terça-feira, 27 de abril de 2010

De Sião a Babilónia

Fechei as mãos sobre o rosto, respirei fundo e voltei a olhar à minha volta. Não podia acreditar que tudo estava diferente. Às vezes voltamos aos sítios com a ténue esperança de tudo se manter igual, tal como deixámos, mas isso raramente acontece. A natureza segue o seu caminho, tem os seus caprichos, e mete a mão naquilo que julgávamos nosso e intransponível. Quem passou os portões da minha saudade? Quem veio arrancar as flores do meu deserto? Tudo morreu onde outrora existia vida, as fontes secaram, e contudo, ainda ontem à noite chovia. Estranho o correr deste rio, desta foz, deste mar que busca um oceano, sem nunca conseguir encontrá-lo. Quem chora as minhas lágrimas? Quem secou o meu pranto? Quem me fez morrer por dentro para poder sorrir por fora? Não existem bandeiras neste país, nem símbolos de alegrias que ficaram por viver. Quem ultrapassou fronteiras que eu deixei bem definidas? Quem ultrapassa os desertos da solidão? Nesta floresta, feita de areia, nada mais resta, não há lembranças por dentro do esquecimento. E há uma música, lá ao fundo...um hino, talvez...uma memória que canta? Que som pode um rio fazer? Qual o som das nossas ânsias, do nosso desassossego? Qual o som da nossa vontade? A liberdade chama-me, diz-me para continuar em frente, mas a areia prende os meus pés a este sítio. Não existem pedras nos remorsos, apenas lembranças pesadas, mas não o peso das pedras, é algo que nos abate sem nos deixar cair.
Sôbolos rios que vão de Sião a Babilónia...
morri junto ao monte
onde já não restava o sopro
da vida.

morri desfeito pelas marés,
pelas intempéries que se
revoltaram contra o meu
corpo

náufrago de mim mesmo,
barco á deriva e sem destino

sábado, 24 de abril de 2010

O Nome Que Tu Me Davas

O nome que tu me davas
Quando à noite me chamavas
Tinha o dom de uma oração
Não tinha som nem palavras
Mas quando tu me chamavas
Nunca te disse que não

Já o vi escrito na lua
Nas pedras da minha rua
E nas candeias do céu
O nome que tu me davas
Quando em silêncio cantavas
Era mais teu do que meu

Não era dor, nem bondade,
Amor, fado ou saudade,
Nem a lágrima perdida
O nome que tu me davas
Quando à noite me chamavas
Era toda a minha vida.

João Monge para a voz de
Joana Amendoeira

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Fugi para uma casca de ovo e não consigo sair.
Estou cheio de gema por tudo quanto é lado.
A minha mãe vai chatear-se comigo, sujei-me todo com a clara.
Ainda vou molhar o bico na parte cor-de-laranja.
Estou perdido numa casca de ovo.
Quem é que terá a bondade de não fazer uma omelete?

sábado, 17 de abril de 2010

Pede À Saudade

Pedi tão pouco
tudo te dei
És o meu fado, sei que fui louco
Porque te amei, sem ser amado
Quando a verdade se atravessar
No teu caminho, pede à saudade
P'ra te lembrar, o meu carinho

Pede à saudade, eu sei que vais ter saudade
Quando um dia a solidão, te recordar o passado
E se em verdade, precisares dum ombro amigo
Sabes que estarei contigo, basta pedires à saudade

Podes sorrir
fazer alarde
Pouco m'importa, sei que hás-de vir
Mais cedo ou tarde, bater-me à porta
Se é que preferes, que seja assim
Ri à vontade, mas se quiseres saber de mim
Pede à saudade.

Letra de António Rocha e
música de Manuel Mendes para a
voz de Gonçalo Salgueiro

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Recordações

rasguei o vestido e pu-lo em cima da mesa para veres como ele ficou.
parti o espelho que era da tua avó.
a jarra foi contra o chão e deixei os cacos espalhados.
cortei-me no vidro da janela.
cortei dois cabelos que deixei na tua mesa de cabeceira.
rasguei as páginas daquele livro que nunca chegarás a ler.
no fim de tudo...
deitei fogo à tua casa para não ter de me queimar a mim.

terça-feira, 13 de abril de 2010

O Amor Não Se Desata

Enquanto, perverso, rias
Tu fizeste o que podias
Para eu deixar de te amar:
Tornaste as noites vazias
E, não fosse eu querer esperar,
Anoiteceste os meus dias.

Inventaste mil pecados
Que eu não tinha cometido
(mil mentiras sem sentido);
Desmanchaste os meus bordados
E retalhaste o vestido
Com que eu me tinha casado

Como bem sabes agora
(e hás-de sentir vida fora),
Tanto mal era escusado.
Se te querias ir embora
Não ganhaste com a demora
Senão partires mais culpado

Não nego que me doeu,
Mas juro que, até à data,
A dor de nada valeu:
O amor não se desata -
E a tua paixão morreu,
Mas a minha não se mata.

