sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Minuciosa Formiga

Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.

Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.

Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.

Assim devera eu ser
se não fora não querer.

Alexandre O'Neill

Já ouço o barulho dos passos apressados. Já ouço as cadeiras a abrirem-se e as pessoas a sentarem-se. Já ouço o estranho burburinho que se forma quando as pessoas se juntam. Já ouço o meu coração no estranho ritmo acelerado que escolhe sempre nestas ocasiões. A gravata ficou-me um pouco apertada hoje, já nem um nó sei fazer como deve de ser (o quê que eu sei fazer bem?) As mãos tremem-me um pouco...a porra da idade dá cabo de nós. Há cinquenta e sete anos que canto e no ínicio era tudo tão fácil...tinha quem me vestisse, quem me ajudasse no que fosse preciso e hoje sou só eu, apenas eu. Tenho um velho pianista que me acompanha, mas esse nem conta, está morto desde o dia em que nasceu, lembro-me dele sempre da mesma forma, sempre com a mesma cara, o tempo decidiu ser brando com ele (ou então prepara-lhe alguma partida...claro que prepara, onde é que o tempo é brando seja com quem for?)
Porque é que ainda me vêm ouvir? Ver? Que estranho prazer podem ter nisso? A verdade é que já não canto nada, eu sei reconhecer. A voz que eu tinha já se foi há muito, e os temas nem são particularmente bonitos, simples canções de "cabaret" (alguma malícia, alguma diversão, amor...) e alguns êxitos de tempos passados (êxitos de outros, claro). O que me safou foi sempre uma certa maneira de estar, uma certa presença, sim, presença eu tinha. Entrava num palco e sabia como arrebatar todos os que tivessem à minha frente, fossem cinquenta ou duzentos, pouco me interessava quem eles fossem, o que interessava é que durante duas horas eu conseguia tê-los na minha mão, no mesmo universo. Hoje...hoje sou apenas um farrapo dessa festa que fui em tempos, sou o foguete que não é disparado, uma pequena fogueira já em cinzas. Preciso disto para viver...nunca soube pôr dinheiro de parte e é apenas por isso que ainda canto; se tivesse o mínimo respeito pelo público já me tinha retirado há muito e estava a cuidar de jardins públicos, mas sempre ganho um pouco mais a fazer isto e ainda há gente que gosta de me ver (tudo acima dos cinquenta, claro...)
Sinto que isto não vai correr bem, estou a suar em bica e as mãos não param de tremer, como posso sequer agarrar num microfone? Onde é que pus os comprimidos? Bolso...não. Casaco...não. Camisa...não. No hotel! Esqueci-me deles em cima da cama, como fui esquecer-me daquilo? O que é que eu faço agora? Não posso beber nada que tenha álcool se não em vez das mãos começa a tremer o coração. Calma...o que eu preciso é de uns momentos de silêncio, de repouso. Ainda tenho alguns minutos antes de entrar. Sento-me durante uns instantes e apenas ouço o barulho das pessoas a sentarem-se lá fora, a acomodarem-se nos lugares.
Fecho os olhos...




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