terça-feira, 31 de março de 2009

Morrer em Lisboa

Gosto da gente vareira
Aquela gente verdadeira
Que de manhã acorda com Lisboa
E percorre toda a Ribeira
Com uma cantiga na boca

Gosto da varina de anca vincada
Que vende pedaços de nada
A gente que já comprou tudo
Aquilo que a miséria pode comprar

Gosto de acordar com a gaivota
Que ninguém derrota por ter força,
Essa tal força de viver, essa fúria
Que nasce de quem quer voar...

Gosto do fado, fado das vielas
E das iscas com elas acompanhadas
Pelo vinho da tristeza que corre
Por todas as nossas pipas
Gosto da calçada à portuguesa
E daquela gente burguesa que
Se passeia pelo Chiado em tardes
Passadas na Brasileira com o Pessoa

Gosto de Lisboa.
Gosto dessa janela aberta
E destas praias que vejo
Desta varanda onde o Tejo
Não é mais que uma miragem

Gosto de seguir viagem,
De não parar, ir por aí acima
Madragoa, Alfama, Alto do Pina
E depois num salto parar
No Bairro Alto e descansar

Gosto da velha taberna bairrista
Onde qualquer fadista a horas mortas
Bate-se para as hortas e não pára
Se não ao alvorecer

E quando a morte me vier buscar
E decidir que seja a minha hora
Que eu esteja bem aprumado
Que morra comigo o fado
E que viva para sempre na memória.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Se Eu Adivinhasse Que Sem Ti

Se eu adivinhasse que sem ti
Faria o dia de palha arder
Secar o maior rio da vila
E por fim os teus sonhos prever

- Afundava todos os barcos, todos os navios
Todos os cais, todas as pontes
Todas as flores, serpentes e frutos
Os teus ciúmes todos os meus fados

Se eu adivinhasse que sem ti
Faria do mar pedras e sal
Abria as portas ao silêncio
Da planície branca de cal

- Se fosse verdade o que eu canto
Ancorava para sempre no teu país
Se adivinhasse que sem ti - porto seguro
Seria possivel ter um país.

Pedro Assis Coimbra

terça-feira, 24 de março de 2009

Suícidio

Largou tudo e foi para onde não o conheciam, foi para essa tal noite onde se escondem os mochos e onde não se ouve o mínimo barulho. Andou com cuidado para não ser ouvido, e teve sempre a atenção de olhar para trás, apenas para ver se alguém o seguia, nestas coisas nunca se sabe, há sempre alguém que nos vê a sair de algum lugar e que decide ir atrás de nós. Ninguém o seguiu e ele sentiu-se mais seguro, precisava de paz para levar o seu plano até ao fim. Ao encontrar uma pedra alta sentou-se nela e ficou a observar uma árvore que estava mesmo à sua frente, mirou-a de alto a baixo e sorriu ao pensar o que seria a sua vida se fosse um vulgar babuíno, que vida a sua...não tinha nada de seu nem nada de outro, era apenas um vazio e nada mais. Meteu a mão no bolso e procurou o objecto desejado, lá estava ele guardado, sem se mexer, como que respeitando o momento solene que ia acontecer dentro de instantes. Não se ouvia som algum, apenas o lento barulho da noite e algumas folhas que teimavam em arrastar pelo chão. Deciciu tirar o objecto do bolso e ficou a olhar para ele durante algum tempo, ficou a ver cada contorno, cada fissura, cada rasgo. Aproximou-o do braço e fez um corte, e outro corte, e outro corte, cortou-se até o sangue correr pelo seu braço como se fosse um rio a correr para lugar incerto, quanto mais sangue escorria mais ele se cortava e a certa altura até se riu, riu-se do que estava a fazer e do que estava a acontecer-lhe...sabia que a sua vida estava a desaparecer aos poucos pois sentiu-se um pouco tonto e perdido, começou a ver tudo andar à sua roda e perdeu a noção de tempo e lugar. Já nada lhe interessava, já nada lhe importava, queria apenas viver aquele momento apenas seu e morrer em paz no meio daquelas árvores. Queria ser engolido pela natureza e o seu desejo foi concebido. Mal se deitou no chão a terra abriu uma cova especialmente para si, foi Deus que a cavou.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Casa

Vou dizer adeus à casa onde talvez tenha nascido o que hoje sou. Não tenho pena do que deixo para trás, as memórias são minhas e essas vão comigo, passei algumas coisas por entre estas quatro paredes do meu quarto, momentos especiais e outros que prefiro esquecer (felizmente mais os especiais), não sei se noutro sítio poderei ter o que tive aqui, o crescimento de que ela foi testemunha. Aos poucos vou-me despedindo (já faltam tão poucos dias...), em um ano e meio o quanto eu vivi aqui, quanto tempo passei aqui dentro, com a cabeça à janela (às vezes empoleirado nela) a ver as horas a passar, apenas isso...a ver o tempo ir-se embora. Foi bom, fica aqui muita coisa escrita, muita coisa vivida, muitas noites perdidas, muitas tardes vividas, tanta tanta coisa...que afinal de contas é aquilo que nos forma e nos faz progredir. Não me esqueço do que aqui vivi (tal como nas casas anteriores...) e vai tudo comigo, fica a lembrança de um local especial que agora apenas poderei ver do comboio (se esta estação também podesse falar...), um pouco de mim fica neste lugar. Quanto a mim, continuo comigo...