Maria do Rosário Pedreira

domingo, 11 de abril de 2010

O Amor (sem se saber bem porquê)

O Amor
é uma coisa muito boa
que bate numa pessoa
sem se saber bem porquê

É estranho
às vezes fica bem escondido
outras é doido varrido
sem se saber bem porquê

Então
o mundo fica mais bonito
a cada um seu favorito
e eu bem perto de ti

Paixão
é uma coisa assim bem forte
que nos faz perder o norte
até chega a magoar

E é estranho
tudo perde o seu sentido
vira fruto proíbido
sem se saber bem porquê

E então
o mundo fica mais ansioso
a cada um seu amoroso
e eu bem perto de ti.

TIM
(na voz de Celeste Rodrigues e Tim)

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Tacones Lejanos

Pôs os saltos altos e retocou a maquilhagem.
Saiu à rua.
Ninguém olhava para ela, era como se estivesse invisível.
Nem um piropo ouviu.
Subiu um pouco a saia de modo a poder mostrar um pouco mais da perna.
O desejo estava morto no seu corpo.
Já não suscitava o mínimo fulgor em ninguém.
Estava a apodrecer e só agora se dava conta disso.
Pegou no seu espelho de mão e a cara que viu não era a sua.
Os seus olhos estavam pálidos, cheios da fome do seu corpo.
Não podia chorar no meio da rua, fez pressão sobre os lábios.
Começou a sentir uma comichão no braço direito.
O braço direito começou a ficar cada vez mais dormente.
Sentiu uma tontura e perdeu a noção de espaço.
Deixou-se cair no chão.
Abriu os olhos...
Não viu ninguém, não sabia sequer onde estava.
Olhou para todos os lados e então reparou que tinha pessoas a seu lado, mas só de passagem.
Ninguém tinha parado para a ajudar.
"Coitada, nesta idade e ainda na prostituição...é preciso ganhar a vida..."
Teve vergonha de si.
Deve ter corado.
Prostituta?
A beleza nunca foi sua cliente e a tristeza nem pagou o que lhe devia.
A solidão é um chulo que a prostituição arranjou para se esconder.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Quatro anos depois voltei a sentir a necessidade de voltar à escrita para teatro. Veio-me um título à cabeça e depois uma história à volta daquelas cinco palavras.
Há quatro anos escrevi uma pequena farsa chamada "Me Engana Que Eu Gosto", que vim a fazer, juntamente com quatro pessoas que tinham estado comigo num curso na Casa do Artista. Era uma farsa de traços grossos, sem nada que enganar, pretendia ser apenas aquilo que era. Amadureci durante este tempo e agora jã não é uma comédia aquilo que a minha cabeça organiza (que não me aconteça como ao Almodóvar, que a partir do momento em que pôs a comédia de lado perdeu algum do seu melhor encanto). Escrevo agora sobre relações, sobre dois casais desavindos. Sim, deixei a comédia para poder escrever sobre sentimentos, sobre as paixões e o seu final, sobre encontros e desencontros. As influências estão todas lá, a vida dividida nos seus dois géneros: tragédia e comédia (mas sempre a cair para o lado da tragédia). Fala-se do Peso e da Leveza (traços de Kundera). Fala-se do peso da felicidade e da leveza da tristeza...
Nao está pronta, está a construir-se. Quatro anos depois ainda sou capaz de me aventurar a escrever para teatro.
É bom estar de volta.

