quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Velhos do Restelo

Imaginemos que escrevia o mais belo texto deste ano, não só o meu melhor texto, mas um daqueles que se poderiam classificar como um dos grandes textos do ano. Claro que este é apenas um exercício de imaginação, nunca um texto desses me saíria das mãos e muito menos no final de um ano como este. Um ano de metas, de fins de percursos e início de outros. O final do ano é um tempo de balanços, um tempo de recordar aquilo que ficou para trás, e pior do que isso, aquilo que poderia ter ficado para trás e que nunca chegou a ser feito. As lágrimas nunca contam para estes balanços, esses momentos costumam-se ir diluindo na nossa memória, até já não os conseguirmos distinguir. Será isto verdadeiro? Alguém esquece as lágrimas que chrou? Durante este ano ou em qualquer outro? Mais facilmente lembramos as lágrimas que deitámos do que os risos que povoaram a nossa cara em alguns instantes. Obviamente que existem momentos inesquecíveis, que nos preencheram, que nos fizeram sentir vivos, e outros de uma angústia enorme, como se estivéssemos num beco que, embora sabendo que não tem saída, continuamos a querer seguir, porque às vezes o nosso único caminho é contra o muro. Quantas vezes vamos contra o muro e batemos com a cabeça nesse mesmo muro? E o que dizer do nosso próprio muro? Das nossas próprias barreiras? Daquilo que temos na nossa cabeça e que teima em não sair, as ideias pré-concebidas? Gostávamos de poder ir contra isso tudo, construir novas ideias, principalmente acerca daquilo que nós somos mas... falta sempre um pouco de coragem, ambição. Deixámos de ser ambiciosos há muito tempo, encostámo-nos ao fado que é nosso e nada mais. Somos todos uns velhos do Restelo à procura de gaivotas brancas, mas até aquelas que voam por sobre o Tejo, vêm repletas de petróleo nas suas asas. Vivemos um tempo manchado, onde o branco não consegue sobressair e as cores mais escuras tomam conta do espaço, do nosso próprio espaço. Existe em nós um medo de existir, de sermos gente. Perdemo-nos na nossa memória colectiva, por entre aquilo que fomos e o que gostaríamos de ter sido. Perdemos a utopia que nunca concretizá-mos, e pior: nunca a chegaremos a concretizar porque já ninguém se lembra dela. Vivemos um tempo em que os horizontes deixaram de ser longínquos, pura e simplesmente já não existem horizontes. Vivemos o hoje e o agora, apenas isso, isso é o que importa. E contudo... o ontem. O ontem assalta-nos constantemente, aquilo que fizemos ontem (nem volto a falar do que não fizemos), mas aqueles momentos que nos marcaram a pele, o sangue, as veias do corpo. O que fazer para recuperar os momentos perdidos? O que fomos? O que é preciso oferecer para voltar atrás? As memórias vivem em nós como seres vivos que teimam em reproduzir-se, e nós não as matamos, deixamos que elas cresçam, tal como nós também crescemos.
Queria ter escrito um bonito texto no final de mais um ano, um texto positivo, que falasse de um amanhã diferente, mas a única diferença será o fogo de artifício que irá romper pelos nossos céus. Enquanto não rebentarem foguetes em nós, tudo isto vai continuar igual ao que é. Façamos a festa por dentro de nós, comecemos de novo, amanhã... já amanhã.

É para amanhã
bem podias fazer hoje...

domingo, 19 de dezembro de 2010

História de Natal (I)

Em poucas linhas, deixo aqui retratada a história mais triste deste Natal.

Uma pobre menina chegou perto de seu pai.
Com olhos de carneiro mal morto disse-lhe:
- Meu pai, meu tudo. Aqui tens um sonho que te entrego.

O pai, com um total desprendimento perante o presente de sua filha...
... comeu o sonho.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Maus Tempos

O sol bateu-me no rosto
O vento quis empurrar-me
E a chuva molhou-me aos poucos
Brincadeiras de mau gosto
Com seu motivo de alarme
Para eu me livrar de loucos

O sol queimou as searas
O vento arrasou pinheiros
E a chuva alagou a terra
Turvaram as águas claras
Só vejo tristes madeiros
Tenho que fugir da serra

Fiquei sem o meu rebanho
Perdi o meu belo arado
Tombou meu lindo moínho
E em busca dum mundo estranho
Levo o meu duro cajado
Para me abrir o caminho

No meu saco de lembranças
Levo sorrisos, esperanças
Duma ingénua mocidade
E ao despedir-me depois
Um velho carro de bois
Carrega a minha saudade.

Frederico de Brito

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Talvez Por Acaso

Tu dizes que a culpa é minha
Eu acho que a culpa é tua
E vamos ficando assim
Até que um dia à tardinha
Por acaso numa rua
Tu hás-de passar por mim

Com rancor e azedume
Sem razão e sem emenda
Talvez a gente se insulte
Ou então, contra o costume
Talvez a gente se entenda
E o caso resulte

Por acaso, sem querer
Quem sabe se é dessa vez
Que nós fazemos as pazes
Possa o acaso fazer
O que a saudade não fez
E nós não fomos capazes

A vida dá-nos sinais
Quanto mais o tempo passa
De que o amor tem um prazo
Por isso nunca é demais
O que quer que a gente faça
Para provocar o acaso.

Manuela de Freitas

A Tua Sorte

Partiste num dia de tempestade
Deixando apenas por lembrança
Aquela meiga e terna saudade
Que nasce quando morre a esperança

Memórias, não sei onde as guardaste
Em mim não ficou nem uma história
Tudo o que fizemos, em vão levaste,
Talvez para construir a tua glória

Pois tudo o que foi nosso, que seja teu
Para mim, afinal, já nada importa
Em mim não deixaste nada de meu
Não voltes a bater à minha porta

Lágrimas - também não irei chorar
A saudade em mim tem o fim da morte
E se hoje continuo a cantar
É porque não me entreguei à tua sorte.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Uma revolução tem de ter sangue, se o não tiver... bem, aí temos o resultado 36 anos depois.
Uma revolução tem de ter sangue, se o não tiver... bem, aí temos o resultado 36 anos depois.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Mãos Desencontradas

Na memória não me escondas
Ouve a grandeza das ondas
Que por nós foram quebradas
Naufragámos sem passado
Nesse encontro desejado
Entre as mãos desencontradas

Se a lembrança nos condena
Se por nós não vale a pena
Mais alguém ficar ausente
Sem pecado e sem demora
Esqueceremos vida fora
Tudo aquilo que é presente

Numa noite cega e fria
Quando a chuva esquece o dia
E a madrugada é constante
Junto a quem nunca perdi
Hoje sei que não esqueci
Quem de mim ficou distante.

Aldina Duarte

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Quando Vieres Logo À Noite

quando vieres logo à noite
rosto aberto e desejado
embora não vendas tudo
ao coração sem mercado
adianta-me o silêncio
que faz brisa ao pé do mar
para eu estar prevenido
quando o silêncio chegar

depois na feira dos olhos
que tanta poeira fazem
como quem vende bondade
às sombras da vadiagem
adianta-me a tristeza
sob as tranças do luar
para eu estar prevenido
quando a tristeza chegar

e se puseres tuas mãos
nesta varanda inquieta
de tanto ouvir a distância
das palavras do poeta
adianta-me a saudade
do teu corpo sem lugar
para eu estar prevenido
quando a saudade chegar.

Actor como todos nós,
poeta como poucos o foram...
Vasco de Lima Couto

sábado, 20 de novembro de 2010

Corro Para Um Tempo

Corro para um tempo que já não é meu
Corro para uma vida que não sei contar
Perdeu-se tudo aquilo que morreu
Nas cinzas de um fogo por atear

Corro para a viela mais sombria
Para um amanhecer que nunca vem
E morro entre as grades com que a alegria
Cercou a minha alma, feita desdém

Corro para as memórias já vencidas
Para um tempo de futuro iluminado
E encontro a minha vida entre as vidas
Que construíram este meu fado.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Motivo de Fado

fala-me da hora
d'outrora
que eu perdi a viagem
não sei onde deixei
aquilo que amei
a minha bagagem

diz-me qual a direcção
diz-me por onde seguir
porque eu estou perdido
no meu sentido não há
direcção por onde ir

perdi a rota do coração
e sei lá onde vou dar
não aprendi a lição
e não me sei encontrar

perdi toda a minha saudade
também ela anda perdida
procuramo-nos na cidade
mas nem encontramos a vida

andamos os dois
num destino desencontrado
e o que virá depois
é talvez um motivo para fado.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Olhar Malicioso

Passa por mim na rua do esquecimento
E tenta que eu não encontre os teus passos
Porque aquele que é o meu maior tormento
Nasceu no fogo quente dos teus abraços

Quero esquecer que um dia, o teu corpo
Foi para mim a praia mais desejada
Antes tivesse sentido o tempo morto
A beijar-me na hora mais calada

Preferia o velho beijo que a morte
Guarda quando nos vem buscar,
Do que estar entregue à triste sorte
Do teu malicioso e lindo olhar

Deixa-me na lembrança pouco mais que nada
Deixa-me no esquecimento aquilo que eu esqueci
E diz-me que a nossa vida não foi quebrada
Por causa de tudo aquilo que não vivi.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Triste Sorte

Ando na vida à procura
De uma noite menos escura
Que traga luar ao céu
De uma noite menos fria
Em que não sinta a agonia
De um dia a mais que morreu

Vou cantando amargurado
Mais um fado e outro fado
Que fala de um fado meu
Meu destino assim cantado
Jamais pode ser mudado
Porque do fado sou eu

Ser fadista é triste sorte
Que nos faz pensar na morte
E em tudo o que em nós morreu
É andar na vida à procura
De uma noite menos escura
Que traga luar ao céu.

João Ferreira-Rosa

domingo, 14 de novembro de 2010

Fado Inventado

Talvez nos encontremos no fim de tarde
Que a nossa memória possa construir
Talvez que a nossa velha saudade
Já não possa olhar para nós e sorrir

Porque o sorriso, por vezes, é falsidade
E esconde aquilo que o coração quer
Nem sempre a boca traz a verdade
Que existe no corpo de uma mulher

Talvez que um dia o tempo seja nosso
E as marés tragam o mar de outra praia
Por enquanto, meu amor, ainda não posso
Beijar a fímbria da tua antiga saia

Talvez que a memória seja o rasto
Que deixamos para um novo amanhã
Talvez o tempo seja tão casto
Que goste de renascer a cada manhã

Talvez que tudo isto seja inventado
E nada, afinal, faça sentido
Talvez seja motivo para o fado
Que nasce do nosso canto já vencido.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Passemos, tu e eu, devagarinho

Passemos, tu e eu, devagarinho,
Sem ruído, sem quase movimento
Tão mansos que a poeira do caminho
A pisemos sem dor e sem tormento

Que os nossos corações, num torvelinho
De folhas arrastadas pelo vento,
Saibam beber o precioso vinho,
A rara embriaguez deste momento

E se a tarde vier, deixá-la vir
E se a noite quiser, pode cobrir
Triunfalmente o céu de nuvens calmas

De costas para o sol, então veremos
Fundir-se as duas sombras que tivemos
Numa só sombra, como as nossas almas.

