segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O Teatro no Feminino

Eunice Muñoz, Maria José Paschoal, Custódia Gallego.
Todas elas estão a fazer retratos impressionantes e imperdíveis. Mulheres de força, de coragem, mulheres racionais a quem a emoção levou mais longe.

Eunice retrata a jornalista Joan Didion, sozinha em palco, dá-nos o retrato de uma mulher racional que, por momentos, é avassalada por uma terrível emoção. Ao longo de uma hora e dez minutos viajamos com Didion pelas suas memórias, pelos seus "mortos", pelo seu passado e por aquilo que é o seu presente e será o seu futuro, um desfolhar de memórias que não tem fim. Sentimos uma angústia ao vermos aquela mulher, frágil, a expor a sua vida perante nós, sem constrangimentos, apenas com o intuito de fazer uma catarse daquilo que foi a sua vida. Em palco, a grandiosidade de Eunice Muñoz, as frases pousadas, o tempo suspenso, a atenção ao que a rodeia e a representação com a emoção mesmo ao lado.

Maria José Paschoal oferece-nos "Amália em Nova York". Texto (por vezes) inspirado de Vicente Alves do Ó e para além da actriz podemos contar com Fred Astaire. O sítio já nos proporciona algo de especial: Museu do Fado. Num pequeno auditório, Maria José Paschoal dá-nos uma Amália que é um mito, imaginamos como foi a sua estadia em Nova York, quando decidiu fugir de Portugal por sentir-se demasiado apertada num país que sempre teve o cuidado de asfixiar quem cá está. O texto consegue ser fluido, embora algumas partes sejam um pouco forçadas, algumas frases são bem conseguidas mas outras quase que roçam uma certa demagogia provinciana. A interpretação, essa é de composição, os gestos, a voz, aquele cantar dos últimos tempos, quando a voz já não acompanhava o mito. O princípio da peça é dos mais bonitos a que já assisti, a imagem de Maria José acompanhada pelo "Cansaço" de Amália. Voz e corpo, actriz e mito, braço dado.

Por último, Custódia Gallego. Penso que não exagero ao dizer que é a interpretação do ano e, arriscava-me a dizer, o texto do ano na dramatúrgia portuguesa. Custódia é visceral no papel de uma mulher que perde o filho cego devido a um marido bruto e que faz da sua mulher um objecto sexual. Sentimos o sangue que anda por perto, o ambiente é quase que onírico, estamos numa casa que não tem ninguém por perto, enfiada no meio de um bosque e por companhia...esta mulher que agora vai ser feliz! O texto de Abel Neves é certeiro, corrosivo, escrito com paixão, e não podia ter encontrado melhor actriz do que Custódia Gallego, que se entrega como cão a um osso a um texto escrito para si mesma, trata-se de um tratado de representação (e penso que não exagero); ao longo de hora e meia podemos assistir a uma actriz que dá tudo o que tem em palco, sem o mínimo constrangimento, uma mulher que carrega o peso de um filho morto e que anda à mercê de um marido que lhe bate mas de quem ela gosta (retrato fiel feito por Abel Neves ao quotidiano de muitas mulheres), assistimos mesmo à erupção de um vulcão feito mulher. A encenação de João Grosso, é eficaz mas um pouco exagerada em certos aspectos cenográficos, mas até nisso Custódia se desenvencilha, correndo de um lado para o outro num chão flutuante que até o andar lhe dificulta. Que todos corram à sala Estúdio do Teatro Nacional ver uma das peças do ano.

Bom Teatro!

sábado, 21 de novembro de 2009

Pobre Cantor

no dia em que atiraram a rosa
do balcão do Coliseu, foi no dia em
que o cantor se engasgou no último
refrão

a plateia fingiu não ter notado
mas o homem da percussão fez uma
cara que não deixava ninguém indiferente

depois o instrumental continuou
enquanto o pobre cantor bebia uns
goles de água (como se a cortiça em
que a sua garganta se tinha tornado
tivesse alguma resolução)

da plateia, o público tentava mostrar
o mesmo entusiasmo, mas sabiam que nunca
mais iriam ver aquele homem cantar, e então
de um momento que poderia ser dos mais comuns,
nasceu um momento divino, pois tiveram a certeza
de que nunca mais iriam ver aquele homem cantar

no final, os aplausos foram tão grandes que
o pobre cantor desmaiou, e caiu mesmo em cima
de uma menina de dez anos que o via da primeira fila

a mãe acompanha a menina no hospital, não
deixando a cama onde a sua semente repousa,
à espera de melhores dias

ao enterro do pobre cantor, apareceu apenas o seu
manager, contudo, no seu rosto, adivinhava-se o desagrado
pelo facto de ainda ter dívidas para pagar
daquele que agora estava dentro de um caixão

Caronte não pediu ao pobre cantor
que cantasse uma balada...
é que não tinha trocos.

