sábado, 6 de março de 2010

As Criadas (II)

De cada vez que me pedes para falar sai-me a mágoa pela boca. Não percebes que morro a cada vez que falo contigo? Estou a consumir-me, ando consumido por um tempo que nem é meu. Não me prendas no teu sótão pois já não consigo sair de lá. Não me venhas falar de mordomos e de cozinheiras pois já não sei viver sem eles. Tenho raiva a nascer dentro de mim. Estou transformado numa codorniz que já não sabe cantar. Tomas conta de mim, abraças-me em ti e já não me queres largar. Não percebo o teu conceito de felicidade e andamos numa luta constante para ver quem ganha, e és sempre tu. A tua força não é a minha, as tuas mãos já não são minhas, as tuas meias pretas nunca serão as minhas. E depois existe esta fome...este querer alcançar o prato principal e não passar de um mero aperitivo. Eu juro que a mato! Eu juro que arranjo forças e a obrigo a beber cada gota deste chá que não foi preparado por nós. Mas sinto-me a vacilar, sinto-me a tombar para um poço que tu própria criaste. Olha para a nossa cara, é como se apenas tivéssemos uma cara e nada mais. Será que ouvimos as mesmas canções? Tu gostas da velha Piaf, eu ainda me arrepio quando ouço o Aznavour. Tu és a minha La Vie En Rose e eu não passo de uma velha La Bohéme, e andamos as duas numa valsa à Mille Temps. Onde é que vamos parar? Para onde caminhamos? A morte está sempre presente como coisa certa, sempre à espreita para ver quando pode entrar. Bebo o sangue das tuas veias e não me sinto mal por fazê-lo, transformas-me numa sanguessuga, em algo que nunca quis ser. Somos um monstro sagrado que nunca vê a sua fome saciada, andamos por sobre o lixo como se estivéssemos a pisar ouro. Somos repugnantes para as outras pessoas todas mas também não nos interessa o que elas pensam. Nós somos nós, somos para além dos outros, vivemos no mundo que criámos.
Eu transformo-me em ti e tenho medo que fique cá alguma coisa...fica sempre.

2 comentários:

Pedro J. disse...

A relação que criaste com ela é simplesmente... Apaixonante. Agora brilha, meu camarada, BRILHA!

Medusa disse...

Este texto lembro-me de mim há uns tempos. Valeu a pena a insónia.

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