Reinaldo Ferreira

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Incógnita Variável

rasga esses versos.
talvez nunca os tenhas lido
se o não fizeste, também não é uma boa altura para o fazeres.
às vezes deviamos esquecer aquilo que fizemos, e muito menos escrever sobre aquilo que fazemos, pois nunca sabemos se vamos gostar de reler aquilo que fomos
alguns não sabem o que foram
muito menos o que serão
o futuro é a nossa incógnita variável e pode ir por estradas em que nunca passámos
não leias aquilo que fomos
esfuma-se da memória os pedaços de vida que fomos deixando por aí
desapareceram os aniversários
hoje já ninguém faz anos
nem temos velas por onde possa soprar o vento do nosso corpo
a brisa que existia já não é variável
já nem existe uma brisa em nós
apenas o leve barulho das folhas que ainda caem
não corras para apanhá-las, vão sempre fugir-te das mãos
a vida esqueceu-se de traçar o nosso rumo
e a palma da nossa mão já não sabe o que há-de dizer-nos
desaparecemos por entre o inverno da nossa memória
hoje, na nossa cabeça, existe apenas um frio sem agasalho
e contudo é outono, novembro voltou,
e tudo continua a ir por este rio acima...

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Não Olhes de Frente Para a Minha Memória

não olhes de frente para a minha memória
se a vires passa de lado e não penses, sequer uma vez, em voltar-te para trás
entrega ao esquecimento tudo aquilo que não lembramos
não vale a pena avivar aquilo que já morreu
não voltes a revolver as cinzas de alguma coisa que ardeu e perdeu-se no fogo
ateia uma nova fogueira
deixa que as chamas cheguem ao céu e construam as estrelas que não soubemos agarrar
faz os desenhos da erva no papel já amarelecido pelo tempo
constrói o templo onde nunca habitámos
isso sim será útil a tudo aquilo que ainda está por vir
lembra-te apenas do único erro que não podes cometer
não olhes de frente para a minha memória
encara-a de soslaio, como algo que nunca existiu
finge que não a conheces, ignora-a
faz isso por mim, por ti, pelo esquecimento
não mexas nessas cinzas
ainda queimas as mãos
e não deites lágrimas sobre essa velha fogueira
ela apaga-se sozinha
tal como o esquecimento.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Questão de Culpa

Que me deixasses só e te afastasses
Foi o que te pedi, sabe-lo bem,
E quando me deixasses
Nem falasses
Do fim do nosso amor com mais ninguém

Mas se andas por aqui como se a vida
Continuasse a mesma entre nós dois,
Tristemente iludida
A despedida,
Para um adeus cruel, mas só depois...

Se é ao banco dos réus que tu me arrastas
Como se o fim do amor fosse algum crime,
Se com palavras gastas
Tu te afastas,
Mas queres que de ti eu me aproxime

É que talvez não saibas que te amei
E que esse louco amor não continua,
De tanto que passei
Desesperei,
E se a saudade é minha, a culpa é tua.

Não resisti a partilhar mais um grande inédito de
Vasco Graça Moura, este para a voz de
Cristina Nóbrega

terça-feira, 2 de novembro de 2010

novembro

chegámos a novembro e ainda não trincaste as cerejas que deixei sobre a mesa.
talvez não voltes para prová-las.
tinha deixado a tua música favorita a tocar no velho gira-discos, mas com o passar do tempo, já deves ter outra música de que gostes mais.
a fruta vai acabar por apodrecer, e nós iremos com ela.
trincámos e não deitámos fora este caroço que ainda está entalado na nossa garganta.
podiamos morrer sufocados, talvez tudo o resto fosse mais suportável.
não consigo parar de pensar o porquê de estar a chover.
novembro é o tempo dos agasalhos e não das chuvas miudinhas.
até o tempo se alterou, juntamente com tudo o resto.
não fui buscar lenha para a lareira, já não é preciso madeira para nos aquecermos, basta o lume brando que temos debaixo dos nossos pés.
estamos queimados por dentro.
talvez não haja nada que nos possa salvar deste fogo lento que se apoderou do nosso corpo.
estamos a desaparecer, juntamente com a poeira de novembro.
por muito que isso que nos custe, é verdade, novembro chegou e leva-nos com as folhas, embala-nos para longe, para onde nunca fomos e de onde nunca poderemos voltar.
não chores neste mês.
já basta o tempo que teima em secar as lágrimas em nós.
muda essa roupa que tens agarrada ao corpo, já não é tempo para ela.
talvez ainda sintas o calor de outros tempos mas vais acabar por constipar-te e depois tudo o resto irá parecer-te insuportável.
desculpa, não consigo dizer nada conciso e concreto, apenas palavras começadas pela letra c, aparentemente.
tropeçámos numa pedra que não vimos.
onde está essa pedra? em que parte do caminho? onde a deixámos?
morremos no mesmo dia em que viemos ao mundo, disso eu tenho a certeza.
a partir do momento em que saímos do ventre materno já nos estávamos a preparar para novembro.
e é sempre assim, chega sempre antes do tempo dos sonhos e do bolo-rei.
como se fosse uma fatalidade.
novembro foi o mês do nosso sangue.
o mês em que nos demos ao tempo.
e o mês que o tempo não nos soube dar.

domingo, 31 de outubro de 2010

A Rima Mais Bonita

Cansei-me dos poemas que escrevi
Mas não tive coragem de os rasgar
São versos meu amor... falam de ti
Mesmo que às vezes finjam não falar

O fado, quando chegou à noitinha,
Ficou todo contente por me ver
Pediu-me versos novos e eu não tinha
Rasguei-os antes mesmo de os escrever

Agora, quando o fado me visita
Já traz poemas feitos de tristeza
Cansado, escolhe a rima mais bonita
E deixa-a esquecida sobre a mesa

Então, chega a saudade e eu regresso
Às quadras que não tinha terminado
São versos, meu amor, quando as começo
Mas assim que as acabo já são fado.

Tiago Torres da Silva para
Marco Rodrigues

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

rosa madrugada

rosa desfolhada
pela madrugada
que em mim morreu
noite de lua
sem dizeres "sou tua"
ou eu pensar: "sou teu"

rosa que caiu
de mim partiu
sem me avisar
talvez volte a nascer
na fome de viver
deste meu cantar

rosa perdida
nas malhas da vida
na criação
rosa que murchou
caiu ao chão
rosa que ninguém apanhou

rosa que era minha
mas que sozinha
não conseguiu vingar
talvez um dia encontre
o seu lugar
e possa voltar a viver

rosa que morreu
à sede de água
que chorou
a minha velha mágoa
rosa que descobri
e que colhi para ti
numa velha madrugada.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

meu amor de janeiro

meu amor de janeiro
com cheiro a chuva e desejo
entrega-me o teu beijo
como se fosse uma promessa

meu amor de janeiro
triste fim sem conquista
meu amor despedaçado
que nasce na boca feito fado
e isola-se no peito de um fadista

e acende-se a velha lareira
onde a ternura incendeia
e nasce feita trovoada
janeiro tem destas loucuras
morre por entre ternuras
e perde-se na nossa velha estrada

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Recado

estou aqui, como se te procurasse
a fingir que não sei aonde estás
queria tanto falar-te, e se falasse
dizer as coisas que não sou capaz

dizer, eu sei lá, que te perdi
por não saber achar-te à minha beira
e na casa deserta então morri
como a luz do teu sorriso à cabeceira

queria tanto falar-te e não consigo
explicar o que se sofre, o que se sente
e perguntar, como ao teu retrato digo
se queres casar comigo novamente.

António Lobo Antunes

domingo, 24 de outubro de 2010

Mais uma vez aproxima-se a hora do poeta maldito.
Talvez em dose tripla.
Salve-se quem puder.

sábado, 23 de outubro de 2010

Um Fado Só Para Ti (Poema Tristonho)

Fiz um poema tristonho
Onde o teu amor risonho
Era promessa e desejo
Moldei teu corpo dormindo
E nos teus lábios sorrindo
A paz serena de um beijo

Podes ler neste poema
Todo o meu amor por tema
Minha alma em cada verso
Faz dele um hino de vida
Na grandeza desmedida
Do descrente universo

És o mote do poema
Misto de amor e saudade
De alegria e de verdade
És o retrato feliz
Daquilo que em ti mais quis
E em mim deixou saudade.

de uma grande poeta do fado
Maria de Lurdes de Carvalho

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Fado de Coimbra Nº4

Não vem ao caso dizer quanto te amo
Aperto o sol no peito e não és tu
Que noite nos meus braços se te chamo
Que vestido de sombra em corpo nu

Não vem ao caso dizer que sinto frio
Se amanheço a teu lado e tu não estás
E escrevo um poema que ninguém ouviu
Com as palavras que não sou capaz

Não vem ao caso dizer que ainda te espero
Como quem espera um filho que morreu
Digo que te desejo e não te quero
Digo que não te quero e não sou eu.

para quem ainda não conhece a poesia de
um dos nossos maiores autores António Lobo Antunes

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Outono da Partida

Vem ver-me no Outono da minha partida
Voltarei quando as folhas ficarem raiz
Se choro na hora da despedida
É porque senti, por vezes, ser feliz

Não deixo memórias nem retratos
Quero a minha imagem desvanecida
E onde houve rosas eu ponho cardos
Essa é a flor da minha partida

Não olho para trás, quero lá saber
Aquilo que passou já é passado
E se hoje ainda quero viver
É por a minha dor ser apenas fado.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Última Jogada

Fiz a minha última jogada
Mas saí sempre a perder
Quando se manda a última cartada
É preciso saber vencer

A vida às vezes tem sentidos
Que não conseguimos perceber
Por muito que queiramos vencer
Às vezes é tal a impossibilidade
Que nos entregamos à saudade
E saímos sempre sem nada
E a alma fica tão marcada
Que apenas me resta dizer:
Fiz a minha última jogada
Mas saí sempre a perder

A vida é como um baralho
Que apenas nos quer confundir
E quando tentamos rir
Daquilo que já passou
Percebemos que o tempo voou
E não nos deixou nada
Por isso grito à descarada
Sem precisar de me esconder:
Quando se manda a última cartada
É preciso saber vencer.

Lençóis de Lua

Amar-te,
Não pode, somente, ser um gesto vago
Tão pouco beber-te, demente,
Apenas num trago
Amar-te
É ter a alma, a voz, só por este prazer
De junto de ti, saber ser mulher

Com lençóis de lua
Abro a minha cama
E entrego-me nua,
Só, como quem ama
Com lençóis de lua,
Hora madrugada,
Abraço o teu corpo
Não preciso de mais nada

Amar-te,
É esse desejo, aceso na alma,
A fome maior, dum teu beijo,
Que nunca se acalma
Amar-te
É ter, em cada manhã, teus olhos nos meus
Dizer-te até logo e nunca um adeus.

