quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Estátua de Pedra

Grita aos meus ouvidos
e provoca em mim a surdez
que há tanto tempo eu espero

Não tenhas falsas penas
nem provoques em mim o nojo
que é ver um corpo deitado
pela proa de qualquer navio

Não me olhes de lado!
Passa de soslaio como
qualquer cão calado

Não mordas na mão
que um dia ainda te pode
dar de comer; pois a única
certeza que temos é que amanhã
ainda vamos cá estar todos

Não uives à lua,
deixa ela uivar por ti
e levar-te os ouvidos
a sons ensurdecedores, como
se estivesses numa daquelas
salas fechadas em que agora
tudo se passa

Não me prendas os pulsos!
Ninguém pode parar o sangue
que me corre nas veias e ninguém,
senão eu, sabe onde ele pode ir

Que vontade de ser estátua de pedra...
ficar parado o dia todo e à tarde
virem pombos pousarem-me nos ombros
enquanto canto versos já esquecidos

Serei espantalho em seara alheia
os corvos hão-de comer-me os olhos
um tractor há-de pisar-me os pés
e no fim de tudo...pó e mais nada.

Pergunta-me

Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser

se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer.

Mia Couto

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Apenas O Meu Povo

Quem disse que morreu a madrugada?
Quem disse que esta noite foi perdida?
Quem pôs na minha alma magoada
As palavras mais tristes que há na vida?

Quem me disse saudade em vez de amor?
Quem me disse tristeza em vez de esperança?
Quem me lançou a pedra do terror?
Matando o cantador e a criança?

Quem fez da minha espera desespero
Quem fez da minha sede temperança
Quem negando tudo quanto eu quero
Da minha tempestade fez bonança

Quem amainou os ventos do meu corpo
E saciou o mar da minha fome
Quem foi que me venceu depois de morta
E soletrou as letras do meu nome?

Quem foi que me fez serva sem servir
Quem foi que me fez escrava sem querer
Quem foi que disse que eu podia ir
Tão longe quanto nós podemos ser

Apenas quem me viu calada e triste
E despertou em mim um mundo novo
Apenas a esperança que resiste
Apenas o meu sangue...apenas o meu povo!

José Carlos Ary dos Santos para Simone de Oliveira

Praia de Outono

Praia de Outono desfigurada
Pela mordaça das marés vivas
Praia de Outono transfigurada
Pela ameaça de alguém partir

Aquele amor sob o furor do mar
Já começou a declinar.
Tenho medo!
Nem eu sei de quê...a noite vem tão cedo
Praia de Outono...ninguém nos vê

Em ti a bruma
Em mim ciúme
Vão-nos velando
A nós como as marés

Não se vislumbra
Esperança nenhuma
De alguém saber
Quem sou nem quem tu és.

David Mourão Ferreira

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Não Me Procures

Partiste em dois a minha rua;
hoje eu só consigo andar
num dos lados da estrada
e não tenho interesse em saber
o que se passa do outro lado.

O que foi feito das memórias?
Não tenho lembrança de nada
e apenas me lembro de um sorriso triste
à porta do Outono que demorava em abrir.

Bati quantas vezes nessa porta?
Mas a árvore teimava em não dar fruto
e havia uma teimosia própria da idade.
Havia a inconsequência...
o pensar e não agir.

O que fizemos da juventude?
Hoje o nosso sangue é feito
do vinho mais maduro e não
corre pelas nossas veias mas
sim numa cabeça que desafina.

Como se a cabeça fosse uma guitarra
que esqueceu todas as notas e não
sabe nenhuma escala...a nossa escala.

O passado é letra morta
e não há pena que escreva
novas palavras e novas frases;
somos feitos de vida quando
a morte já nos rói os ossos.

Engoliste aquilo que eu tinha
de melhor: a minha paz.
Fizeste de mim um poema de guerra
que eu nunca quis ser e que sempre
desprezei.

