terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Dúvidas

Agarrei as ilusões e deitei-as pela janela fora. Baixei os braços na certeza de algum dia poder voltar a levantá-los e ter crescido mais alguns centímetros (talvez até possa tocar no céu). Para quê este corpo feito de outros corpos? Para quê esta voz feita de tantas vozes? Já nem sei onde fiquei no meio de personagens que se colam ao corpo por tempo indefinido e vão ficando...ficando...não se pode negar a morada a um morto. Talvez algum dia a voz rouca transforme-se na tal voz de cristal que se encontra no mais fundo que temos de nós, até lá terei apenas esta voz que me acompanha diariamente com os seus caprichos.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Eu Preciso De Te Ouvir A Voz

Não me peças amor dá-me prazer
Com amizade se o quiseres mas só
E as palavras caíram sobre o corpo
Como sobre uma estátua o vento e o pó

Não me peças amor, mas o que é isto?
Que nome queres que eu dê à tua idade?
Se a carícia que prende a tua mão
Rende e ultrapassa o tempo da amizade

Se a tua Primavera é meu estado
No caminho da esperança que te exprime
Eu traía a alegria de uma hora
Cada vez que o teu corpo se aproxime

E não perguntes mais do que é preciso
A encontrar na distância que há em nós
Com amor ou sem ele pouco importa
O que eu preciso é de te ouvir a voz.

Vasco de Lima Couto

A verdade em poesia
tão simples e verdadeira
como tudo o que acontece...

É Como...

É como se alguém apertasse a garganta com o intuito de sair dela algo que nunca se viu à superfície.

É como se os nós dos dedos se dobrassem todos e apertassem o que de mais fundo trazemos.

É como se a boca se abrisse e não conseguisse fechar tal a força que o resto do corpo faz sobre ela.

É como se os pés tivessem presos por estacas a um chão que insiste em se mover por várias direcções.

É como se fosse um diário onde já ninguém escreve por já não ter nada para contar.

É como se fossem sinos a rebate na tal aldeia de luto de que ainda hoje se conta a história.

É como se fosse as lágrimas daquelas mulheres que andam sem destino, apenas em direcção à morte (como nós todos...)

É como se um vulcão rompesse o ventre da terra e inundasse todo o planeta com filhos feitos de fogo.

É como se fossem palavras escritas em algum muro que teima sempre em subir.

É como se fosse uma campa que já não tem nenhum morto a quem aconchegar.

Seja lá o que for não tem explicação.
É apenas único e intemporal.
É apenas tudo o que nunca foi.

E não se explica porque não há palavras.

É como se fosse um silêncio falado.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Fim da Esperança

Todas as mulheres vestiram-se de negro naquele Domingo. Ao longe ouviam-se os sinos a rebate, como se estivessem a avisar o fim da civilização mas, mais grave do que isso, o fim da aldeia. Todas estavam de luto carregado, como se tivessem sobre a roupa a noite anterior...a noite do sossego. Vestiram-se de luto por ter havido silêncio durante uma noite, por não se ter ouvido o mínimo som, estavam de luto pelos maridos mortos em noites anteriores, quando os guardas apareciam sem avisar e arrasavam tudo o que viam. É estranho pois nenhuma das mulheres chorava, estavam todas secas não só no traje mas também por dentro, como se estivessem vazias...afinal, agora iam ser apenas elas a mandar no destino daquela aldeia; estava assente sobre as suas cabeças que a responsabilidade era agora toda delas e que não podiam contar com mais ninguém.
Não havia crianças naquele sítio, as que existiam há muito que eram adultas e já tinham partido rumo a outros sítios (lembre-se agora que nenhuma das mulheres era rapariga nova, todas já teriam uma idade avançada e algumas até já pareciam mortas). Aquele cortejo fúnebre não era nada mais do que a simbolizar o fim da esperança, eram os passos perdidos do medo, era a obscura certeza que nada voltaria a ser como já fora.

Enterrou-se nesse dia a alma daquelas mulheres.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Pirata

Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 18 de janeiro de 2009

Prelúdio da Noite

É no prelúdio da noite que ele lembrava-se dos braços que envolviam o corpo há muito esquecido. Era naquela hora em que os bichos voltam às tocas que ele era assaltado por memórias difusas e sem sentido, como se os bichos ao correrem levassem atrás deles recordações de um tempo passado. Por vezes chorava ao ir à janela da noite e lembrar-se das estrelas que já tinham sido dele e hoje eram apenas estrelas num céu povoado de sonhos (terra de ninguém...)
Naquela noite a lua decidiu não aparecer; talvez fosse um capricho ou tivesse demasiado atrasada para outro encontro, noutro sistema solar, com algum planeta mais atrevido. Naquela noite ele não viu os olhos da lua, e fazia-lhe falta aquele olhar de onde escorria a luz que embalava as casas já adormecidas pelo tempo. Deixou-se ir no doce enleio que é o canto das flores quando esperam água vinda dos céus, mas a chuva tardava e as flores iam murchando, tal como os sonhos...
Voltou para dentro de casa e olhou ao seu redor, apenas para ver se algo lhe era familiar, foi quando chegou à conclusão que nada dali lhe pertencia, que nada daquilo era seu, que cada objecto que ali estava pertencia a uma estória que já não era a sua. Pegou numa mala e saíu.