Mário Raínho para a voz de
Maria Armanda

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Saltos Altos

Estava hesitante na direcção a seguir. As opções também não eram muitas, há bastante tempo que apenas dois caminhos se desenhavam á sua frente. Não sabia se a sua opção seria entrar no comboio ou seguir a direito e ver onde a estação poderia acabar (mas ela sabia onde a estação acabava, afinal de contas tinha-a percorrido uma vida quase inteira, e nunca tinha reparado em nada de diferente). O tempo nem sempre muda aquilo que está à nossa volta. Às vezes, somos apenas nós que mudamos, que vamos envelhecendo, e tudo o resto até vai ficando com um aspecto mais jovial e perfeito. Sim, há coisas que a nossos olhos parecem perfeitas. Provavelmente serão aberrações para outros olhos menos circunspectos que os nossos. Acabou por entrar no comboio, afinal era a única coisa plausível a fazer. Entrou e sentou-se num dos primeiros bancos que lhe apareceram, sem reparar sequer em quem estava ao seu lado ou à sua frente. Sentou-se e descalçou os seus velhos sapatos de salto alto. Não sabia por que insistia em andar com aqueles sapatos mas... bem, talvez soubesse porque os usava. Não era pelos centímetros a mais nem pelas dores nas costas que ganhava sempre como recompensa. A sua mãe usava sempre saltos altos, e para ela, aquilo era um símbolo da mulher. Pelo menos um símbolo da única mulher que alguma vez admirou. Não conseguiu conter um pequeno suspiro que lhe saiu da boca ao retirar os sapatos. Tinha calos e tinha-os apertados, até podemos falar em sofrimento se nos apetecer, embora seja um sofrimento consentido; enfim...
Olhou pela janela e não reconheceu a paisagem que se adivinhava à sua volta, isto também é normal pois nunca tinha ido naquele comboio e não sabia tão pouco onde ele iria parar. Apenas disse, na estação, que queria um bilhete para bem longe, e aquele pobre homem atrás do balcão vendeu-lhe mesmo um bilhete para um sítio qualquer longínquo, ou talvez não fosse assim tão longínquo mas ela não reconhecia sequer o nome que estava impresso naquele pedaço de cartão, por isso servia perfeitamente os seus propósitos. Reparou no homem que estava à sua frente. Preferia não o ter feito, agora teria de dizer alguma coisa para não parecer uma maníaca qualquer que se mete com o primeiro que lhe aparece à frente. Mas não abriu a boca, queria lá saber o que pensavam dela, há muito que isso a deixara de importunar. Bem, talvez não há muito tempo mas ao suficiente, umas horas já seriam o suficiente. Decidiu tomar um novo rumo, desaparecer da sua velha vida e tentar encontrar alguma que lhe ajeitasse melhor no corpo. Será que vendem vidas? Ou que andam vidas perdidas? Nunca o saberia pois mesmo que encontrasse alguma, certamente que não lhe iria falar com receio do que pudesse ouvir. Conclusão: esta melhor encontra-se num comboio com um bilhete de ida para nenhures. Mas também isso não é importante, se ela própria não se conhece para quê ir para um sítio que lhe fosse familiar? Sim, nenhures foi a melhor opção, é sempre.

sábado, 9 de outubro de 2010

Em Todos os Jardins

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como um beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 2 de outubro de 2010

Ai! Os Olhos de Bette Davis!
O talento, a força, a energia, o saber estar, o saber fazer, o saber atirar cada frase, cada sarcasmo, cada suspiro.
Mulher por inteiro, sem pedir licença a ninguém.
A grande actriz, a que se entrega, a que não foge.
Olha para a câmara à espera que esta olhe para si, e caso o seu olhar fuja, ela agarra-o com ambas as mãos.
E como descrever o seu encontro com Joan Crawford? Ainda existem actrizes assim? Ainda se fazem cenas daquelas? Ainda se encontra tanta fome no meio de tanta arte? Cada uma a ver o que pode comer, as presas que estão á sua volta, cada uma a lutar pelo seu ringue.
E o que dizer da Bette do Eve? A grande actriz, a grande sofredora, o amor nunca encontrado.
E a sua Queen Elisabeth? Mais uma vez o amor por encontrar.
O que aconteceu a estas actrizes?
O que aconteceu ao seu talento?
Porque é que não deixaram nada?
O que é que aconteceu a Baby Jane?

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A Guerra das Rosas

Partiste
sem dizer adeus nem nada
Fingiste
que a culpa era toda minha
Disseste
que eu tinha a vida estragada
e eu gritei-te da escada
que fosses morrer sozinha

Voltaste
e nem desculpa pediste
Perguntaste
porque é que eu tinha chorado
Não respondi
mas quando vi que sorriste
eu disse que estava triste
porque tu tinhas voltado

Zangada
esvaziaste o meu armário
E em nada
ficou meu disco preferido
De raiva
rasguei o teu diário
virei teu saco ao contrário
dei-te cabo de um vestido

Queimaste
o meu jantar favorito
Deixaste
o meu champanhe azedar
E quando
cozinhei o periquito
para abafar o teu grito
eu comecei a cantar

Fumavas
eu nem suportava o cheiro
Teimavas
em me acender um cigarro
E quando
tu me ofereceste um isqueiro
atirei-te com o cinzeiro
escondi as chaves do carro

Não queria
que visses televisão
Em dia
de jogos de futebol
Torcias
contra a nossa selecção
se eu via um filme de acção
tu mudavas de canal

Tu querias
que eu fosse contigo ao bar
Só ias
se eu não entrasse contigo
Saía
p'ra não ter de te aturar
tu ficavas a dançar
com o meu melhor amigo

Gozavas
porque eu não queria beber
Ralhavas
ao veres-me de grão na asa
Eu ia
à festa sem te dizer
nunca cheguei a saber
se tu ficavas em casa

Tu deste
ao porteiro roupa minha
Soubeste
que eu lhe dera o teu roupão
Eu dei
o teu anel à vizinha
e p'la estima que eu lhe tinha
ofereceste-lhe o meu cão

Foste-me lendo
o teu romance de amor
Sabendo
que eu não gostava da história
No dia
de o mandares p'ró editor
fui ao teu computador
apaguei-o da memória

Se cozinhavas
eu jantava sempre fora
Juravas
que eu havia de pagá-las
"Põe-te na rua"
dizias-me a toda a hora
e quando eu me fui embora
tu ficaste-me co'as malas

Depois
desses anos infernais
Os dois
Éramos caso arrumado
Achando
que também era demais
jurámos p'ra nunca mais
Foi cada um p'ra seu lado

No escuro
tu insistes que eu não presto
Eu juro
que falta a parte melhor
Um beijo
acaba com o teu protesto
amanhã conto-te o resto
Boa noite meu amor.

Manuela de Freitas para Camané


quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O tempo tem sido pouco para vir aqui, mas em compensação, o Teatro tem-me ocupado o tempo todo.
Poderá a felicidade explicar-se por palavras?

sábado, 11 de setembro de 2010

- Onde é que vamos? - perguntei.
- Não sei - disse ele - , vamos só a conduzir.
- Mas esta estrada não nos leva a lado nenhum - disse-lhe.
- Não é isso que têm importância.
- Então o que é?
- É apenas o facto de andarmos nela, pá.

Bret Easton Ellis
Menos Que Zero

sábado, 4 de setembro de 2010

Falando de paixões, tenho de falar de François Ozon e Christophe Honoré.

8 MULHERES, é um dos "meus filmes". Nenhum homem teve a sorte de juntar no mesmo plateu Catherine Deneuve, Fanny Ardant, Isabelle Huppert, a veterana Danielle Darrieux e as jovens promessas (e hoje confirmações): Virginie Ledoyen e Ludivine Sagnier. Já não se fazem actrizes como Sagnier (e SWIMMING POOL, de Ozon, também é prova disso); a sexualidade nunca teve um aspecto tão animalesco como com ela. Também já não existem actrizes com a classe de Deneuve (actriz que imagino sempre em Paris, e nunca num subúrbio qualquer), já para não falar da grande actriz de composição que é Huppert (mas dessa já todos sabem). 8 MULHERES, nada mais é do que oito mulheres dentro de uma casa, todas à procura de quem é a assassina do marido de Deneuve, e nada mais nos dá do que oito grandes actrizes a representarem a um mesmo tempo, embora de modos diferentes. Ozon é capaz disto como da surpresa que foi ANGEL e RICKY (o primeiro um melodrama dos mais clássicos e o segundo encaixa-se num certo realismo fantástico, ao vermos um bebé que nasceu com umas asas de frango, nem mais, umas asas de frango). Este é o homem que tanto toca no realismo fantástico como é capaz das "crónicas" mais citadinas, como são exemplo: 5x2 e O TEMPO QUE RESTA. Estreia esta semana, em França, o seu novo filme: POTICHE (mais uma vez Deneuve, e desta vez acompanhada por Depardieu); cá espero...

Honoré vem nesta mesma tradição e traz o doce cheiro de Paris, junto com o doce cheiro do melodrama (e até o género musical passa por ele). AS CANÇÕES DE AMOR, A MINHA MÃE, EM PARIS e A BELA JUNIE, são disto exemplo. Cada um dos filmes tem a presença de Louis Garrel (e do seu penteado inalterável) e a presença de figuras femininas inesquecíveis: seja Sagnier, Huppert, a surpresa que é Léa Seydoux, ou a inquietante Chiara Mastroianni (o resultado da junção entre Deneuve e Marcello Mastroianni). Filmes inquietos, com algus restos daquilo que pode ser uma tragédia moderna (existe sempre uma morte, mas nunca como motor da história). Filmes poéticos e impregnados de canções, velhas canções de amor a fazer lembrar Brel ou os melhores tempos de Aznavour.

Ninguém faz filmes como os franceses, não é à toa que só eles poderiam ter feito a Nouvelle Vague. Não sei o que França tem nos seus ares, mas seja o que for respira a Arte, a uma arte sempre nova e renovada.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Paixões

Uma vez escrevi num papel que não conseguia deixar de gastar dinheiro em bens culturais (num exercício de português no primeiro ano da EPTC) e realmente, não consigo.
Nasci com o vício da leitura, alimentei o vício do cinema e mais tarde aconteceu o do teatro. Às vezes até saltava refeições por falta de dinheiro para tanta coisa, mas nunca me arrependi. A fome fica mas o resto passava, logo, podia resolver o problema da fome mais tarde. A primeira paixão foi a dos livros, mal aprendi a ler. Tirava dinheiro das carteiras dos meus avós para poder comprar livros aos quadradinhos, e até falaram disto ao meu psicólogo da altura (mas se me comprassem tudo aquilo que eu queria eu já não precisava de tirar, não tinha culpa de ler depressa). O problema é que eu também não pedia nada, nunca fui de pedir, ficava calado e actuava pela calada, eu precisava era de ter alguma coisa para ler. Tudo isto faz a que pegasse num livro do Saramago com sete anos, chama-se TODOS OS NOMES, e obviamente que não o consegui ler na altura, porque se eu mal sabia a pontuação, quanto mais perceber a pontuação do nosso Nobel. O cinema foi um vício que me ficou do meu pai. Todos os sábados iamos ao cinema depois de almoço (Sábado era o dia em que ele me ia buscar a casa para passarmos a tarde juntos), e foi com ele que descobri o King, o Saldanha, o Nimas, e até o velho Quarteto, que como tudo aquilo que tem história, rapidamente decidiram fechar (e já ninguém se lembra do nome de Pedro Bandeira Freire, no dia em que viu o seu cinema fechado, foi o primeiro dia do resto da sua vida). Daí resultou as minhas duas grandes paixões cinematográficas: Woody Allen e Pedro Almodóvar. Mas também passámos por Altman, Haneke, Botelho, Ozon e muitos outros. O teatro era uma paixão que era alimentada aos poucos e poucos, sendo o Teatro Aberto o principal culpado da minha escolha de vida. O primeiro espectáculo que vi chamava-se DEMÓNIOS MENORES, e entre outros tinha o Virgilio Castelo e Ana Nave, e foi o suficiente para eu pensar que a minha vida tinha de passar pelo Teatro (mais do que a minha vida, o meu modo de vida, porque nós temos um modo de vida muito próprio). Fui arrastando a minha mãe durante alguns fins-de-semana e tenho memórias de grandes peças: A PROFISSÃO DA SENHORA WARREN de Bernard Shaw (com uma inesquecível Maria do Céu Guerra juntamente com a sua filha, Rita Lelllo, a deixarem-me com algumas lágrimas nos olhos), O BOBO E A SUA MULHER ESTA NOITE NA PANCOMÉDIA de Botho Strauss (com o inesquecível Canto e Castro), A CASA DE BERNARDA ALBA, de García Lorca (mais uma vez a Maria do Céu a provar a grande actriz que é), O MISANTROPO de Moliére (com um Carlos Paulo numa interpretação de grande nível e inspirada), e muitas outras. E claro que Carlos Avilez também passou pela minha infância nesse belíssimo espectáculo que era O DOCE PÁSSARO DA JUVENTUDE, de Tennessee Williams (com a grande Anna Paula a encabeçar todo o elenco do TEC). Nunca poderia adivinhar, naquela altura, que iria para a EPTC, trabalhar com o Carlos Avilez, e até fazer Tennessee Williams com ele num futuro muito próximo. A vida dá muitas voltas, mas o nosso fado talvez esteja escrito nalgum lado. Ah, claro! Faltava o fado. Mas isso já faz parte do meu adn, tanto o fado como as palavras (para mim nunca gastas, excepto em raras alturas), que gosto de utilizar em diversas formas.
De vez em quando faço deste camarim o meu porto de confidências; talvez deva falar mais, aqui, das minhas memórias, daquilo que li, do que vi, do que ouvi... fica aqui a ideia.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Fado De Um Amor Que Ficou

Bem sei que tinha os olhos no mar
Quando te via chegar
Com a camisa engomada
Bem sei que procuravas o jeito
Que eu tenho de abrir o peito
Quando não querias mais nada

Trazias uma flor na lapela
E eu espreitava à janela
Quando te ouvia chamar
Trazias a lua no teu sorriso
Trazias aquilo que era preciso
Para te deixar entrar

Quem sabe as juras que nós fizemos
A estrela que prometemos
Um ao outro noite fora
Quem sabe porque cegou essa estrela
Se não voltámos a vê-la
Quem sabe de nós agora

Eu guardo no fundo do coração
Que o amor é só perdão
E um sonho em duas metades
Eu guardo tudo o que deixaste em mim
Desde sempre até ao fim
E às vezes guardo saudades.

