segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Stripper

Para lhe dizer a verdade a minha filha anda na vida, na má vida, está a perceber? Dorme com uns, vai com outros, passeia ainda com alguns e não lhes dá nada...olhe, eu já não sei que para mim estas histórias fazem-me muita confusão. O que mais me custa é ela não ter um emprego, andar neste corre corre de homem para homem e...você percebe, isto não é uma vida normal para ninguém! Quando eu cá não estiver o que é que ela vai fazer da sua vida? Não vai ter ninguém para a ajudar, eu bem vejo como ela, por vezes, anda apertada de dinheiro, quando eu me for ninguém lhe poderá valer, terá de se safar sozinha e não sei se vai aguentar-se, ela não sabe fazer nada, nunca trabalhou na vida! O seu corpo vai envelhecer, e ela não percebe isso, ela não percebe que não pode passar a vida inteira a despir-se todas as noites, porque chegará uma noite em que não terá ninguém a olhar para ela, apenas caras que se viram para o lado. Nenhum de nós consegue manter a juventude, ninguém consegue eternizar-se, nem as estrelas de cinema, olhe como elas envelhecem e vão desaparecendo aos poucos, a maioria. É muito triste acabarmos as nossas vidas sozinhas, eu só queria que ela encontrasse alguém, mas alguém que gostasse dela, que puxasse por aquilo que ela tem de melhor, fizesse dela o que eu nunca consegui fazer, alguém...alguém digno, percebe? Longe de mim não amar a minha filha, amo com todas as minhas forças, saiu de mim, vou amá-la para sempre, percebe? Mas queria vê-la com um futuro assegurado, com alguém ao lado. Eu bem sei o que foi a minha vida e não queria que a minha filha passasse pelo que eu fui obrigada a passar, muitas dificuldades me apareceram ao longo dos anos, e não as desejo a ninguém! Carregar uma filha aos braços, sozinha, sem ajudas fosse de quem fosse, sem um familiar a quem pedir auxílio, você nem imagina o quão complicado foi dar-lhe vida, retirei vida a mim para a doar à minha filha, e não me arrependo, não! Mas queria que ela seguisse um rumo diferente, queria...queria netos. Queria que o meu sangue continuasse a correr por outros corpos, queria que tudo não acabasse uma geração a seguir à minha, queria poder brincar outra vez, queria ter o tempo que nunca tive para brincar. Nunca fui muito de sorrir, para dizer a verdade também sempre tive uns dentes feios e vergonha de os mostrar, mas por vezes queria soltar um riso sem receios que alguém me esteja a olhar para a boca. Queria sentir a felicidade, por um momento que fosse, apenas sentir-lhe o gosto, nem que fosse por um momento...ah, já acabou o nosso tempo, não é? Pois...para a semana eu volto, claro...quarenta euros, já sei. Já não tenho o meu corpo à venda, sabe? Já ninguém me compra, estou apenas à espera que os bichos me comam...

Fado Da Triste Stripper

Unhas grandes e de vermelho pintadas
Um cigarro sem ter filtro, a esfumar
Na TV duas crianças raptadas
E o inspector, que nada tem a declarar

O seu peito arredondado, quase emerge
À revelia da blusa, que o acolhe
O decote sinuoso não protege
O erege recurvar para quem o olha

Há baton a mais naqueles lábios ternos
Que na chávena de café, ficam marcados
Os joelhos que se cruzam, são infernos
Para quem espera ainda vê-los descruzados

Em Belgrado estão os pais, num prédio antigo
Manda cartas de saudade e algum dinheiro
Está a aprender o português com um amigo
A Dolores, que é um traveste brasileiro

Faz do strip, a sua arte e o seu brilhar
Ao desejo dos olhares mostra desdém
Despe a roupa, hábil jogo de encantar
Dá-se a todos, mas não a dá a ninguém

Entre o rimel e as sombras sobre as celhas
Nos seus olhos há um luto e, certamente,
Suas formas hão-de um dia estar mais velhas
Quando a vida a for despindo cruelmente.

Jorge Fernando

Lamento Sem Abrigo

Quando a noite promete lançar-me na senda do frio
Quando a chuva se atreve no rosto gelado e cansado
E a névoa da montra reflecte meu olhar vazio
Porque a olho e não vejo senão o rosto do pecado

Quando a calça molhada pela água que o vento me atira
E o corpo reclama a atenção que o pensamento nega
É que eu sinto que às vezes a alma de mim se retira
E suspensa só espera um sinal para a última entrega

Quando o asfalto molhado recusa o descanso breve
E o cansaço me toma nos braços das sombras que assomem
A criança que fui volta a mim, e os sonhos que teve
São a voz do menino que pede: não queiras ser homem

Quando a angústia gastar o meu tempo e a minha coragem
De não querer nem sequer resistir ao caminho traçado
Não há chuva, nem vento, nem frio que me impeça a viagem
E eu serei apenas a lembrança de um triste pecado.

