domingo, 28 de fevereiro de 2010

Monte dos Vendavais

Os lençóis esvoaçavam ao vento e longe, onde a vista já não alcança, chora uma mulher. As suas lágrimas são feitas das gotas de chuva da noite anterior. Já não se ouvem os sons característicos das grandes montadas, já todos os cavalos abalaram e sabe-se lá quais aqueles que voltarão. Deixa cair o seu lenço na terra molhada, na sua varanda torna-se invísivel, na sua muralha torna-se indestrutível. Ninguém compreende a dor daqueles que sentem a solidão mesmo ao seu lado, sentada à cabeceira como um familiar que teima em não se ir embora. Mas se não fosse a solidão, quem faria companhia aos desprovidos de um carinho? Tocam ao de leve na porta mas ela não responde, talvez pensem que ela está deitada e não a incomodem mais, afinal de contas, não se pode alimentar uma boca que não se quer abrir. A paisagem está serena, da chuva apenas ficaram alguns vestígios, e ela, como que uma sombra que se esqueceu de acompanhar a sua imagem. Não pode existir vida em quem apenas suspira pela vinda da morte, não pode haver alegria para quem nunca conheceu outra companhia se não a da tristeza. Na sua gaveta ainda tem o lenço manchado pelo sangue daquele que já não volta, o sangue dele também lhe corre nas veias. Quem perdeu o norte ainda tem três opções, três direcções, talvez que alguma estrela a guie para longe dos montes. Um dia a saudade virá buscá-la e nunca mais irá regressar ao monte onde um dia deixou o seu sangue. O amor, esse vai dentro da sua bagagem.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

De cada vez que toco na saudade ela apenas sabe escapar-se por entre os meus dedos. O tempo passa e por vezes caio no erro de pensar que vamos crescendo, pois cada vez mais eu penso que o tempo nos vai fazendo ficar mais pequenos. O crescimento é a ilusão que o tempo nos dá, e aquilo que ele deixa é apenas a saudade entrenhada na nossa pele, é ela a causadora de tudo aquilo que vai acontecendo pelo nosso corpo. Não sei que idade tenho, às vezes dou por mim ainda a aprender as primeiras palavras, as mais simples. Cada dia é feito de uma nova aprendizagem e de novas prisões, vivemos sempre agarrados a algo. Passam os dias e o sentimento de posse é cada vez mais forte, agarramos com as mãos aquilo que a alma gostaria de agarrar mas que não lhe é permitido. Por vezes fugimos. Fugimos de nós próprios, andamos à nossa procura e não nos conseguimos encontrar, e choramos a nossa solidão. O nosso mal é a solidão desmedida a que somos sujeitos, todos vivemos de estar sós, mesmo que à nossa volta haja uma população. A noite canta os seus gritos, chora a sua raiva, a chuva não é mais do que o lamento de almas que já não conseguem cantar. As vozes enrouquecem, ficam mais baças, ficamos mais enevoados. O tempo fustiga-nos, como se tivesse um chicote pronto a bater. Vivemos dos momentos em que conseguimos sentir a felicidade, pelo menos tocar nela, vislumbrá-la. Há coisas que a boca não diz porque o corpo se habituou a esquecer, pelas veias correm lembranças de momentos nunca partilhados. Vivemos de breves momentos, de breves segundos, e há instantes em que agarrámos a vida e nem sequer os aproveitámos. Já perdemos tantas oportunidades...passamos a vida a vê-las passar, deixamos que a maior parte desapareça. O que é que cada um de nós dava para voltar a viver um determinado momento? Por voltar a rir, a chorar, a sentir, a pulsar? Por um breve minuto somos capazes de entregar a nossa vida, na esperança de que ela nos retribua o que nos roubou.

"A saudade andou comigo
e através do som da minha voz
no seu fado mais antigo
fez mil versos a falar de nós..."

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Do céu caíu uma estrela.
Não trouxe nenhum sonho, apenas
a leve miragem dos desejos nunca
condedidos.

Chovia em mim naquela noite.
Volto sempre à chuva, só ela
sabe ser o leito que nunca
encontra a foz.

Canto a imensidão da vida
por estar só na solidão de
um quarto assente em pedras
já gastas.