Resta o silêncio.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Os Saltimbancos

Vinham de longe, de muito longe
Corriam fronteiras terras
Passavam por todas as serras
Por onde o vento deixou memória

Hoje ninguém sabe a história
Desses saltimbancos de outrora
Roubaram-lhes toda a glória
O que será? O que será?
O que será deles agora?

Passaram um dia na aldeia
Numa noite de lua cheia
Roubaram a filha ao pastor
Noite de medo, noite de terror

A filha nunca mais voltou
O pai muito chorou
E os desgostos foram tantos
Por culpa dos saltimbancos...

Não respeitam ordem nem lei
Não sabem o que sabes, o que eu sei
Apenas respeitam a lei que é a sua:
A da rua! A da rua! A da rua! A da rua!

Sabes Lá O Que São Abraços

É nos abraços do teu abraço
Que eu vejo o mundo no seu passo
Correndo sem direcção
Por muito que corra não passa do chão

E lá vai ele como gazela
Que enfrenta o mundo com pé de cinderela
É a princesa fugitiva
A primitiva, a cativa...

E grita que é liberdade
E diz que mais que rua é cidade
Sabes lá o que são abraços:

Num convento são doze passos
No terreiro são embaraços
Nas prendas são os laços
Na ternura são cansaços

Sabes lá o que são abraços.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Estilhaços

Deitou-se com o corpo de todos os dias.

A cama estava um pouco desalinhada e havia até restos de passado por entre os lençóis amarrotados.

O cheiro era diferente; talvez fosse um perfume de estrelas ou até o cheiro que a lua deita quando escorre chuva por entre os seus cabelos.

Estendeu a mão e alinhou os cortinados para conseguir alcançar a noite apenas com o olhar. De soslaio reparou que a janela estava entreaberta e talvez por isso sentisse um frio pelo corpo. Fechou-a. O frio não passou.

Olhou para o lado e viu que na mesa de cabeceira estava um livro ainda por abrir, ao lado do livro um velho relógio que há muito tinha deixado de dar horas, como se o tempo tivesse decidido ter uma pequena pausa.

Bocejou. O bocejo de todos os dias.

Nada tinha mudado na casa, apenas no seu corpo, no seu velho corpo. Era apenas um revestimento para aquilo que tinha dentro de si, uma pele que não sabia cair e voltar a nascer, um resto de qualquer coisa, um nada...sim, um nada.

Naquela noite não chorou. Foi a única diferença dessa para as outras. Naquela noite as lágrimas ficaram geladas dentro de si e ao pensar nisso o frio voltou a entrar-lhe pelos ossos e pela pele, como se o corpo fosse apenas um arrepio.

Não teve coragem de olhar-se ao espelho. Faria isso de manhã...talvez fizesse isso de manhã.

Pegou num copo de água que tinha sempre junto à cama e atirou-o contra a parede.

Pegou num bocado de vidro.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Fado Mulato

Eu sou o amor do sim e não
Imagem sentimento do poeta
Eu sou o sol fogo e paixão
Sou filho de inventar
Eu sou a festa
Esta festa

A raça minha raça
Um acto de criar depois da criação
Meu pai uma guitarra
Tocada num kissanje minha mãe

Eu sou da cor dos sons do amor
Fui feito de viagem fantasia
Eu sou do amor dos sons da cor
Sou filho de sonhar
Sou algria
Sou fogo
E paixão

De uma mulher

De uma mulher

Que anda na vida a viver
De uma mulher
Com missangas de luz a brilhar
De uma mulher
De uma mulher
Que anda no céu
E nem eu
Sei cantar.

Manuel Ruy Monteiro

sábado, 3 de janeiro de 2009

Eu, que sou feio...

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal

Sentado à mesa dum café devasso.
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura.
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço

E, quando socorreste um miserável,
Eu que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável

«Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez não o suspeites!-
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca

Adorável! Tu muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Cesário Verde

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Mais Um Ano...Ano Novo

Mais um ano que correu no lavrar do viver
Mais um ano que foi arado com terra por mondar
Mais um ano em que tudo ficou por dizer
Porque a boca nem sempre é feita para falar

Contudo, mais um ano vivido por nós
Que caminhamos sem pressa de alcançar...
Mais um ano de solidões feitas voz
Porque até a mudez foi feita para falar

Ano novo, cheiro a trigo, romã
Aroma de ervas espalhadas na terra
Doce de ameixa na boca - verdade

Ano novo, talvez uma nova manhã
Que de chuva é feita e em si encerra
Todo o nosso corpo feito de saudade.