João Monge para a voz de Joana Amendoeira

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Esquecer de Ti

Vieste no Inverno do meu cansaço
Preencher o tempo da minha ternura
E eu afaguei-te naquele abraço
Que fez nascer em nós velha loucura

Vieste de outro tempo, outra era
Dum tempo que eu julgava já perdido
E daquele Inverno nasceu uma Primavera
Que roubou de mim qualquer sentido

O Verão trouxe-nos a doce ilusão
De que o calor poderia ficar em nós
Mas ninguém compreende que a paixão
Apenas nos faz ficar mais sós

Agora não me entregues o teu Outono
Deixa-me cair da árvore onde nasci
Talvez que a saudade me traga o sono
Que me faça esquecer, esquecer de ti.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Revigorado.
Novo.
Feliz.
Sorriso aberto.

A partir de amanhã já estou de volta a um lugar do qual já tinha muitas saudades, ao teatro. De volta para um projecto que volta a renascer e com toda a força para ser um grande êxito.
Todos os bebés deviam voltar à incubadora a certa altura da vida. Amanhã volto à minha.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Escrevi Teu Nome No Vento

o frio faz-me encolher os ombros, e sobre mim cai uma neve que não pedi. não sei que horas são, perdi o relógio numa estrada a que não voltei. talvez tenha entrado noutro mundo, um distante daquele que conhecia e, principalmente, que reconhecia. encostei-me à minha saudade, mas ela deixou o meu corpo cair no chão. não sou amparado, nem sequer pelo vento. caio com a força da madrugada sobre os meus ombros. o sol teima em não nascer, em esconder-se. dizem que hoje há uma chuva de cometas, mas ainda não vi nada a passar por aqui. talvez os cometas não tenham escolhido a minha janela, talvez não faça parte da sua rota. ouço o vento, aqui dentro do quarto. ouço o vento mas não consigo perceber o que ele quer dizer. talvez esteja a esconder aquilo que tem entalado na sua garganta (se é que se pode dizer que o vento tem garganta). será que o vento chora? será que sente a dor que é tão nossa? talvez ele faça estes sons por estar a gritar as suas dores, mas eu não consigo percebê-lo. não consigo alcançar o próprio vento. talvez ele esteja a gritar por ajuda, a pedir o meu socorro, mas eu não consigo alcançá-lo, não tenho braços para isso. gostava que a minha boca roçasse ao de leve nas mãos daquela ventania que anda lá por fora. isto não tem significado nenhum, seria apenas uma sensação nova, todos precisamos de novas sensações. queria fazer qualquer coisa, mas deixo-me ficar neste quarto, agarrado a um romance que já vai nas últimas páginas e que conta a história de um grande amor em nove semanas e meia; sim, a literatura erótica já chegou às minhas mãos, já posso dizer que sou um adulto. amanhã volto a ouvir os fados que me acompanham, se tiver os dias (e as noites) repletos de fado, já me sinto feliz. ontem fui embalado por mísia às três e meia da manhã, hoje foi a vez de ir ver raquel tavares e amanhã kátia guerreiro; os meus dias confundem-se com os anos do fado. não sei o que posso dizer mais. ah, sim... o vento. mas esse eu não percebo o que quer dizer.
Escrevi teu nome no vento
Convencido que o escrevia
Na folha dum esquecimento
Que no vento se perdia
Ao vê-lo seguir envolto
Na poeira do caminho
Julguei meu coração solto
Dos elos do teu carinho

Em vez de ir longe levá-lo
Longe, onde o tempo o desfaça
Fica contente a gritá-lo
Onde passa e a quem passa

Pobre de mim, não pensava
Que tal e qual como eu
O vento se apaixonava
Por esse nome que é teu

E quando o vento se agita
Agita-se o meu tormento
Quero esquecer-te, acredita
Mas cada vez há mais vento
Jorge Rosa

Sabor a Vinho

Aceita o copo de vinho que te entrego
Sangue do meu sangue, a minha boca
O rubro dos teus olhos e o teu ego
São a minha vontade mais louca

Entrego-te a minha vida nesta taça
A minha paixão vai toda para ti
Não há amor que o vinho desfaça
Porque eu só nasci quando te vi

Posso embriagar-me nos teus olhos
Posso aquecer meu corpo na lembrança
E a vida não será um mar de escolhos
E tu já não serás minha bonança

Memória difusa, rito incompleto
Vinho que nunca foi provado
Ai! Meu amor, fomos tão perto
E hoje não passamos do passado.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

palavras, palavras, palavras...
...ai Shakespeare, tu é que sabias.

Provavelmente Tristeza

e de súbito, o vento norte arrancou as estacas que ainda agarravam a casa ao chão.
no areal, um rapaz assistia a tudo, impávido, como se aquilo fora algo que ele já esperava há muito tempo.
o mar fazia uma estranha dança; como se as ondas fossem longas saias verdes a abrirem-se ao céu.
o sol recolhia-se por detrás de uma nuvem, que aos poucos, foi ficando cinzenta e mais triste (até que, lentamente, começou a chorar).
a chuva caía por sobre os ombros do rapaz, mas este não se movia, pois tudo aquilo, embora não fosse normal, não lhe era estranho. parecia que tinha vivido toda a sua vida à espera de ver aquele acontecimento; o momento em que o mar e a terra iriam unir-se e e fazer com que tudo à volta desaparecesse.
sentia-se sozinho, o rapaz. tinha vagas lembranças de alguns dias em que se tinha sentido acompanhado, mas agora apenas lhe restava o triste abandono de quem vê o fim da vida como uma coisa perto e não como algo longínquo.
a chuva não deixava que o rosto do rapaz se mostrasse perante a luz, o que faz com que não consigamos ver se ele chora ou não. provavelmente não.
será provavelmente alegria aquilo que sente?
com o fim da vida tudo o resto também acaba.
embora não tivesse mais alegrias, também não teria mais tristezas, e pesando tudo aquilo que viveu numa balança... enfim, talvez as tristezas levem um ligeiro avanço sobre tudo o resto.
ainda se viam tábuas de madeira, ao longe.
a sua velha casa, a sua casa de sempre, nada mais era agora do que restos podres de tábuas já comidas pelo fragor do mar.
começou a entoar, baixinho, uma canção há muito esquecida.
aos poucos vinham à sua lembrança os restos de um tempo que já não sentia como seu.
a memória é um sítio incomódo onde morar, pois nunca sabemos em que quarto dormir.
escolhemos com todo o cuidado a divisão da casa em que nos sentimos mais à vontade, mas depois, logo alguma coisa nos salta à lembrança.
talvez fosse melhor assim.
que o mar o levasse para longe, lá onde a memória não existe e apenas somos lembrança para aqueles que ficaram no lugar que já não habitamos.
todos andamos à procura de uma casa onde morar.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Os corpos
que dançam ao ritmo da canção
entregam-se à dor sem ambição
à doce história do amor

As mãos
erguem-se em vão para o céu
e a paixão não morreu
porque ainda existe em nós

E as palavras
hoje são apenas as mágoas
que não levadas pelas águas
persistem na nossa história

Memória
que fica
que perdura
e não vai embora
o que será
de nós agora?
o que será de mim?

E a teia
que a vida tece à nossa volta
é como uma estrada sem rota
que já não sabe de onde partiu

Este rio
feito das dores mais antigas
que não desaparecem em cantigas
que escrevo para ti agora.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Crónica de uma Saudade (Jogo Viciado)

Foi-se a noite, a madrugada
A lua já se escondeu...

Choram dois corpos cansados por entre cortinas de fumo já desfeitas pela saudade.
Lá fora não corre uma aragem, parece que o tempo parou.
Enquanto os corpos se entregam ao choro da entrega, olham um para o outro como se estivesse a nascer ali um novo tempo.
Ninguém ouve as respirações ofegantes de dois amantes perdidos por entre os lençóis já lançados ao chão.
As mãos agarram-se e procuram um sítio onde pousar, como Midas à espera de ver uma pedra que possa transformar em ouro.
As bocas sabem a água, ao doce ribeiro que corre nas gargantas do corpo.
As formas dos corpos vão mudando consoante a força de cada um e de repente... o êxtase prolongado.
O tempo pára para recuperar o fôlego.
A lua volta a espreitar, apenas para ver se já pode dar o ar de sua graça.
Os olhares encontram-se mas não falam.
As palavras nunca chegam a sair das bocas, o silêncio grita por entre quatro paredes e uma porta entreaberta.
O olhar vago de um mostra que tem medo de alguma coisa... talvez do sol e de tudo aquilo que ele possa trazer.
Quando o sol nascer, aquela noite nunca terá existido, será apenas o fumo que envolve as cortinas.
A valsa dos amantes é sempre composta por acordes tristes e sufocados, langores de violinos já cansados de soltar notas.
As palavras não saem das bocas, mas dentro dos olhos de cada um existe um mundo de Vida e de Sorte.
Os corpos adormecem.
Na manhã seguinte, o jogo continua viciado.
Por muitos dados que se lancem, o resultado é sempre o mesmo.
No tabuleiro apenas uma carta sai: a da partida.
O tabuleiro obriga-nos sempre a regressar à casa da partida.
Mas... e se quisermos mudar de casa?
Os olhares encontram-se e existe um certo sufoco.
Existe um não saber o futuro, e contudo... saber perfeitamente aquilo que ele guarda.
O tempo não consegue ter manha suficiente para nos enganar.
A noite traz momentos que o dia não consegue suportar e isso destrói a valsa dos amantes.
Ao longe ouvem-se sonatas, como uma canção triste a acompanhar um enterro.
Foram a enterrar?
Levaram os seus corpos?
Ficaram à beira-praia?
A noite traz um grito consigo: "Vem! Aparece! Sabes onde estou! Foge para aqui!"
Mas nenhum se volta a esconder no lugar onde já foi feliz.
O dia trouxe as lágrimas da saudade.
As lágrimas de um tempo antigo.
O tempo não volta atrás e nós não voltamos a ser aquilo que fomos.
Lembram-se ambos de como eram... a ingenuidade volta ao de cima.
Ao longe já não se ouvem pianos mas sim música francesa... aquela velha cantora francesa (palavras para quê?).
Sinatra não é boa companhia para a saudade, apenas uma mulher sabe cantar a dor do tempo.
O tempo matou-os, destruiu tudo aquilo que existia mas...
... e contudo... ao longe... sim, ao longe... há sempre uma pequena
fogueira acesa... uma luz forte e que inebria... uma vontade de retroceder...
e de avançar.
O jogo continua viciado?
Os dados ainda dão os mesmos números?
Algum jogador parou de jogar?
Talvez seja tempo de arrumar o tabuleiro.