Adeus à casa
Foi como um golpe de asa
Voei para longe daqui...
Deixei nas paredes
Um pouco de mim

Somos memória
E a nossa história
Nasce dos lugares
Onde inventámos a felicidade

Fica o sangue latente
Por entre quatro paredes
E uma janela aberta
Para essa praia deserta
Que todos procuramos

Fica tudo no mesmo lugar
Apenas eu tive de mudar
E aqui a vida continua
Sem mim...

sábado, 21 de março de 2009

Bomba-relógio

O teu amor, quando palpita
verdade seja dita
põe rastilho no meu peito

Trinta batidas num só beijo sem defeito

Feito taque o tique
o teu amor rebenta o dique
feito tique o taque
o teu amor passa ao ataque

Feito taque o tique
o teu amor rebenta o dique
feito tique o taque
eu à defesa, ela ao ataque

E toca e foge e toca e foge
é uma bomba-relógio

O teu amor quando palpita
verdade seja dita
faz-me atrasar os ponteiros
como a ostra esconde a pérola aos viveiros

Feito taque o tique
a pérola solta-se a pique
feito tique o taque
faz no coração um baque

Feito taque o tique
a pérola solta-se a pique
feito tique o taque
faz no corpo todo um baque

E toca e foge e toca e foge
é uma bomba-relógio.

Sérgio Godinho

sábado, 14 de março de 2009

Dia Estranho

Já sei que hoje vai ser um dia estranho
Não sei como entender pequenos nadas
O amor não dá para saber o tamanho
Nem quando nos faz ver coisas erradas

Já sei que hoje vai ser um dia longo
Atreves-me um adeus quase obrigado
Despedes-te à mercê dum só ditongo
Na evasiva questão dum ser zangado

Já sei que hoje vai ser um dia errado
Dos que se alongam sem nunca acabar
E a mágoa no meu peito magoado
Apaga-me o desejo de voltar

Porque é que à noite a sós cumpro o castigo
Que a pouco se resume o meu amor
Entre o querer e não querer baixinho digo
Apaga a luz do quarto por favor...

Jorge Fernando

quarta-feira, 11 de março de 2009

Sobre O Pé

Naquele Inverno ela dançou um tango na Argentina como se fosse Primavera e existissem guitarras suspensas nas nuvens. Ao longe ainda se ouvia a "Maria de Buenos Aires", mas o seu tango era outro...era aquele que se incendeia, aquele cuja voz se confunde com a da tempestade e sobrevoa todo o céu de um país. Não sabia que tinha agilidade nos pés, apenas o descobriu quando o rapaz de sobretudo se aproximou e começou por levantá-la do chão (nunca tinha descoberto a sincera alegria que é voar sobre um mar de nuvens quando lá em baixo, na terra, as pessoas olham para cima como se estivessem a assistir a um fenómeno). Nunca mais dançou como naquele dia e certamente que nunca mais irá dançar assim...

Houve um dia em que lhe cortaram os pés, mas não chorou.
Há dias assim...em que os pés não deviam sair da cama.


Sobre o pé
Bate o pé
A canção aqui de pé
A nascer e a morrer
Como se não fosse viver
E no meio disto tudo
A verdade é um muro
Que não se pode ver

Sobre o pé
Bate o pé
Um povo todo de pé
A assistir ao cair
Daquela rapariga a rir
Por sobre uma nuvem...

Sobre o pé
Bate o pé
Já nada é como é
O presente e o passado
Num futuro desencontrado
Sobre o pé
Bate o pé
Afinal, o que isto é?

Uma canção com fim
Guardado.

sábado, 7 de março de 2009

Amor Por Nós Os Dois

Não sei qual de nós dois é quem mais ama
Não sei mas vou deixar para depois
Dizer-te nos lençóis da minha cama
Que tenho amor para amar por nós os dois

Que importa se o silêncio às vezes grita
Teu nome na ausência que me dás
E a noite é uma ave negra, aflita
Sem saber o lugar onde tu estás

Na promessa do dia que há-de vir
Banhada em estrelas d'alva novos sóis
Hei-de vezes sem conta repetir
Que tenho amor para amar por nós os dois.

Mário Raínho

terça-feira, 3 de março de 2009

Ossos da Vida

Pelas veias do corpo abandonado
corre sangue.

Ninguém olha para o corpo,
passam ao lado e não ligam
ao sangue que por ele corre.

A indiferença que paira
pelos rostos de quem passa
mostra bem a normalidade
de que é vestida a ignorância.