sábado, 14 de novembro de 2009

No Ventre Deste Poema

há um destino no fado
que nunca foi encontrado
em cantar a saudade permanente
que tem aquele que sente
a vida agarrada à morte

todo o destino é traçado
escrito em frases, bem marcado
em cada linha de fado
que nasce da mão dos poetas

e há quem tenha estrelas nos dedos
quem desvende os segredos
daqueles que transportam na alma
a calma ambígua que é viver

e há quem tenha medo da morte
cuspa na cara da sorte
por pensar que a vida tem a
exacta medida de uma equação

no fim, ficam as rosas
as únicas que contam a história
de um grande amor por viver
mas que já começou a crescer
no ventre deste poema.

domingo, 8 de novembro de 2009

Mal Nascida

mal nascida
pelo ventre que não te quis
cresces entre os currais
entre o nojo dos animais
que te consomem a vida

não sabes do amor de mãe
e tiveste um pai que amaste
uma vida que mataste
sem te darem arma para a mão

esperas um irmão para vingar
essa morte sem amar
que a tua mãe veio a concretizar
sem te pedir autorização

o teu irmão morreu na cama
só, como os pobres a que
ninguém ama e a quem se
recusa o albergue

o teu padrasto bate-te
perante a brandura de uma mãe
que te quer casar com ninguém
pois ninguém casa quem nasceu
para viver sozinha

caminha...caminha...
caminha por entre os animais
os teus unicos jograis
no meio de tanta maldicência

demência
dizem ser o teu nome do meio
mas és mais lúcida que a vida
pois do teu ventre nasce a seiva
do ódio nunca concretizado

rasga o pó do caminho
foge de casa sem destino
e tenta encontrar-te de novo
vai de Boticas para Argos
carrega o peso dos teus encargos
como quem leva penas às costas

procura uma nova vida
longe do que conheces
e faz da tua partida
a festa que mereces.

a partir de "Mal Nascida" de João Canijo.
Uma Electra destes tempos...

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Pelo Fumo Do Teu Cigarro

pelo fumo do teu cigarro
escorre as veias de uma canção
feita da paixão sem ancestrais
que os quatro pontos cardeais
constroem ao toque da tua mão

pelo fumo do teu cigarro
há o sebastianismo escondido
e todo o mito feito verdade
como se as penas da saudade
fossem apenas as dores do infinito

pelo fumo do teu cigarro
há o universo desconstruído
o silêncio das catedrais
o rugir dos ferozes animais
que se escondem sem ruído

pelo fumo do teu cigarro
há deuses da matança
que comem sonhos desfeitos
desferem golpes a peitos
já cansados de serem criança

pelo fumo do teu cigarro
há tudo aquilo em que acredito
e na beata que deitas fora
o soluçar de uma nova aurora
é um raiar de sol do meu peito aflito.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Andei Pelos Telhados

andei pelos telhados
como um gato vadio
que não encontra a sua fome
cantei à lua meus pecados
e num intenso desvario
perdi pelas ruas o meu nome

fiz uma arma de saudade
percorri toda a cidade
à procura de memórias
de mim nada encontrei
andei, mas em tudo errei
não encontrei minhas histórias

vivo agarrado à esperança
de encontrar a criança
que um dia já existiu
mas é tudo coisa vã
porque eu sei que amanhã
da noite...só me resta o frio

domingo, 1 de novembro de 2009

Ferida Aberta

Noite sem estrelas no céu
A saudade anda à solta
O pecado é meu e teu
Noite sem estrelas no céu
Ciúme que já não volta

Condição das condições
Viver a vida amarrado
No peito as palpitações
De quem por entre canções
Vai descobrindo o seu fado

A dor é mágoa sentida
Ferida aberta pelo tempo
É nas dores da nossa vida
Que a cara já envelhecida
Vai descobrindo o sentimento

Trago varandas no peito
Trago dores pela calçada
E não encontro o jeito
De dar o incerto por feito
De ser a voz já cansada.

As Noites Mais Belas

dá-me as tuas mãos de carmim
flores feitas para mim
pelo toque de qualquer deus
e eu choro na soleira
de uma porta sem ombreira
choro pelos pecados meus

a criança está perdida
chora dores da sua vida
a mágoa que o peito sente
a tristeza está guardada
numa mão sempre fechada
para quem na verdade mente

nao vês que a dor
é algo que se sente
quando a cabeça
ao peito mente

não vês que a paixão
é uma condição
para quem nasceu
com deus na mão

esquece as flores no teu regaço
volta-me a dar o abraço
que aquece as noites frias
eu faço um poema para ti
com as minhas mãos de carmim
luvas que eu tenho e que tu tinhas

escondo os dedos no meu corpo
afago o beijo morto
que existe na cara da morte
e tento rir do meu destino
aquele, que desde menino
faz-me pensar na sorte

não vês os meus olhos
choram a doce mágoa
que vai num rio
de lodo, sem água

não vês nas estrelas
as mais cintilantes
as noites mais belas
dos amantes