No retiro, inebriada,
A guitarra o fado e eu.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Chorava por o seu estômago já não se pronunciar.
A fome tinha sido a única coisa agradável que lhe acontecera na vida,
e até ela a abandonou.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Pensando em Ti

Se ainda não esqueceste
As manhãs em que a sorrir
Nos levantámos, depois
De uma noite sem dormir

Se ainda não esqueceste
O acordar da tristeza
A ver as horas passar
E o jantar frio na mesa

Se ainda não esqueceste
Cartas que então te escrevi
Se ainda abres, por vezes,
Os livros que te ofereci

Se ainda sabes de cor
As cores que sempre vesti
Canções que sempre cantei
As cores que sempre escolhi

Sabes... eu ainda passo
Muitas noites sem dormir
Mas de manhã - ao levantar
Sinto frio e já não sei sorrir

E as cartas que te escrevo

Mas que acabo por rasgar
São sempre iguais
Só falam de amor
Pedem-te para voltar

Se ainda não esqueceste
Os momentos de prazer
Que uma criança nos deu
Desde que a vimos nascer

Ao fim de um dia de Verão
Passeios à beira-mar
Deixando atrás pela areia
Os pés marcados a par

Se ainda não esqueceste
Os silêncios que quebrei
Para dizer-te a chorar
Foste a única que amei

Se ainda não esqueceste
O dia em que nasci
A nossa primeira noite
O pouco que te pedi.

ToZé Brito

Bonito, bonito ainda são as canções do ToZé Brito

domingo, 18 de julho de 2010

Tenho saudades tuas.
Foste passar uns dias longe e já sinto a tua falta.
Quatro semanas é muito tempo, pelo menos parece ser...
Não me apetece escrever pois não sei pôr em palavras este vazio que sinto.
Deixo-o ficar comigo, enquanto anseio pelo teu regresso.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

A palavra saudade foi proíbida
na linguagem do povo de outrora
significava pão da vida
depois ficou-se pela partida
não sei o que ela é agora

Perdi-me na imensidão
da cidade já esquecida
por entre a multidão
de gente feita furacão
na lava da nossa vida

Ai! Memória que perdi
por entre os canaviais
já não sei o que é de ti
só sei que me perdi
e não me encontro mais.

domingo, 4 de julho de 2010

Somos do Mar e do Vinho

A nossa vida é tão chata
E ficamos a pensar
Se merece mesmo a pena
Nós andarmos a penar

Eu escuto as palavras
Mas não vejo as acções
Temos muitas teorias
Mas não temos soluções

Depois bebemos um copo de aguardente
E a vida parece melhor
Somos da terra do vinho
Temos falta de carinho
E o futuro ainda pior

Ah a nossa vida
É um labirinto de paixão

Mas se surgem os problemas
Enfrentamos duma forma audaz
Nós já perdemos o medo
Seja o que for tanto faz

Ah a nossa vida
É um labirinto de paixão

Quem não fala com verdade
Quem em si não acredita
Quem não joga o jogo certo
Só semeia a confusão.

Fernando Girão (para a voz de Ricardo Ribeiro)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

No Silêncio De Uma Catedral Verde

Ergui-me no silêncio de uma catedral verde.
Estranha cor esta que escolheram para uma catedral; talvez a quisessem vestida de esperança, e afinal, acabaram por manchá-la de sangue.
As mãos do padre ainda se apresentam com marcas do seu crime.
Um Homem nunca deveria rejeitar um filho, mesmo quando essa criança é feita sobre a anunciação de um pecado. A criança nem teve tempo de soltar as primeiras lágrimas, pois mal saiu do ventre da sua mãe, já o pai estava pronto a asfixiá-lo. A mãe chorava uma dor que apenas ela podia compreender, matavam-lhe a seiva do seu corpo, decepavam-na sem lhe terem pedido licença.
O padre esfregava as mãos, para ver se conseguia afugentar da sua mente aquilo que tinha feito. Não conseguia soltar uma lágrima que fosse, e a sua cabeça latejava como os sinos daquela velha catedral. Subiu e desceu várias vezes a escadaria que dava para o quarto da sua amante de tantas noites, desnorteado por uma criança que rejeitava como sua.
Que escândalo! Que vergonha!
Imaginava o povo todo a revoltar-se contra ele e a virem na sua direcção com archotes prontos a pegarem-lhe fogo. Talvez por isso, decidiu que apenas restava uma saída para aquela criança: teria de morrer nas suas próprias mãos. E foi assim, que no meio do silêncio daquela catedral, ele matou o seu próprio filho.
A mãe sabia perfeitamente aquilo que o velho padre tinha feito á sua criança, mas não tinha forças para fazer fosse o que fosse. Gritou com quantas forças tinha, disposta a ultrapassar todas as paredes que a protegiam (ou davam-lhe a ilusão de uma certa protecção).
Mas o silêncio manteve-se inalterável.
Já não se ouvia o choro de nenhuma criança e o velho padre já ia noite fora à procura de um copo de vinho que lhe acalmasse o espírito.
A mulher viu-se sozinha, a chorar o nome que lhe tinham posto, e que tinha perdido na mesma noite do seu novo baptismo: mãe.

domingo, 27 de junho de 2010

A Virgindade da Morte

...e então a morte chegou-se ao pé de mim, e sentou-me nas suas mãos. Os seus dedos eram longas praias sem mar à vista, quase que podiam ser confundidos com um deserto. Os ossos eram brancos como as estalactites, e as minhas lágrimas parece que faziam com que aquele branco se derretesse. Para minha surpresa, ela embalou-me. Começou a entoar uma canção já muito antiga, vinda do início dos séculos, e eu senti-me embalado pelo berço da civilização. De repente, esqueci os gregos e os romanos, pois pensei que a Humanidade estivesse a nascer dentro de mim, naquele preciso momento. Os seus olhos eram dois poços, profundos, negros como a alma da maior parte de nós; tive medo de olhar para eles durante muito tempo, pois sentia-me a gelar por dentro quando os encarava. A sua túnica era preta, e apenas lhe faltava uma foice na mão para corresponder à imagem que temos dela. Contudo, era suave...tinha a doce melancolia de quem faz o bem aos outros, sem os outros sequer agradecerem. Talvez ela também se sentisse só, afinal de contas ninguém gostava dela e tinha apenas como companhia um velho gato já com séculos de vida, e mais morto que vivo. O seu escritório era deprimente, tal como a maior parte dos escritórios espalhados por aí. Tinha na sua secretária uma agenda enorme, onde apontava todos os seus actos, e todos aqueles que ainda lhe faltavam (e eram bastantes). Ela está viva desde o príncipio do mundo; a partir do momento em que criaram a vida, criaram-na a ela também. Infelizmente, calhou-lhe ser a ovelha negra da família, e a Vida a irmã preferida dos paizinhos. Nunca soube tocar piano, mas queria ter aprendido, caso alguém lhe tivesse ensinado, mas todos os professores recusavam os pedidos dos seus pais ao saberem quem iria ser a aluna. Desde nova que aprendeu a ser auto-didacta pois nunca ninguém se quis aproximar dela. Nunca teve um namorado, embora tivesse tentado engatar cada homem que lhe aparecesse á frente, tal era o desespero. É virgem, obviamente (não por vontade própria mas por circunstãncias do Destino). Ainda pensou em visitar algum rapazinho que em troca de mais alguns anos de vida lhe satisfizesse algumas vontades mais secretas, mas chegou à conclusão que ninguém iria aceitar a troca de bom grado e rapidamente se esqueceu daquilo que lhe passou pela cabeça. Talvez o seu hábito fosse preto para a confundirem com alguma freira, podemos rapidamente chegar à conclusão que afinal o preto é que é a cor das virgens, e o branco a côr onde elas gostam de esconder as impurezas que ja trazem dentro do corpo (e da alma...). A morte, se fosse actriz, seria uma furiosa dramática, daquelas sempre prontas a representarem qualquer tragédia. O papel de Jocasta assentar-lhe-ia que nem uma luva, pois tem toda a presença para isso, difícil seria arranjar um Édipo que se podesse igualar a ela, mas talvez Zeus esteja disponível para tal espectáculo.
De vez em quando ela também mata algum bebé... Deus deu-lhe por castigo não poder ser mãe, e ela não suporta aquelas que o são.
A morte tem as mãos manchadas de sangue e, contudo, veste-se de preto para esconder a côr que lhe escorre pelo vestido. As suas veias estão da cor do céu negro, e a sua alma, morreu no dia em que ela viu a luz do dia.
A morte é o vestido com que a solidão decidiu vestir-se um dia, e gostou tanto de se ver, que nunca mais mudou de roupa.

sábado, 26 de junho de 2010

Brincadeira ao Zeca

A morte saiu à rua num dia assim
Graças a Deus que não deu por mim

Somos filhos da madrugada
Com os bolsos cheios de nada

Dorme meu menino
Que eu também queria ser pequenino

Chamaram-me um dia cigano e maltês
Mas não me chamam isso outra vez!

Era um redondo vocábulo
A nascer no meio de um estábulo

Venham mais cinco
Mas, por favor, com mais afinco!

Vamos cantar as Janeiras
Que ao menos não pensamos em asneiras

Diga amigo Miguel como vai você
Porque por aqui já ninguém o vê

Grândola Vila Morena
A nossa terra está é cada vez mais pequena...

domingo, 20 de junho de 2010

Retrato do Poeta Quando Jovem

Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brandas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada

Há um nascer do sol no sítio errado
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.

José Saramago
Agora não há montra de livraria que não esteja repleta de livros de José Saramago.
Que triste país este que nos deram.
O consumismo tornou-se o sobrenome de Portugal, e é preciso morrermos para reconhecerem o nosso valor.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Nódoa Negra

Doem-me as costas de ter caído da cama.
Claro que foi ela quem me expulsou, nenhum idiota cai da cama sozinho, a não ser aqueles que abraçaram a profissão de nadadores, esses estão sempre prontos a dar aos braços.
De certeza que vou ficar com uma nódoa negra, já estou a senti-la a nascer. Depois vão pensar que tenho uma doença qualquer, que o meu corpo está a ganhar uma nova cor, que posso ter alguma coisa partida... mas porque é que ela me expulsou da cama?
Eu nem estava a ressonar!
Pelo menos que eu tenha dado conta...
Agora para onde é que eu vou? Se calhar devia de ir ao hospital, mas o que é que eu digo? Que caí da cama e que preciso de alguém para ver uma pequena nódoa negra? Sim, porque de certeza que isto não é grande coisa, quanto muito é uma nodoazita...
Vou passar a dormir sozinho, sem ninguém, só eu e a minha cama! Ao menos ela não me expulsa a meio da noite.
Ainda para mais, ouvi uns sons estranhos durante a noite. Como se alguém andasse a rondar... a rondar à minha volta.
Devia ser a ronda dos mafarricos... ou então a dança das bruxas.
Tudo isto foi acontecer na noite em que caí da cama, ou melhor, na noite em que ela me atirou para fora da cama.
Vai-se a ver e também é bruxa... sei lá!
O certo é que fiquei com uma nódoa negra, isso é que já ninguém me pode tirar.

domingo, 13 de junho de 2010

VINCERE / BAD LIEUTENANT

Um drama épico pelas mãos de Marco Bellochio.
A história de Ida Dalser, a mulher que Mussolini tentou esconder, e que deu à luz um filho que ele nunca aceitou.