Rasguei a alma e esqueci
o sangue que caiu aos meus pés
como se fosse o vinho de outro
corpo.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Canto Nocturno

e a madrugada abriu-se ao dia.
o frio gelava os ossos e a fria manhã anunciava-se com chuva.
talvez que algumas daquelas gotas fossem as lágrimas que não me saíam pelos olhos.
remexi nas lembranças do que fui, do que sou e do que irei ser, e não consegui receber a luz de um sol que não existia.
o dia chorava por mim, compreendia o abandono de que às vezes somos feitos.
o passar do tempo marca-nos e faz-nos desaparecer aos poucos.
sinto-me consumido pelo tempo, como se tentasse ser uma chama que é constantemente apagada.
não sei para que lado sopra o vento e só sei os lados para os quais não quero ir.
continuo no caminho mas procuro atalhos, algum caminho novo, por onde possa andar sem preocupações.
canto para dentro, canto ao som de guitarras que não me saem da mente.
não sei é a letra do que canto.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A História da Gravata

O velho tropeçou na bengala, o que fez com que fosse recambiado para o hispital. Como a saúde estava no mesmo estado que a perna do velho teve que ir para casa sem sequer tomar uma coisinha para as dores. Chegou a casa e a mulher deu-lhe com a bengala nos costados, pois onde é que já se viu alguém tropeçar numa coisa que é para ajudar a andar. Devido à pancada da mulher o velho ficou estendido no chão, e o seu gato, ao vê-lo, fez uma pequenina urina em cima dele, pois a idade também já era muita e a visão estava um pouco enfraquecida. Lá se levantou o velho e conseguiu chegar até à casa de banho, eis se não quando o tapete lhe foge por debaixo dos pés, e numa maravilhosa pirueta digna do Cirque du Soleil, vai parar directamente à banheira. A mulher, vendo o homem na banheira, ligou a água fria pois pensava que ele queria tomar banho (e como se sabe a água fria é o melhor para os ossos). Ninguém ouviu os pobres gritos do velho, que gritava a plenos pulmões quem era a imbecil que pensava que alguém queria tomar banho vestido e tudo. A mulher, não gostando da carrada de insultos que tinha ouvido, chega-se à banheira com uma tesoura e começa a cortar a roupa toda ao velho. Eis se não quando ela diz em tom maquiavélico:
"Meu grande ordinário, já te tirei a roupa...vou agora arrancar-te a gravata!"
"Mas eu hoje nem levei gravata..."
"Não tem problema, isto que eu vou cortar passa muito bem por gravata"

O resto foi censurado por um acessor do primeiro-ministro, foi considerado um atentado ao pudor.
Peço desculpa.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Equação

abro as janelas e ainda cheira
ao perfume que deixaste sobre o meu corpo,
como se todo o universo tivesse conspirado
para ficar com o teu cheiro

e pensar que um dia todos os carros
vão afastar-se do seu trajecto normal
para nos darem passagem

somos mandatários dos nossos próprios
sonhos, comandamos a nossa vida e
tentamos que ela não se v+a afundando
na doce rotina que são os dias

e depois temos as nossas mãos...os
dedos que são dos dois e a sina que
é uma...

tudo é dividido por dois de maneira
a que dê sempre um...nós.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

a essência da vida está no néctar
do pêssego ainda maduro que fez de
tudo para que a árvore o deixasse cair.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

As Rosas

Lembro-me do dia em que fizeste anos porque coincidiu com aquele ano em que a geada destruiu as rosas que em tempos tinhamos semeado.
Não chorei, nem pelo teu aniversário nem pelas rosas.
Foi o único ano em que não vieram à vila amolar as facas e entregar o subsídio anual. As estradas estavam todas cortadas, ninguém se atrevia a visitar uma localidade tão recôndita como a nossa.
Não tivemos bolo nem um jantar especial para festejar o teu aniversário, e mesmo que quisesse entregar-te uma rosa não podia, tinham sido todas destruídas.
Também não te entreguei amor naquele ano, há anos que não são propícios a certos sentimentos.
A raiva chegou-te mais tarde.
No dia em que me deste banho com água a ferver é que eu senti o poder que as chamas têm num corpo sem alma. Não senti nem uma queimadura. O corpo estava todo vermelho, como se eu fosse feito de trevas, e sabes uma coisa? Até gostei da sensação.
Hoje plano por sobre a minha alma, o meu corpo está sozinho.
Já não cultivo rosas nem festejo aniversário, sou apenas eu.
Podes encontrar-me a voar por sobre o tempo e a rejeitar qualquer noção de realidade, ainda continuo a desprezar quem vive apenas por viver.
Já não moro na nossa casa, tenho uma morada aberta por sobre a paixão.
Sou o templo que construí.