sábado, 13 de dezembro de 2008

Garras dos Sentidos

Maldita a sorte dos portugueses por terem inventado a palavra saudade; há quem diga que a palavra tem gosto a mar, a caravelas, a tempos que já lá vão mas que teimamos sempre em recordar e em viver, como se o nosso presente fosse sempre feito de um eterno saudosismo que nos condiciona o futuro (temos de ir buscar ao passado a forma, o "barro" para fazer o futuro, mas não nos podemos esquecer que somos os escultores da nossa própria vida, somos sempre nós que a moldamos...mesmo que a tentem condicionar). A saudade causa alguma angústia em nós, um certo langor, como se fosse uma guitarra num canto de um sótão esquecida, à espera de ser dedilhada novamente, à espera que a toquem...quase como um corpo de mulher, um corpo manso e nu à espera do "acto da Primavera". Estranha forma a da mulher...escrevo estas linhas depois de ter visto a primeira hora e cinquenta de "Vale Abraão" de Manoel de Oliveira (e enquanto ganho coragem para o restante tempo do filme), não que o filme seja mau mas apenas porque tem o seu tempo, um filme que precisa de disponibilidade (tal como o desejo...e não é esse, afinal, o tema central do filme?). A escrita de Agustina Bessa Luís é acutilante e a realização de Oliveira soberba (o tempo...a densidade...a perfeição do Douro perante a imperfeição do ser humano) e Leonor Silveira...imaculada. Mas como se pode juntar nestas mesmas linhas a palavra saudade e "Vale Abraão"? É que o filme representa a saudade do desejo, a saudade de alguém que ainda não conhecemos, do desconhecido (e é apaixonante o olhar de Silveira). Estranho caminho este o dos portugueses...feitos de firmamento e longitude.
E qual a melhor maneira de acabar este texto se não com um excerto do único fado que Agustina escreveu ("Garras dos Sentidos" para Mísia)?

"Não quero cantar amores,
Amores são passos perdidos.
São frios raios solares,
Verdes garras dos sentidos."

Sem querer, Agustina, descreve aqui a sua Bovary de "Vale Abraão".

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