Um drama policial pelas mãos de Werner Herzog.
Nicolas Cage na grande interpretação da sua carreira, e a fazer-me recordar Harvey Keitel no filme homónimo de Abel Ferrara (embora os dois filmes só tenham em comum o nome).
O sonho americano desmistificado.

A não perder!
a respiração do mar faz o vulcão zangar-se por apenas conter fogo dentro de si.
os peixeis voaram para fora do aquário, não fosse alguma carpideira comê-los.
as sardinhas fugiram do pão e foram comidas por gatos.
o vinho tinto correu à farta e deixou náuseas no bêbedo.
a mulher chorou a morte da festa.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

hoje o dia esteve cinzento e
eu acompanhei-o no seu tom

andei com o passo curto
de quem já soube onde tinha
de ir mas que já não sabe o
que esperar daquilo que está
para acontecer

passei pelos sítios do costume
mas não vi as mesmas cores, e
as caras tinham umas tonalidades
de inverno, que antes sabiam disfarçar

não me vesti de primavera, pois já
não sei onde deixei essa velha camisa
que antes costuma servir-me tão
bem...

chorei durante a tarde, e o céu
não se lembrou de acompanhar
essas lágrimas...talvez tivesse
vergonha daquilo que eu estava
a sentir e se tivesse recolhido

há dias assim, em que nos
sentimos perdidos de nós
próprios, e nem sentimos
a necessidade de rimar

isto nem chega a ser um poema
é apenas um desabafo que fica
por aqui...talvez daqui a um ano
eu me possa rir daquilo que escrevo
hoje
Nem sempre a entrega é reconhecida e, quando damos por nós, estamos numa margem que nos impuseram.
Esforçamo-nos, trabalhamos por algo que esperamos vir a dar frutos e no fim...continuamos tal como começámos.
Uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma, é isso aquilo que temos, e pouco mais.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Podia ser tudo lá fora, se não estivesse aqui dentro.
Começo um texto com uma frase sem sentido por nem sentir vontade de escrever, mas por sentir que tenho de deixar aqui algumas linhas. Sobre o quê? Não sei.
Não me apetece falar de mim, pouco vou existindo nestes dias em que apenas penso numa cidade imaginada no meio do oceano Atlântico. Por entre as ruas dessa cidade vou fazendo a minha vida normal.
Finjo que não vejo a chuva a cair lá fora. Penso apenas em mim e no meu quarto. Livros, cd's, dvd's...a tal cidade. Sempre por perto o texto, o já velho texto.
Estou constipado, estou sem voz...tento passar à frente de um nariz entupido e uma garganta que não me obedece, mas é díficil. A teimosia existe no meu corpo, e talvez em mim também...
Não me apetece fazer nada, mas tenho de escrever mais duas entradas de diário.
Sim, talvez seja isso o melhor que tenho a fazer.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Dança da Vida

Perdi-me da claridade
No meio da escuridão
Entreguei à saudade
Toda a minha condição

Chorei mágoas vencidas
Por ventos de outrora
E perdi em mim vidas
Que são de outro agora

Guardamos a saudade
Sem sequer pensar
Que andam pela cidade
Mágoas a cirandar

E nesta dança da vida
Só baila quem poder
Pôr em cada despedida
O beijo de uma mulher.

sábado, 29 de maio de 2010

Escrevo a palavra saudade
Sobre a curva do teu peito
E o traço sai-me direito
Como se fosse verdade

Mas a saudade não existe
É algo que usamos para esconder
Aquilo que estamos a ver
No nosso rosto já triste

A palavra mágoa escrevo em ti
E escrevo-a com carvão
Pois a palavra paixão
Dessa, já me esqueci

As memórias são saudade
E a saudade é uma mentira
Que nasce da nossa ira
De esquecermos a verdade.

domingo, 23 de maio de 2010

Fado

Ao passar pelo ribeiro
Onde, às vezes, me debruço.
Fitou-me alguém. Corpo inteiro,
Curvado como um soluço

Pelo ribeiro da minha memória
Passam os barcos do meu contentamento
Que constroem aquela velha história
De quem morre a cada momento

Que palidez nesse rosto
Sob o lençol do luar!
Tal e qual quem, ao Sol-posto,
Estivesse a agonizar...
Aquelas pupilas baças
Acaso seriam minhas?
Meu amor quando me enlaças,
Porventura as adivinhas?

Rosto negro, rosto da morte
Nascida do ventre materno
De quem cospe na cara da sorte
As labaredas de qualquer inferno

Deram-me, então, por conselho,
Tirar de mim o sentido.
Mas, depois, vendo-me ao espelho,
Cuidei que tinha morrido!

Naveguei num mar de tristeza,
Por entre deuses e corais,
Procurando aquela beleza
De me sentir entre iguais

E toda a minha mágoa
Foi dor que em mim morreu
Passei a fronteira de água
De quem chora porque nasceu.

Pedro Homem de Mello
Renato Pino

domingo, 16 de maio de 2010

Ai de Nós! Ai de Mim!

Brinquei com as palavras que inventei
onde eu as pus...confesso que não sei
tal qual um bicho de conta, que inventa
uma outra conta para a vida que não
soube levar até ao fim

Ai de nós! Ai de mim!
Que vivemos neste assim assim
Neste lugar sem fim definido
Neste canto que embora encontrado
Continua perdido
Ai de nós! Ai de mim!

Brinquei com o que inventei numa outra era
procurei o que eu perdi entre a escuridão
inventei um nome, esqueci uma quimera
que deixei no lugar onde a solidão
me foi encontrar.

sábado, 8 de maio de 2010

Baltasar e Blimunda (ou outro par qualquer...)

Dá-me de comer o pão da cegueira
Não deixes que veja a tua vontade
E eu juro, que um dia, encontro a maneira
De trocarmos as voltas à nossa saudade

Olha para mim e beija-me os olhos
Faz-me sentir os lábios em turbilhão
Eu visto aquele vestido de folhos
Que me ofereceste em noite de São João

Tenho em mim tanta fome de viver
Que tenho medo de um dia perder
Tudo aquilo que foi nossa ambição;

Nunca te afastes de ao pé de mim
Dá-me rosas, meu pedaço de jasmim
Que prometo renovar a nossa paixão.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Saia Verde

De saia verde me vesti
No último dia em que te vi
A saia verde eu despi
Quando te afastavas de mim

A saia verde da esperança
Foi pronúncio de morte
Mandei ao mar a aliança
De um casamento unido pela sorte

A saia verde feita trapos
Cortada pela tirania
De homens feitos verdes sapos
Que existem na minha fantasia

Adeus minha saia verde
Visto agora de encarnado
Pois toda aquela que perde
Tem de cumprir um novo fado.

Para Matilde Gomes D'Andrade

terça-feira, 27 de abril de 2010

De Sião a Babilónia

Fechei as mãos sobre o rosto, respirei fundo e voltei a olhar à minha volta. Não podia acreditar que tudo estava diferente. Às vezes voltamos aos sítios com a ténue esperança de tudo se manter igual, tal como deixámos, mas isso raramente acontece. A natureza segue o seu caminho, tem os seus caprichos, e mete a mão naquilo que julgávamos nosso e intransponível. Quem passou os portões da minha saudade? Quem veio arrancar as flores do meu deserto? Tudo morreu onde outrora existia vida, as fontes secaram, e contudo, ainda ontem à noite chovia. Estranho o correr deste rio, desta foz, deste mar que busca um oceano, sem nunca conseguir encontrá-lo. Quem chora as minhas lágrimas? Quem secou o meu pranto? Quem me fez morrer por dentro para poder sorrir por fora? Não existem bandeiras neste país, nem símbolos de alegrias que ficaram por viver. Quem ultrapassou fronteiras que eu deixei bem definidas? Quem ultrapassa os desertos da solidão? Nesta floresta, feita de areia, nada mais resta, não há lembranças por dentro do esquecimento. E há uma música, lá ao fundo...um hino, talvez...uma memória que canta? Que som pode um rio fazer? Qual o som das nossas ânsias, do nosso desassossego? Qual o som da nossa vontade? A liberdade chama-me, diz-me para continuar em frente, mas a areia prende os meus pés a este sítio. Não existem pedras nos remorsos, apenas lembranças pesadas, mas não o peso das pedras, é algo que nos abate sem nos deixar cair.
Sôbolos rios que vão de Sião a Babilónia...
morri junto ao monte
onde já não restava o sopro
da vida.

morri desfeito pelas marés,
pelas intempéries que se
revoltaram contra o meu
corpo

náufrago de mim mesmo,
barco á deriva e sem destino

sábado, 24 de abril de 2010

O Nome Que Tu Me Davas

O nome que tu me davas
Quando à noite me chamavas
Tinha o dom de uma oração
Não tinha som nem palavras
Mas quando tu me chamavas
Nunca te disse que não

Já o vi escrito na lua
Nas pedras da minha rua
E nas candeias do céu
O nome que tu me davas
Quando em silêncio cantavas
Era mais teu do que meu

Não era dor, nem bondade,
Amor, fado ou saudade,
Nem a lágrima perdida
O nome que tu me davas
Quando à noite me chamavas
Era toda a minha vida.

João Monge para a voz de
Joana Amendoeira

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Fugi para uma casca de ovo e não consigo sair.
Estou cheio de gema por tudo quanto é lado.
A minha mãe vai chatear-se comigo, sujei-me todo com a clara.
Ainda vou molhar o bico na parte cor-de-laranja.
Estou perdido numa casca de ovo.
Quem é que terá a bondade de não fazer uma omelete?

sábado, 17 de abril de 2010

Pede À Saudade

Pedi tão pouco
tudo te dei
És o meu fado, sei que fui louco
Porque te amei, sem ser amado
Quando a verdade se atravessar
No teu caminho, pede à saudade
P'ra te lembrar, o meu carinho

Pede à saudade, eu sei que vais ter saudade
Quando um dia a solidão, te recordar o passado
E se em verdade, precisares dum ombro amigo
Sabes que estarei contigo, basta pedires à saudade

Podes sorrir
fazer alarde
Pouco m'importa, sei que hás-de vir
Mais cedo ou tarde, bater-me à porta
Se é que preferes, que seja assim
Ri à vontade, mas se quiseres saber de mim
Pede à saudade.

Letra de António Rocha e
música de Manuel Mendes para a
voz de Gonçalo Salgueiro

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Recordações

rasguei o vestido e pu-lo em cima da mesa para veres como ele ficou.
parti o espelho que era da tua avó.
a jarra foi contra o chão e deixei os cacos espalhados.
cortei-me no vidro da janela.
cortei dois cabelos que deixei na tua mesa de cabeceira.
rasguei as páginas daquele livro que nunca chegarás a ler.
no fim de tudo...
deitei fogo à tua casa para não ter de me queimar a mim.

terça-feira, 13 de abril de 2010

O Amor Não Se Desata

Enquanto, perverso, rias
Tu fizeste o que podias
Para eu deixar de te amar:
Tornaste as noites vazias
E, não fosse eu querer esperar,
Anoiteceste os meus dias.