sábado, 3 de abril de 2010

O Miúdo Que Pregava Pregos Numa Tábua

A minha admiração por Manuel Alegre é sobejamente conhecida, e devido a isso, senti a necessidade de vir aqui escrever sobre essa novela magnífica que é "O Miúdo Que Pregava Pregos Numa Tábua". Comprei-o hoje e li-o de um fôlego só durante a tarde, também sei reconhecer que o livro não é muito extenso, mas quantas obras de cento e dez páginas nos conseguem cativar ao ponto de não as conseguirmos largar?
A prosa de Manuel Alegre é como a sua poesia, não tem uma medida exacta. A métrica é livre e pouco extensa, resume-se ao essencial, ao eterno pulsar da terra, à respiração que a terra transparece. Não há artefícios na sua escrita, não há a intenção de fazer grande literatura, há memórias e vivências que têm uma necessida pungente de passar para o papel. No jornal PÚBLICO, de ontem, vinha uma crítica arrasadora ao livro e isso entristece-me. E entristece-me por um motivo muito simples: porque procuram aquilo que a sua escrita não têm nem nunca terá, os tais subterfúgios onde se escondem os grandes romances mas onde as simples novelas não conseguem chegar, porque nem têm esse objectivo.
A escrita, tanto em romance como em novela, de Manuel Alegre é repleta das suas memórias. Tal como a sua poesia, é muito pessoal, tudo aquilo é escrito com a força de quem já viveu com muitas grilhetas presas aos pés. "Cão Como Nós" continua a ser o seu grande apogeu em prosa, porque a simplicidade é levada ao limite, nada mais existe do que os afectos, do que a memória dos afectos. Mas também de afectos é feita esta sua nova novela, há memórias de Sophia e de Torga, da sua infância, dos primeiros sintomas da sua vida sexual, existe um despojar da alma de Manuel Alegre que até hoje apenas podia ter sido sentido na sua poesia. E claro que há a cadência...a música das palavras, esse compasso que lhe está nos dedos e que ele transborda para a folha em branco como ninguém.
Alegre é um poeta de excepção. "Conheci-o" através de Amália Rodrigues e depois pela voz de João Braga e Adriano Correia de Oliveira. Oulman compreendeu como ninguém esse baluarte da poesia portuguesa (na minha opinião) que é o "Quatro Facas", deu uma certa ligeireza a "Meu Amor é Marinheiro" pois a mensagem já era bastante nítida e ainda desbravou esse poema difícil de cantar que tem por nome apenas uma palavra "Abril. Adriano estava mais perto das raízes de Alegre, traz as suas palavras para músicas feitas por ele próprio e eleva-o por cima das águas do Mondego. E depois há a grande amizade com João Braga (o fado consegue unir as almas mais desavindas, pois politicamente, estão os dois em campos diferentes) que faz com que composições como "Adriano" e "Fado Fado" ressoem ainda em mim (o eterno "nem má sorte / nem má sina / nem choradinho trinado / o destino só destina / quem já nasce conformado").
E por último aquela que ficará para a história como um dos grandes poemas de resistência a uma ditadura fascista que teimava em não deixar este país respirar: "Trova do Vento que Passa" (talvez hoje ainda se devesse cantar alguns versos de vez em quando...só para avivar algumas almas mais esquecidas...).
Falando da sua poesia fala-se também do seu trabalho político, mas por aí não gostaria de me alongar, correndo o risco de este texto cair por caminhos mais dados a discussão, que ainda que fosse uma coisa de salutar, não é muito próprio para este camarim...
Ao falar da sua obra fala-se do ser humano por detrás dela, das suas fraquezas e das suas forças, dos seus redutos e das suas fortalezas e isso mostra-nos o seu carácter, não sendo preciso louvar o seu trabalho antes da revolução e, principalmente, o importante papel que veio a desempenhar no Partido Solialista.
Há restos de Nambuangongo por entre este texto, as armas é que ficaram ao abrigo do esquecimento...

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Menopausa

Ai minha senhora, minha senhora!
Se eu não a tivesse interrompido nesse seu andar um tanto ou quanto cambaleante já tava aqui morta no chão
Ai tava! Juro-lhe que tava!
Então não tava?
Com certeza que tava...porque da maneira cu outro estava ali a senhora jáqui não tava!
Mas isto é a verdade verdadinha, hã?
Tão certo comeuser o Chico sem pé.
Não olhe pra baixo, minha senhora, quinté sassusta!
Não tenho pé não senhor, é má formação de natureza.
Por isso é que nim fui à escola, seu já nasci mal formado paquê insistir?
Mas isto é comeu-lhe digo, mais uns segundinhos e a sôra tava aqui mortinha, mas é que estiradinha no chão.
A sorte é que eu vejo bem ao perto e vi logo ca senhora vinha por aí fora toda lançada, ai vi vi, atão não vi?
E digo-lhe mais...parei-a cu todo o gosto.
A senhora pá idade que já deve ter intétá muito bem, tenho a dizer-lhe.
Não lhe dava mais de oitenta.
Tem menos? Ah tem...
Olhe que bom, olhe que bom para si...si senhora.
Então com essa idade e com essa fuça imagino que foi muita a malandrice, não?
Cê tem cara de quem foi malandra, e se calhar ainda gosta de malandrar, hã?
Uma brincadeirinha de vez em quando...
Já tevo quê?
O meo na pausa? Oh minha senhora, isso é chamar o homem da televisão e...
Menopausa?
Eh lá...e isso é chato?
Olhe sé chato eu posso ajudar ca minha Francisca também já teve, quela andava metida cuns pescadores todos ranhosos da sardinha e enfiaram-lhe lá essas coisas na dita cuja...
Ah! Habitou-se...
Pois...a gente habitua-se a tudo na vida, nao é?
Olhe, eu vou ali...vou ali...vou ali, e já venho!