Espero que estejas feliz com o teu
feito. Quanto a mim vou seguir
sempre em frente na minha estrada
e talvez encontre um atalho para longe
muito longe...

Não me procures;
ando depressa.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Dia da Criação

O homem dançou à chuva e distribuíu dinheiro por cada um que por ele passava, não tinha serpentinas, se as tivesse também as teria lançado ao ar e ficaria a vê-las cair algures pelo chão. Era o seu dia de festa, era um dia que apenas podia ser dele pois tinha o mundo na mão, e dançava ao som de um samba que apenas ele ouvia, tocado dentro da sua cabeça e sem nunca ter fim, uma canção interminável (tal como a sua vida...). Lançava as mãos pelo ar à espera que o céu descesse para o agarrar pelo ventre e o levasse até à nuvem mais próxima, a Avenida era dele e se não fosse o dinheiro que distribuía a rodos nem iria reparar nas pessoas à sua volta (nem reparou nas suas caras surpreendidas ao verem um homem praticamente nu a dançar naquele dia de chuva). Ninguém podia compreender a sua felicidade, nem porque dançava, nem porque não conseguia parar, era um sentimento que só ele podia ter e compreender, que o deixassem em paz e ele também não iria importunar ninguém. Aquele era o primeiro dia do mundo, o Dia da Criação, o dia em que ele tinha decidido nascer; teria de mudar o seu bilhete de identidade pois só a partir daquela hora ele sentiu-se vivo e o que estava para trás era um estado embrionário do que ele viria a ser e nada mais...será que iam acreditar nesta história numa vulgar casa do cidadão? Talvez não, mas também não importava. Apenas ele era importante e o seu mundo só tinha um cidadão: ele mesmo. Não é uma questão de egocentrismo, apenas de paz interior, aquela coisa que não se explica mas de vez em quando acontece (nem tinha rezado para pedir esta paz de espírito, talvez Deus existisse mesmo e tivesse decidido dar-lhe uma prenda naquele dia).
No dia em que foi feliz.

As Palavras Que Eu Cantei

Quanto caminho cantado que eu andei
Quanta palavra secreta te inventei
Quando eu parti transportava
Uma angústia que não sei
E não era mais que as palavras que eu cantei

A palavra amor pôs-me os olhos rasos de água
A palavra ausência pôs-me as mãos cheias de mágoa
E quando as cantei eu vivi tudo quanto pressenti
Dentro das palavras que eu cantei mas não escrevi

A palavra dor que era minha foi dos outros
Soltei as palavras como asas, como potros
Arranquei de mim e cantei, cantei até ao fim
A canção de amar, de cantar por ser assim...

Foi por ti que eu lutei
Foi por ti que eu parti
Foi por ti que eu calei
E morri!

Foi por ti que eu voltei
Foi por ti que eu nasci
A canção que eu conquistei
Porque a sofri!

Canção é sol, é água, é fúria, é vento
Canção é mar do sal do sofrimento
E por isso eu sou quando canto
A lança que lancei
Como se vingasse as palavras que eu cantei.

José Carlos Ary dos Santos

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Caminho Para Ítaca

Procuro o caminho para Ítaca
E não percebo que um país
Apenas vive nas veias da sua gente

Não posso pertencer a um
pedaço de terra que nunca
me foi dado a conhecer
(apenas em clara utopia...)

Pertenço a países por fazer
Que talvez existam no sonho
Exangue que nos controla

Procuro Ítaca e não a encontro
Talvez não exista ou se esconda
Onde as pedras são apenas erva
E os animais carreiros de fogo.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Ulisses e Penélope