Inventaste mil pecados
Que eu não tinha cometido
(mil mentiras sem sentido);
Desmanchaste os meus bordados
E retalhaste o vestido
Com que eu me tinha casado

Como bem sabes agora
(e hás-de sentir vida fora),
Tanto mal era escusado.
Se te querias ir embora
Não ganhaste com a demora
Senão partires mais culpado

Não nego que me doeu,
Mas juro que, até à data,
A dor de nada valeu:
O amor não se desata -
E a tua paixão morreu,
Mas a minha não se mata.

Maria do Rosário Pedreira

domingo, 11 de abril de 2010

O Amor (sem se saber bem porquê)

O Amor
é uma coisa muito boa
que bate numa pessoa
sem se saber bem porquê

É estranho
às vezes fica bem escondido
outras é doido varrido
sem se saber bem porquê

Então
o mundo fica mais bonito
a cada um seu favorito
e eu bem perto de ti

Paixão
é uma coisa assim bem forte
que nos faz perder o norte
até chega a magoar

E é estranho
tudo perde o seu sentido
vira fruto proíbido
sem se saber bem porquê

E então
o mundo fica mais ansioso
a cada um seu amoroso
e eu bem perto de ti.

TIM
(na voz de Celeste Rodrigues e Tim)

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Tacones Lejanos

Pôs os saltos altos e retocou a maquilhagem.
Saiu à rua.
Ninguém olhava para ela, era como se estivesse invisível.
Nem um piropo ouviu.
Subiu um pouco a saia de modo a poder mostrar um pouco mais da perna.
O desejo estava morto no seu corpo.
Já não suscitava o mínimo fulgor em ninguém.
Estava a apodrecer e só agora se dava conta disso.
Pegou no seu espelho de mão e a cara que viu não era a sua.
Os seus olhos estavam pálidos, cheios da fome do seu corpo.
Não podia chorar no meio da rua, fez pressão sobre os lábios.
Começou a sentir uma comichão no braço direito.
O braço direito começou a ficar cada vez mais dormente.
Sentiu uma tontura e perdeu a noção de espaço.
Deixou-se cair no chão.
Abriu os olhos...
Não viu ninguém, não sabia sequer onde estava.
Olhou para todos os lados e então reparou que tinha pessoas a seu lado, mas só de passagem.
Ninguém tinha parado para a ajudar.
"Coitada, nesta idade e ainda na prostituição...é preciso ganhar a vida..."
Teve vergonha de si.
Deve ter corado.
Prostituta?
A beleza nunca foi sua cliente e a tristeza nem pagou o que lhe devia.
A solidão é um chulo que a prostituição arranjou para se esconder.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Quatro anos depois voltei a sentir a necessidade de voltar à escrita para teatro. Veio-me um título à cabeça e depois uma história à volta daquelas cinco palavras.
Há quatro anos escrevi uma pequena farsa chamada "Me Engana Que Eu Gosto", que vim a fazer, juntamente com quatro pessoas que tinham estado comigo num curso na Casa do Artista. Era uma farsa de traços grossos, sem nada que enganar, pretendia ser apenas aquilo que era. Amadureci durante este tempo e agora jã não é uma comédia aquilo que a minha cabeça organiza (que não me aconteça como ao Almodóvar, que a partir do momento em que pôs a comédia de lado perdeu algum do seu melhor encanto). Escrevo agora sobre relações, sobre dois casais desavindos. Sim, deixei a comédia para poder escrever sobre sentimentos, sobre as paixões e o seu final, sobre encontros e desencontros. As influências estão todas lá, a vida dividida nos seus dois géneros: tragédia e comédia (mas sempre a cair para o lado da tragédia). Fala-se do Peso e da Leveza (traços de Kundera). Fala-se do peso da felicidade e da leveza da tristeza...
Nao está pronta, está a construir-se. Quatro anos depois ainda sou capaz de me aventurar a escrever para teatro.
É bom estar de volta.

sábado, 3 de abril de 2010

O Miúdo Que Pregava Pregos Numa Tábua

A minha admiração por Manuel Alegre é sobejamente conhecida, e devido a isso, senti a necessidade de vir aqui escrever sobre essa novela magnífica que é "O Miúdo Que Pregava Pregos Numa Tábua". Comprei-o hoje e li-o de um fôlego só durante a tarde, também sei reconhecer que o livro não é muito extenso, mas quantas obras de cento e dez páginas nos conseguem cativar ao ponto de não as conseguirmos largar?
A prosa de Manuel Alegre é como a sua poesia, não tem uma medida exacta. A métrica é livre e pouco extensa, resume-se ao essencial, ao eterno pulsar da terra, à respiração que a terra transparece. Não há artefícios na sua escrita, não há a intenção de fazer grande literatura, há memórias e vivências que têm uma necessida pungente de passar para o papel. No jornal PÚBLICO, de ontem, vinha uma crítica arrasadora ao livro e isso entristece-me. E entristece-me por um motivo muito simples: porque procuram aquilo que a sua escrita não têm nem nunca terá, os tais subterfúgios onde se escondem os grandes romances mas onde as simples novelas não conseguem chegar, porque nem têm esse objectivo.
A escrita, tanto em romance como em novela, de Manuel Alegre é repleta das suas memórias. Tal como a sua poesia, é muito pessoal, tudo aquilo é escrito com a força de quem já viveu com muitas grilhetas presas aos pés. "Cão Como Nós" continua a ser o seu grande apogeu em prosa, porque a simplicidade é levada ao limite, nada mais existe do que os afectos, do que a memória dos afectos. Mas também de afectos é feita esta sua nova novela, há memórias de Sophia e de Torga, da sua infância, dos primeiros sintomas da sua vida sexual, existe um despojar da alma de Manuel Alegre que até hoje apenas podia ter sido sentido na sua poesia. E claro que há a cadência...a música das palavras, esse compasso que lhe está nos dedos e que ele transborda para a folha em branco como ninguém.
Alegre é um poeta de excepção. "Conheci-o" através de Amália Rodrigues e depois pela voz de João Braga e Adriano Correia de Oliveira. Oulman compreendeu como ninguém esse baluarte da poesia portuguesa (na minha opinião) que é o "Quatro Facas", deu uma certa ligeireza a "Meu Amor é Marinheiro" pois a mensagem já era bastante nítida e ainda desbravou esse poema difícil de cantar que tem por nome apenas uma palavra "Abril. Adriano estava mais perto das raízes de Alegre, traz as suas palavras para músicas feitas por ele próprio e eleva-o por cima das águas do Mondego. E depois há a grande amizade com João Braga (o fado consegue unir as almas mais desavindas, pois politicamente, estão os dois em campos diferentes) que faz com que composições como "Adriano" e "Fado Fado" ressoem ainda em mim (o eterno "nem má sorte / nem má sina / nem choradinho trinado / o destino só destina / quem já nasce conformado").
E por último aquela que ficará para a história como um dos grandes poemas de resistência a uma ditadura fascista que teimava em não deixar este país respirar: "Trova do Vento que Passa" (talvez hoje ainda se devesse cantar alguns versos de vez em quando...só para avivar algumas almas mais esquecidas...).
Falando da sua poesia fala-se também do seu trabalho político, mas por aí não gostaria de me alongar, correndo o risco de este texto cair por caminhos mais dados a discussão, que ainda que fosse uma coisa de salutar, não é muito próprio para este camarim...
Ao falar da sua obra fala-se do ser humano por detrás dela, das suas fraquezas e das suas forças, dos seus redutos e das suas fortalezas e isso mostra-nos o seu carácter, não sendo preciso louvar o seu trabalho antes da revolução e, principalmente, o importante papel que veio a desempenhar no Partido Solialista.
Há restos de Nambuangongo por entre este texto, as armas é que ficaram ao abrigo do esquecimento...

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Menopausa

Ai minha senhora, minha senhora!
Se eu não a tivesse interrompido nesse seu andar um tanto ou quanto cambaleante já tava aqui morta no chão
Ai tava! Juro-lhe que tava!
Então não tava?
Com certeza que tava...porque da maneira cu outro estava ali a senhora jáqui não tava!
Mas isto é a verdade verdadinha, hã?
Tão certo comeuser o Chico sem pé.
Não olhe pra baixo, minha senhora, quinté sassusta!
Não tenho pé não senhor, é má formação de natureza.
Por isso é que nim fui à escola, seu já nasci mal formado paquê insistir?
Mas isto é comeu-lhe digo, mais uns segundinhos e a sôra tava aqui mortinha, mas é que estiradinha no chão.
A sorte é que eu vejo bem ao perto e vi logo ca senhora vinha por aí fora toda lançada, ai vi vi, atão não vi?
E digo-lhe mais...parei-a cu todo o gosto.
A senhora pá idade que já deve ter intétá muito bem, tenho a dizer-lhe.
Não lhe dava mais de oitenta.
Tem menos? Ah tem...
Olhe que bom, olhe que bom para si...si senhora.
Então com essa idade e com essa fuça imagino que foi muita a malandrice, não?
Cê tem cara de quem foi malandra, e se calhar ainda gosta de malandrar, hã?
Uma brincadeirinha de vez em quando...
Já tevo quê?
O meo na pausa? Oh minha senhora, isso é chamar o homem da televisão e...
Menopausa?
Eh lá...e isso é chato?
Olhe sé chato eu posso ajudar ca minha Francisca também já teve, quela andava metida cuns pescadores todos ranhosos da sardinha e enfiaram-lhe lá essas coisas na dita cuja...
Ah! Habitou-se...
Pois...a gente habitua-se a tudo na vida, nao é?
Olhe, eu vou ali...vou ali...vou ali, e já venho!

quarta-feira, 31 de março de 2010

Três Estações

Morri no Outono da nossa despedida
Fui folha que caíu, murchou no chão
É tão amargo o sabor da partida
E tão breve o tempo da paixão

Voltarei a nascer na Primavera
Quando me entregar ao sol de Agosto
Nascido do ventre de uma quimera
Com a luz mortiça do sol posto

Mas sei que hei-de morrer a cada Inverno
A alma transformada em manto de lua
Fui folha que procurou um chão mais terno
E que apenas conheceu o frio da rua.

terça-feira, 30 de março de 2010

Abri o guarda-chuva.
Já me tinha esquecido do que é sentir a água a cair-nos sobre o rosto.
Lembrei-me da banheira onde a esponja era o carro que percorria a estrada do meu corpo, sempre sem destino, sempre à deriva pelas minhas costas.
Aos poucos confundi a água da chuva com as minhas lágrimas.
Ninguém reparava em mim.
Quem passava tinha algum destino, apenas eu estava à deriva.
Quando dei por mim estava frente-a-frente com um carro.
Ele apitava, apitava...o som daquela buzina na minha cabeça, até agora...
Quis fugir, esconder-me, meter-me na toca de onde nunca devia ter saído.
Procurei o ventre que me gerou e tive medo de não encontrar o sítio onde um dia nasci.
Chorei por me sentir órfão.
Chorei por ser filho daquela chuva que me caía no rosto.
Deixei cair o guarda-chuva na estrada onde me encontrava.
Estava perdido, perdido de mim mesmo.
Não sentia o meu cheiro, não reconhecia aquele lugar, não sabia como tinha ido ali parar.
E olhei para as minhas mãos...já não eram minhas
Não reconheci aqueles traços, aqueles dedos.
Tudo era diferente de mim, eu já era outro.
Talvez nunca tenha sido eu mesmo.
Talvez que eu fosse aquele que nunca foi.
O que ainda poderá ser...sei lá.
Sonho de mim mesmo...talvez fosse isso.
Um sonho de mim mesmo. Talvez me tenha criado a mim próprio.