Jorge Fernando

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O Desespero

Olha filha, trago-te aqui o teu vestido de noiva, que é uma beleza hã! O senhor Jorge teve a escolher o melhorzinho que lá tinha para ti, até nem está muito sujo portantos vê lá bem o cu homem teve de procurar, não é? É que é memo lindo pá...é assim é prós castanhos, mas também não se pode estar à espera duma cor muita linda duma coisa que antes de ti teve batatas lá dentro...sim, batatas, filha!...Oh, miúda!! Tu nã sabes o que são batatas?...Oh, filha, o qué que tu queres, pá? Gorda como tás só te podia arranjar um saquinho de batatas, e olha, muito simpático já foi o homem que arranjou-te aqui umas mangas à maneira, olha para isto, parece feito pela outra que tem o nome do ditador...quem? És mesmo insculta pá!! A Mama Salazar, então não sabes quem é?...Ana? Ah...pois, se calhar é ana e não mama...bem, se ela mama ou não mama também é lá com ela e ninguém tem nada a ver com isso. Mas agora o que interessa é o teu vestido, diz lá se não é bonito...oh, filha, a gente põe uns laçarotes aqui de lado e isto até passa por bonito, a mãezinha vai à dona Fátima e põe-te aqui uns laços porreiros, assim a puxar prós vermelhos...vermelho e castanho não fica bem? Ai, tu és mesmo atrasadinha às vezes, não és? Então há lá coisa mais na moda que misturar os vermelhos e os castanhos?...Oh, mulher, prontos! A gente mete uns laços pretos e assim já tens fato para funerais e tudo...olha, não digas isso porque a tua tia Crementina tá mais para lá do que para cá, tás a ouvir? Ela não está nada bem, mas também aquilo é de misturar a coca com o red bulla...a coca, sim, não sabes que ela gosta de coca?...Qual coca? Mas tu hoje tás mais parva que nos outros dias, olha que hoje estás a esforçar-te, então não se está a ver que é aquela coca peganhenta?...Peganhenta, sim, aquilo não cola, não é coca-cola? Então se cola é porque é peganhenta!!! Tu não me enerves pá, daqui a bocado casas-te só com uma fita a tapar-te as partes baixas e prontos...eu tou lá para estes nervos, eu que sou uma mulher doente ainda te ofereço um vestidinho qué lindo, pá! E não digas que não é que dá-me já aqui uma parapelegia no rim, não digas que não é!...Eu também gosto muito de ti filha, a sério que gosto...dá cá um beijinho, vá...prontos...então...oh!!...larga isso!!...Não metas isso na boca Esmeralda!!...Larga a porra do chocolate!...Oh minha ganda lontra, tu larga-me isso!!...Raios ta partam se não hás-de ficar um leitão a lambuzar-te dessa maneira...mas que mal fiz eu a Deus??

Eléctrico Amarelo

Sentei-me ao lado do tempo
num eléctrico amarelo
senti-me um rei em viagem
sobre rodas num castelo

Da janela os jardins
eram Legos fabulosos
Com faunos e arlequins
e arcanjos preguiçosos

Uma voz disse cordata
"O bilhete por favor"
Pareceu-me que era de prata
o alicate do revisor

Depois tudo se sumia
ao chegar ao meu destino
o passageiro crescia
e deixava de ser menino

Não vi o tempo ao meu lado
nem dei por ele descer
ia no passeio apressado
rumo áquilo que vou ser

Lá vai o eléctrico lá vai
é bonita essa aguarela
menino ao colo do pai
dizendo adeus à janela.

Carlos Tê

domingo, 13 de setembro de 2009

Boneco de Palha

O boneco de palha morreu no dia em que ele se lembrou de fazer uma fogueira; o pobre homem nunca pensou que as chamas conseguissem alcançar o boneco, mas a verdade é que o vento foi mais forte que os seus braços e não lhe deu tréguas por um momento que fosse. O homem ainda hoje diz que assistiu a um milagre, pois jura de mãos erguidas que o boneco chorava enquanto as chamas o consumiam, pela face do espantalho (embora ele gostasse de ser tratado por boneco de palha) algumas lágrimas, bem gordas por sinal, faziam questão de tentar apagar aquele fogo que se espalhava por onde podia. O boneco já tinha alguma idade, iria morrer de alguma maleita mais cedo ou mais tarde, mas nunca ninguém deseja um fim destes, com tudo a arder, tudo feito em cinzas, tudo o que já foi a deixar de ser e a voltar à forma inicial, pó e mais nada. O homem sentou-se a chorar ao pé dos botões que serviam de olhos ao boneco e lembrou-se de como ele tinha nascido, de como lhe tinha custado cada bocado de feno que teve de carregar até meio do monte, e agora tinha apenas os restos daquele que tinha sido a sua companhia durante as mais variadas tardes. Tinham passado juntos por chuvas, por dias abrasadores, até por dias de alguma tempestade com o vento a não querer dar descanso, mas não tinham resistido aquele golpe fatal do destino, quando as chamas vêm não pedem licença, levam tudo o que encontram e não dizem nada, e se for preciso voltam a aparecer algum tempo depois para levar o que ainda resta. Faltavam as forças ao homem, sentia um vazio, como se tivesse perdido algum familiar, como se tivesse perdido um companheiro de vida, como se já não lhe restasse nada com que se contentar. Afeiçoamo-nos às coisas e nunca pensamos que as podemos vir a perder, que o seguro rapidamente torna-se inseguro (afinal é só acrescentar duas letras e já está). Tinha a certeza que o boneco tinha sido feliz, e isso era o único consolo que ainda lhe restava, isso e uma casa vazia de onde já não tinha nada para avistar da sua janela; todos os dias, quando se levantava, lá ia à janela do quarto ver como estava o boneco, e ele estava sempre de pé, firme no meio do monte, um guarda sem precisar de falar, a manter o respeito apenas com a cenoura que tinha a fazer-lhe de boca. Era o fim de um ciclo, o começo de outro...a vida é ciclíca e quanto a isso não há nada a fazer. O homem levantou-se e seguiu para casa, de manhã havia fardos de palha para carregar.