Ainda não há bichos por
sobre o corpo...

Há quem pise o sangue
e não limpe os pés;
talvez o façam no
confortável tapete
que têm à porta de casa.

O odor ainda não incomoda
e talvez por isso há um
cão que se aproxima.

Os ossos da vida
nem para os cães servem...

domingo, 1 de março de 2009

Tango Ribeirinho

É à beira da ribeira
Que Lisboa abre os olhos
Quando acorda de manhã
À cabeça da peixeira
Há fruta do mar aos molhos
Que põe mais sal na manhã

É à beira da ribeira
Que os marujos vão curtir
Os restos da bebedeira
Que apanharam a sorrir

É à beira da ribeira
Que acorda a cidade inteira
Que apregoa a vendedeira
Que a gente gosta de ouvir

Este tango ribeirinho
Sabe a Tejo e sabe a vinho
Este tango da cidade
Tem navalhas de saudade
Tem punhais de solidão
A doer devagarinho
Dentro do meu coração

Este tango ribeirinho
Tem fragatas de carinho
Tem andorinhas nas telhas
E cravos de pôr na orelha
Sardinheiras encarnadas
Junto às toalhas de linho
Penduradas nas sacadas
Este tango ribeirinho

É à beira da ribeira
Que há canalhas e há malandros
E mulheres de meia porta
Mas à beira da ribeira
Há cabazes de morangos
Que ainda nos sabem a horta

É à beira da ribeira
Que vai esperar o estivador
Uma manhã toda inteira
Que lhe comprem o suor

É à beira da ribeira
Que um ramo de erva cidreira
Traz a ternura que cheira
A Lisboa, meu amor.

José Carlos Ary dos Santos

Ai Amor, Que Amor O Teu

Ai amor, que amor o teu
Que já tanto me doeu
De ficar e de fugir
Ai amor, amor parado
Que não estás em nenhum lado
Onde eu a possa despir

Ai amor, que desespero!
Pois só estás quando te espero
Num sítio onde não és nada
Ai amor de casa triste
Parede que não assiste
Aos gritos da madrugada

Ai amor, amor sem rosto
Aberto no meu desgosto
Com sombras no meu caminho
Vem dar-te à curva do mar
Que as ondas deste lugar
Precisam do teu carinho.

Vasco de Lima Couto

Cláudio

Está dentro de mim a crueldade, apenas através dela eu consigo sentir isso a que alguns chamam de amor. Amo aquela mulher como nunca mais na minha vida irei amar seja o que for, ela faz parte de mim, faz parte daquilo que eu sou, desde sempre; nos primeiros dias em que ela andava por aqui, recém casada com o meu irmão, eu repetia para mim mesmo o porquê de não a ter conhecido antes dele, mas a sorte não me estava destinada, mas sim a ele, ele era melhor guerreiro, tinha um porte altivo, uma figura de respeito perante todos, além de ter uma grande dose de charme, mas eu consegui superá-lo...sempre fui mais astuto, sempre andei dois passos à frente dele, sempre vi aquilo que ele não queria ver e comecei-me a aproximar dela, a insinuar-me, até a roçar-lhe o pé por debaixo da mesa em banquetes repletos de embaixadores e figuras nobres. Fui-a ganhando aos poucos, enquanto ele a ia perdendo, sem se dar conta...apenas fiquei com uma pedra no sapato - o filho. Aquele maldito rebento que tinha de nascer à força, já em pequeno deu graves pequenos à mãe pois decidiu nascer antes do tempo, sempre antes do tempo, nunca deixando ninguém em paz...sim, eu achava-lhe alguma graça quando ele era uma criança, era vivo, esperto, astuto (nada parecido com o pai) e pensei que até poderia "moldá-lo" convenientemente para vir a ser um aliado meu; infelizmente sempre teve uma paixão cega pelo pai e por aquilo que o pai era, sempre o viu como um semi-deus e nunca me prestou grande atenção, mas eu roubei-lhe aquilo de que ele mais gostava acima do pai - a mãe. Gertrudes é minha! Minha e apenas minha! E que ninguém me diga o contrário. Eu lutei por aquela mulher, e ao mesmo tempo que por ela lutava, lutava por aquilo a que eu tinha direito: a coroa. Claro que tinha direito! Sempre fui mais esperto do que o meu irmão, sempre consegui ver a situação política com bastante mais pormenor do que ele; sempre foi um brutamontes que ao mínimo problema declarava logo guerra, nunca soube o que é fazer diplomacia, o que é falar com as pessoas, o que é ser Inteligente. Não o censuro, teve a sua sorte e eu fiquei no seu lugar, como devia de ser. Mas deixou perto de mim o veneno mais perigoso que eu alguma vez conheci, um que não se entranha no corpo mas que vai corroendo a alma aos poucos, uma doença que me mata lentamente e que me faz estar sempre à espreita: Hamlet.
Que Deus tenha piedade de mim.