sábado, 16 de agosto de 2008

Posso Escrever Os Versos Mais Tristes Esta Noite (II)

Olho para o relógio da estação e ainda tenho cinco minutos antes do comboio partir. Olho para as pessoas à minha volta e não conheço ninguém...não contenho um pequeno sorriso, é tão bom ser desconhecido, ninguém nos conhecer, não vermos ninguém que não queremos ver. Por mim ficava aqui parado nesta estação durante horas, mas tenho compromissos urgentes, compromissos comigo mesmo, inalteráveis. Trago pouca bagagem, deixei tudo por aí, apenas tenho o essencial comigo, o que precisar vou roubando ao mundo. Está um pouco de frio aqui, mas os motores já estão a trabalhar, vem uma pequena aragem quente. Volto a olhar à minha volta e reparo que uma pequena menina me observa. Está sentada num banco da estação, tem a juventude no rosto e uns pequenos dedos (como não reparar em dedos tão pequenos?) Não sou capaz de ir falar com ela, lembra-me alguém, embora não saiba quem...apenas sorrio, e ela retribui. Viro-me para a frente mas sinto que aquele olhar ainda me persegue, ainda está fixo em mim, não me posso virar outra vez, teria de falar com ela, perguntar-lhe o nome, porque me olhar, não gosto de ter conversas das quais não conheço o final.
Entro no comboio com o pé firme e deixo aquele olhar para trás, não quero falar com ninguém, quero apenas que o comboio parta e que eu possa seguir viagem. Olho pela pequena janela do meu compartimento e a menina que à pouco estava sentada está mesmo do outro lado da janela, de pé, a sorrir, o mesmo sorriso de à poucos momentos atrás. Quem és tu? Porque me estás a fazer isto? Torno a sorrir para ela e corro as persianas. As memórias começam a surgir, aquele rosto...sim, eu conheço-o, ou pelo menos um muito parecido. Sim...sei perfeitamente com quem aquela pequena menina é parecida, conheço muito bem os contornos daquele rosto. Volto a abrir as persianas mas a menina já lá não está. Abro a janela e ponho a cabeça de fora, perdi-a, não sei onde se possa ter metido, a estação é tão grande...e o comboio já apita.
Volto a pôr a cabeça para dentro e não contenho um pequeno grito. À minha frente, sentada, está a menina, com o mesmo sorriso, como se não conseguisse ter outra feição. Ganho coragem, tenho de lhe dizer alguma coisa:
- Queres um rebuçado?
Ela acena afirmativamente.
- Vou buscar um ao bar do comboio, sim? Espera aqui por mim.
Ela volta a mexer a sua pequena cabeça, sem dizer uma única palavra.
O comboio apita cada vez mais alto e quando a porta está quase a fechar-se à minha frente eu salto para fora e encontro-me outra vez na estação. A menina vem à janela e eu solto uma enorme gargalhada, talvez a maior que alguma vez tenha dado.
Fiquei a ver o comboio a afastar-se e a menina seguiu viagem.

1 comentário:

Nicole disse...

Adorei simplesmente este texto!

O burro do Shrek está-te a dizer olá.