As palavras que nunca te direi não são para aqui chamadas. Essas não importam, ficam no sítio delas, no silêncio absoluto, nesses instantes em que o tempo sabe ser ininito e nada mais. Quem me dera ser infinito...não acabar em carne, ser muito mais para além disto, ser o universo que engloba o meu ser e põe em seus braços a natureza. Gostava de gritar de vez em quando, dizer umas verdades à terra e depois cuspir nela as sementes que em mim nascessem, talvez que dessem fruto já que eu apenas sou o vegetal que encontrou em mim um arado. Há coisas que nunca vou escrever, tenho a certeza disso, as verdadeiras; e talvez...talvez por momentos as tenha escrito, num desses momentos em que nos julgamos superiores a tudo isto e capazes de escrever as frases perfeitas, quando parece que os nossos dedos são feitos de linhas e que nas nossas mãos está o poder divino de Deus; somos apenas feitos de matéria e é triste pensar que não conseguimos ser mais que um corpo com pele agarrado...


Ao longe ouvem-se barcos
E há navios a partir para Ítaca
Nenhum me leva no seu porão
Apenas me deixa nesta condição
De ser Ulisses sem encontrar repouso

Sei que existe essa Penélope
Que tece as meias do desespero
E há terras para além do meu olhar;
Acredito no doce embalo que é o marulhar
Das ondas quando morrem na praia.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Arte de Representar...

Porquê esta vontade de fugir para aquilo que não sou (ou que não penso ser)? Porquê esta vontade de procurar aquilo que talvez já tenha encontrado? O essencial mantêm-se inalterável, a base mantêm-se debaixo dos meus pés, os meus sonhos são os mesmos...fazer vidas para além da minha vida, dar algo maior a tudo isto, fazer de mim algo maior que se possa mostrar em cada palavra, em cada frase. Não preciso de um projector mas apenas de um banco onde me deixem sentar e falar sem restrições, durante o tempo que eu quiser, e preciso de alguém para me ouvir, de alguém que beba as minhas palavras em taças bem cheias e que no final brinde comigo. Quero apenas aquilo que os outros também querem mas mais, quero mais, sempre mais...não sei pedir menos quando a minha mão ainda está aberta a receber tanta coisa. Quero agarrar no palco e fazer dele o meu fantoche, um sítio onde possa manobrá-lo á minha vontade, onde as palavras ditas mais do que minhas sejam de todos e quero ter o doce sabor de olhar para alguém no momento de uma tirada final e ver que uma lágrima lhe cai pela cara, não é a minha soberba a gritar é apenas o afago que preciso de receber; e no final talvez pensem bem de mim e cheguem à conclusão que dei o meu melhor por uma coisa que à partida nem seria fácil, mas que durante curtos momentos me entreguei aquilo que acredito acima de tudo. Escolhi a arte de representar porque é aquela em que o ser humano atinge o sublime, em que ele consegue ser único, durante aquele curto espaço de tempo da representação os olhos estão apenas em mim e o mundo parou para me dar passagem...sim, agora é a minha soberba a falar e talvez até o meu egoísmo...procuro ser actor, não um ser perfeito.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

A Utilidade das Mãos

Não tenho vontade de prender nada na minha mão, nasci para a ter livre tal como eu, aberta a tudo aquilo que faça sentido estar nela e apenas fechá-la quando algo me está a escapar. Não gosto da sensação de alguma coisa me estar a cair pelos dedos, tenho logo um forte impulso de agarrá-la e tentar mantê-la durante tempo incerto, embora isso nem sempre seja o justo. As mãos não foram feitas para estarem agrilhoadas, são pequenos compêndios de sonhos, é delas que nasce o mundo e é onde se constrói aquilo que é realmente essencial...e banal, até. Eu explico-me com as mãos, não as consigo ter junto ao corpo como se fossem uma coisa morta que para ali está, não! São fundamentais em mim, explicam aquilo que eu não sei dizer, o mínimo gesto pode querer dizer tanto e apenas não ter palavras para se explicar...tudo isto é estranho mas tão verdadeiro como a vida fazer sentido. Não sei que grande utilidade têm as mãos do mundo mas sei que as minhas vão para onde eu quero e fazem aquilo que me apetecer, é como eu faço com a minha vida...