaz de ir falar com ela, lembra-me alguém, embora não saiba quem...apenas sorrio, e ela retribui. Viro-me para a frente mas sinto que aquele olhar ainda me persegue, ainda está fixo em mim, não me posso virar outra vez, teria de falar com ela, perguntar-lhe o nome, porque me olhar, não gosto de ter conversas das quais não conheço o final.
Entro no comboio com o pé firme e deixo aquele olhar para trás, não quero falar com ninguém, quero apenas que o comboio parta e que eu possa seguir viagem. Olho pela pequena janela do meu compartimento e a menina que à pouco estava sentada está mesmo do outro lado da janela, de pé, a sorrir, o mesmo sorriso de à poucos momentos atrás. Quem és tu? Porque me estás a fazer isto? Torno a sorrir para ela e corro as persianas. As memórias começam a surgir, aquele rosto...sim, eu conheço-o, ou pelo menos um muito parecido. Sim...sei perfeitamente com quem aquela pequena menina é parecida, conheço muito bem os contornos daquele rosto. Volto a abrir as persianas mas a menina já lá não está. Abro a janela e ponho a cabeça de fora, perdi-a, não sei onde se possa ter metido, a estação é tão grande...e o comboio já apita.
Volto a pôr a cabeça para dentro e não contenho um pequeno grito. À minha frente, sentada, está a menina, com o mesmo sorriso, como se não conseguisse ter outra feição. Ganho coragem, tenho de lhe dizer alguma coisa:
- Queres um rebuçado?
Ela acena afirmativamente.
- Vou buscar um ao bar do comboio, sim? Espera aqui por mim.
Ela volta a mexer a sua pequena cabeça, sem dizer uma única palavra.
O comboio apita cada vez mais alto e quando a porta está quase a fechar-se à minha frente eu salto para fora e encontro-me outra vez na estação. A menina vem à janela e eu solto uma enorme gargalhada, talvez a maior que alguma vez tenha dado.
Fiquei a ver o comboio a afastar-se e a menina seguiu viagem.

Posso Escrever Os Versos Mais Tristes Esta Noite

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.


Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.
Pablo Neruda

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Respiro O Teu Corpo

Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

Eugénio de Andrade

Cheiro o teu corpo como se fosse Primavera
Cheiro o teu corpo como se fosse manhã aberta
Cheiro o teu corpo como se fosse nova era
Cheiro o teu corpo como se fosse praia deserta

Respiro o teu corpo como se fosse o mundo
Respiro o teu corpo como se fosse verdade
Respiro o teu corpo como se fosse solo fecundo
Respiro o teu corpo como se fosse liberdade

Cheiro o teu corpo e o mundo faz sentido
Respiro o teu corpo e sou pecado original
Sei de ti o que a Vida sabe de mim...

Hoje sou apenas um cheiro fingido
O que respiro já é algo Universal;
Hoje sonhei ao toque do clarim.

Minuciosa Formiga

Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.

Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.

Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.

Assim devera eu ser
se não fora não querer.

Alexandre O'Neill

Já ouço o barulho dos passos apressados. Já ouço as cadeiras a abrirem-se e as pessoas a sentarem-se. Já ouço o estranho burburinho que se forma quando as pessoas se juntam. Já ouço o meu coração no estranho ritmo acelerado que escolhe sempre nestas ocasiões. A gravata ficou-me um pouco apertada hoje, já nem um nó sei fazer como deve de ser (o quê que eu sei fazer bem?) As mãos tremem-me um pouco...a porra da idade dá cabo de nós. Há cinquenta e sete anos que canto e no ínicio era tudo tão fácil...tinha quem me vestisse, quem me ajudasse no que fosse preciso e hoje sou só eu, apenas eu. Tenho um velho pianista que me acompanha, mas esse nem conta, está morto desde o dia em que nasceu, lembro-me dele sempre da mesma forma, sempre com a mesma cara, o tempo decidiu ser brando com ele (ou então prepara-lhe alguma partida...claro que prepara, onde é que o tempo é brando seja com quem for?)
Porque é que ainda me vêm ouvir? Ver? Que estranho prazer podem ter nisso? A verdade é que já não canto nada, eu sei reconhecer. A voz que eu tinha já se foi há muito, e os temas nem são particularmente bonitos, simples canções de "cabaret" (alguma malícia, alguma diversão, amor...) e alguns êxitos de tempos passados (êxitos de outros, claro). O que me safou foi sempre uma certa maneira de estar, uma certa presença, sim, presença eu tinha. Entrava num palco e sabia como arrebatar todos os que tivessem à minha frente, fossem cinquenta ou duzentos, pouco me interessava quem eles fossem, o que interessava é que durante duas horas eu conseguia tê-los na minha mão, no mesmo universo. Hoje...hoje sou apenas um farrapo dessa festa que fui em tempos, sou o foguete que não é disparado, uma pequena fogueira já em cinzas. Preciso disto para viver...nunca soube pôr dinheiro de parte e é apenas por isso que ainda canto; se tivesse o mínimo respeito pelo público já me tinha retirado há muito e estava a cuidar de jardins públicos, mas sempre ganho um pouco mais a fazer isto e ainda há gente que gosta de me ver (tudo acima dos cinquenta, claro...)
Sinto que isto não vai correr bem, estou a suar em bica e as mãos não param de tremer, como posso sequer agarrar num microfone? Onde é que pus os comprimidos? Bolso...não. Casaco...não. Camisa...não. No hotel! Esqueci-me deles em cima da cama, como fui esquecer-me daquilo? O que é que eu faço agora? Não posso beber nada que tenha álcool se não em vez das mãos começa a tremer o coração. Calma...o que eu preciso é de uns momentos de silêncio, de repouso. Ainda tenho alguns minutos antes de entrar. Sento-me durante uns instantes e apenas ouço o barulho das pessoas a sentarem-se lá fora, a acomodarem-se nos lugares.
Fecho os olhos...




quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Hoje Roubei Todas As Rosas Dos Jardins

Hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.

Eugénio de Andrade

"Desculpe, mãe! Eu vinha a correr pelo jardim e tropecei, até sujei um bocado os calções, mas a mãe pode lavá-los não pode? Desculpe...não consegui trazer as rosas que lhe prometi, bem, nem as rosas, nem cravos, nem a erva mais pequenina que podesse ter encontrado...a verdade é que me distraí a brincar com a Madalena, a mãe já sabe como eu sou, ponho-me a brincar e esqueço-me das horas. Mas eu até tinha umas flores para lhe dar, apanhei-as logo ao príncipio da tarde e tudo, mas...bem, a verdade é que as dei à Madalena, ela tinha um vestido tão bonito mãe, aquele de que eu já lhe falei algumas vezes, amarelo, com umas bolas enormes, fica-lhe tão bem o vestido...
Mãe, porque está a chorar? Mãe!!! Não se preocupe, eu amanhã apanho outras flores para si, eu prometo! Mais bonitas que as de hoje, elas até estavam assim para o mortas, está a ver? Nem eram umas flores dignas para eu lhe dar, só por isso é que as dei à Madalena...mãe, não a quero ver chorar...é da roupa? Não tem problema, mãe, a mãe consegue tirar a sujidade de tudo o que lhe vai parar às mãos e isto é só terra...porque continua a chorar? É por eu andar a correr pelo jardim? Eu prometo que não corro mais! Eu bem sei que já me avisou que é perigoso porque posso magoar-me, tem razão! Eu juro que não corro mais pelo jardim.
Mãe...eu gosto muito de si, a sério, gosto mais de si do que de bolo de chocolate, pode acreditar, até gosto mais de si do que do bolo da avó Nascimento, acredite!! Mãe...porque não pára de chorar? Eu não estou a perceber nada...
Mãe...o pai já não devia estar em casa?

A Minha Morte, Não Ta Dou

A minha morte, não ta dou.
De resto, tiveste tudo
- a flor, a sesta, o lusco-fusco,
a inquietação do dia 8,
as órbitas das mães, das mãos,
das curiosas palavras de não dizer nadinha.
Tudo tiveste: estás contente?

Feliz assim por teres tudo o que sou?
Feliz por perderes tudo o que sei?

Só não te dou o que não serei.
Não, a minha morte, não ta dou.

Pedro Tamen

Deixaste o cinzeiro repleto de beatas e não me apetece tirá-las de lá, a noite está tão sossegada que apenas me apetece ficar parado a olhar pela janela e esquecer que alguma vez passaste por aqui (mas como posso esquecer-me se nem limpo o cinzeiro? A preguiça é irmã do ócio...). Ao longe ouço o barulho de qualquer coisa que não consigo identificar, um desses bichos que apenas se lembram de cantar à noite e que durante o dia dormem como se o mundo começasse a partir das oito da noite; um dia vou viver apenas de noite e ter por companhia as estrelas.
Devia limpar o cinzeiro...está-me a incomodar, como se estivesse a olhar para mim (só me faltava ser maníaco e ver olhos em objectos...)
Às vezes penso porque te foste embora e deixaste o cinzeiro neste estado, logo tu, tão arrumada, tão preocupada com "a ordem natural das coisas"; fizeste de propósito? Claro que fizeste, sabias que eu ia ficar a olhar para o cinzeiro e a ver todos os nossos momentos, mas o filme que me passa pela cabeça está censurado, nem as legendas consigo ver (será que, simplesmente, não quero ver outra vez o mesmo filme?).
Se calhar devia ligar-te para vires limpar o cinzeiro, podias guardar as beatas numa caixa e daqui a uns anos ias ver como te rias, se calhar até ias pensar que aquilo seriam as minhas cinzas...mas sabes uma coisa? A minha morte...essa, não ta dou! Vais ter de te aguentar comigo vivo pois ainda vou ficar por aqui uns longos anos...descansa, não te vou procurar.
Só queria que viesses limpar as beatas...