Parolagem da Vida

Como a vida muda.
Como a vida é muda.
Como a vida é nuda.
Como a vida é nada.
Como a vida é tudo.
Tudo que se perde
mesmo sem ter ganho.
Como a vida é senha
de outra vida nova
que envelhece antes
de romper o novo.
Como a vida é outra
sempre outra, outra
não a que é vivida.
Como a vida é vida
ainda quando morte
esculpida em vida.
Como a vida é forte
em suas algemas.
Como dói a vida
quando tira a veste
de prata celeste.

Como a vida é isto
misturado àquilo.
Como a vida é bela
sendo uma pantera
de garra quebrada.
Como a vida é louca
estúpida, mouca
e no entanto chama
a torrar-se em chama.
Como a vida chora
de saber que é vida
e nunca nunca nunca
leva a sério o homem,
esse lobisomem.
Como a vida ri
a cada manhã
de seu próprio absurdo
e a cada momento
dá de novo a todos
uma prenda estranha.
Como a vida joga
de paz e de guerra
povoando a terra
de leis e fantasmas.
Como a vida toca
seu gasto realejo
fazendo da valsa
um puro Vivaldi.

Como a vida vale
mais que a própria vida
sempre renascida
em flor e formiga
em seixo rolado
peito desolado
coração amante.
E como se salva
a uma só palavra
escrita no sangue
desde o nascimento:
amor, vidamor!

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 29 de março de 2010

Da Morte Não Espero Nada

Não sei se parta, se fique
Da morte não espero nada
Vou mas é fazer-me à estrada
Andar co'a vida ao despique
E sobretudo no Entrudo
Manter a cara lavada
A cantar à desgarrada
A cavalo numa espiga

Se assim quiser a cantiga
E bailar e fazer pose
No prato do arroz doce
Pr'a alegrar a madrugada
Vou mas é fazer-me à estrada
Da morte não espero nada

Não sei se entenderam bem
Não é uma brincadeira
A história se é verdadeira
Dá sempre aquilo que tem
À fantasia escondida
De qualquer coisa perdida
Não sei se fico, se vou
Eu já nem sei onde estou

Com tanta hora de estrada
Eu já nem sei estar parada
E se ouço um assobio
Continuo mas sorrio
Vou mas é fazer-me à estrada
Da morte não espero nada

Não sei quem veio acudir
Ouço contar uma história
Com voz de pai ou de mãe
Ao pé de mim está alguém
E nunca é a fingir
Quando estou quase a dormir

Chegado o tempo das magas
Com as luzes apagadas
Eu olho o mundo daqui
E que lindo que ele é
Que ao vê-lo eu sinto até
Que já morria por ti

Vou mas é fazer-me à estrada
Da morte não espero nada.

Amélia Muge (para Ana Laíns)

domingo, 28 de março de 2010

Não sei o que escrever por estar vazio, sentir-me vazio.
Preciso de ser preenchido, de pôr um tinteiro novo dentro de mim.
Talvez seja este o sentimento quando se está à beira de um esgotamento.
Ok...não estou à beira de um esgotamento, mas fica sempre bem um pouco de drama.
Porque é que na vida real tenho sempre a tendência para o drama? Quando não a tragédia...
Só nestas alturas é que há uma espécie de Agamémnon dentro de mim.
Mas devia de existir um Esopo! Devia de estar sempre em Esopo (tirando a parte da corcunda).
A vida não traz serpentinas com ela...é pena.
Gostava de andar e sentir cairem várias serpentinas.
Ouvir uma música sempre por perto, uma que acompanhasse o meu andar.
Estou com a noite...com a noite e com o som da RTP a dar o "The Departed" (é bom estar acompanhado pela voz do Nicholson).
Sinto-me um balão...vou pôr ar e já volto...

sábado, 20 de março de 2010

Amanhã fecha-se um ciclo.
Por enquanto não sei ainda o que dizer.
Nem sei ainda como me sentir.
Foi bom? Foi muito bom, foi como nunca mais voltará a ser.
Podia ter sido diferente? Podia, mas não teria sido a mesma coisa.
Devo tudo aquele sítio e às pessoas que lá encontrei.
O que sou, o que fui, o que ainda serei...

quarta-feira, 17 de março de 2010

A tal Lemercier...(II)

Deixei o vestido sobre cama, minha senhora.
Não levo nada que seja seu, a não ser a minha irmã.
Mas que eu saiba a Clara não lhe pertence.
Não sei o que vai ser de nós, também não estou para me preocupar.
Não faça essa cara, não lhe roubámos nada, nem o seu amante.
Fica tudo como estava antes de chegarmos aqui.
Apenas levamos a noite que fomos nós que trouxemos.
Levo a doce madrugada que nos encobria os gestos.
Está tudo combinado com o leiteiro, ele...ele continuará a vir diariamente.
Não tem de se preocupar com nada, o seu leite continuará a chegar a horas.
Não tente chorar minha Senhora, há muito que a sua cara está seca.
Não precisamos que tenha pena de nós, já basta a pena que temos de si.
Não sorria, se faz favor. É um favor que faz a si mesma.
Esse vestido fica-lhe mal, não vai muito bem com as suas curvas.
Curvas? Eu disse curvas? Como posso falar de uma coisa que é uma inexistência...
Oh, minha Senhora. Não nos guarde rancor.
Nós até gostámos de si, em certas alturas.
Às vezes até sentimos compaixão, mas raras vezes.
A Senhora não me traz nada de bom à memória.
Devo-lhe os piores anos da minha vida, a minha triste existência.
Não me arrependo de nada do que fiz, apenas do que deixo por fazer.
Nunca se esqueça do meu nome, voltarei a encontrá-la de cada vez que fechar os olhos.
Serei a assombração que nunca irá desaparecer da sua cabeça.
A sombra que não sabe largá-la.
Agora...agora vou com a noite.
Até sempre, minha Senhora.

segunda-feira, 15 de março de 2010

A tal Lemercier...

O relógio bate a meia-noite.
Ouvem-se, lá fora, os mochos a lembrarem que a noite veio para ficar.
Dentro de mim cai a noite, contudo, existe uma pequena fogueira de luz que ainda não se apagou.
É ela que nasce, é ela que vem das trevas de onde apenas saem os monstros sagrados.
Amar na servidão não é amar...é redobrado amor.
Pelo meio do ódio nasce o amor mais violento, em cada odeio-te existe um amo-te a gritar.
As palavras sufocam-na porque está a nascer.
Está a regressar à terra que a cuspiu.
Na boca traz marcas de sangue dos filhos que nunca teve.
O seu ventre está podre do veneno que lhe deitaram em criança.
Tem os olhos de uma louca que perdeu a sua loucura.
E ainda chora.
Chora porque apenas tem por mãe a solidão que a gerou.
Chora porque é filha do silêncio e da tristeza.
Não há vinho que lhe mate a sede, não há pão que lhe mate a fome.
Cresce por entre as desgraças.
Filha de um diabo que Deus não conseguiu prender.
Vem das cavernas de onde apenas sai o medo.
Tem o uivo de um lobo que perdeu a matilha mas que continua à solta pela serra.
Mãe de si própria, Senhora de si mesma.
A raiva cresce-lhe e ganha forma no seu rosto.
O peito está trespassado por balas que nunca foram atiradas.
Dragão que se ergue aos céus com a cara de um abutre esfomeado.
Animal selvagem que gosta de lamber as próprias feridas.
Cai para voltar a levantar-se.
Mulher reprimida, mulher humilhada, mulher que causa repulsa.
Pervertida, tarada.
Os nomes cruéis que lhe puseram são os sobrenomes com que sempre sonhou.
Nasce da noite para se mostrar ao dia.
Nasce para atemorizar e canta com a força da noite.
Nascida das tempestades e com a força de um vendaval.
Nascida de uma cascata onde apenas corre a água podre de quem é infeliz.
Fuma o teu cigarro, deixa-me em cinzas.

Solange Lemercier...a célebre criminosa.

sábado, 13 de março de 2010

A Noite Gosta de Mim

Sei que estás ao pé de mim
Quando o tempo se repete
E o dia chega ao fim
Sem que a noite se inquiete

Nos instantes repetidos
Em que escuto o teu cansaço
Sou igual aos meus sentidos
E o Tempo igual ao Espaço

Mas se o tempo é infinito
Quando o dia chega ao fim
Fecho os olhos e repito:
A noite gosta de mim

E peço ao Tempo e ao Mundo
Que me seja permitido
Viver um breve segundo
Que tu já tenhas vivido

Mas se o tempo é infinito
Quando o dia chega ao fim
Fecho os olhos e repito:
A noite gosta de mim.

Tiago Torres da Silva

Espera por mim todas as noites como se fosse a primeira. Nunca desistas dessa espera. Um dia apareço guiado por uma estrela que perdeu o seu caminho e foi parar à minha janela para me fazer feliz. Sou um filho da noite e apenas ela compreende aquilo que lhe digo em breves palavras. Num céu de estrelas lavrado vamos encontrar-nos um dia, no tal dia em que malmequeres voltarão a abrir-se para nós.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Palma da Mão

Não percebes que o braço não acompanhou o que ia na minha cabeça? Quando dei por mim tinha a mão rente ao teu rosto e depois...depois foi seguir o curso normal de qualquer movimento. A cabeça dizia-me para tomar outra atitude mas o braço estava lançado e eu não tive forças para conseguir detê-lo. Poderia dizer que foi sem querer, mas por breves instantes foi aquilo que me apeteceu fazer, e acabei por fazê-lo. Não vou pedir desculpa por algo que eu não quis fazer, por algo que eu não controlei. Aquele não sou eu, eu não sou aquilo! Recuso-me a ser alguém que se comporta daquela maneira, que tem por hábito aquele tipo de comportamento. Foi uma coisa que ocorreu, própria do momento, tu gritavas e...e eu não sei porque fiz aquilo. Sei apenas que não queria fazê-lo. Que não podia fazê-lo. Mas agora que o fiz, o que me resta?
Não vou arrastar-me de joelhos aos teus pés, seria rídiculo e nem saberia o que dizer.
Não vou penitenciar-me de que maneira for pois isso não estaria certo, não seria o suficiente.
Talvez...talvez devessemos esquecer tudo isto, tudo isto que aconteceu. Passamos uma borracha e apagamos este dia. E apagamos todos os outros que vieram antes deste. E os que virão depois deste. E os que...
Não sei.
Talvez devesse bater em mim mesmo e sentir a solidão que uma pequena palma da mão consegue conter.

terça-feira, 9 de março de 2010

Quando Se Reencontraram...

Quando se voltaram a ver já não tinham nada para dizer um ao outro.
Já tinha passado tanto tempo desde a altura em que trocavam palavras, fossem elas escritas ou ditas. Olharam-se nos olhos e apenas viram lágrimas, e talvez, lá no fundo, aquilo que eles tinham sido. Talvez não tivesse sido nada, apenas o fogacho normal que a juventude traz a todos nós, mas na altura tinha tido toda a importância. As coisas são importantes enquanto as vivemos, depois vamos aprendendo a relativizar aos poucos (e talvez seja esse o mal). Não trocaram qualquer palavra sobre o passado e não tinham nada para falar acerca do futuro. Já não tinham nada a ver um com o outro, já não se reconheciam. No entanto, as lágrimas continuavam a cair-lhes pela cara, e eles faziam um esforço para imaginarem aquilo que podiam ter sido, aquilo que podiam ser, aquilo que nunca serão. Tinham vivido a idade das ilusões e tinham-nas guardado como se se tratasse de algum objecto de valor.
Por fim, abraçaram-se.
Não sabem dizer por quanto tempo, também o tempo não é importante para estas coisas, apenas o gesto.
As lágrimas pararam de correr e conseguiram, por fim, sorrir.
Voltaram a ser o que eram, nem que tivesse sido por um breve instante.