E o abraço fez parar o relógio que teimosamente marcava as horas. Não sabemos se foi o dela ou o dele, afinal somos meros espectadores e nem nos é permitido fazer juízos de valor, mas pela forma como ambos se entregavam à paixão quase de certeza que foi o braço dela que bateu no ponteiro do relógio e o fez parar. Talvez tivesse de ser assim para não contarem o tempo, talvez estivesse escrito nalgum destino que ela tinha de tocar com aquela mão naquele relógio aquele exacto momento. Não sabem como a história começou, e aquilo que eu sei é que ele começou por subir os degraus devagarinho, um a um, sem pressas (afinal o tempo nunca intererrou a nenhum deles), ele acendia o cigarro lentamente e sabia que ela já sentia o cheiro do seu tabaco, mais do que o som nas escadas ela reconhecia-o pelo cheiro dos cigarros dele, os mesmos há anos, como se fosse um ritual que não se pode alterar. Ele abriu a porta devagariinho, sabia que ela não gostava de ser surpreendida, ela esperava-o com o sorriso de sempre. Claro que ele fez com que ela se levantasse, a intimidade não podia ser motivo para ela não ter um gesto de gentileza para com ele mal o visse, e ela sempre percebeu isso. Levantou-se como se fosse aquela gata em telhado de zinco quente, com medo de pisar o chão, com medo de pisar alguma ratoeira ali posta por engano, ela foi ter com ele, felinamente, saboreava cada momento, cada olhar dele de desejo, sentia que ele a despia com os olhos, e quanto mais ela sentia aquela paixão mantida ao longo de anos de silêncios mais ele se excitava com o corpo dela. Quando ela estava apenas à distância de um abraço ele agarrou-a e não deixou-a sair mais, prendeu-a como se fosse um pássaro, ficou cativa dele naquele preciso instante (como se já não o fosse antes...). Bem, deve ter sido nesse instante que o relógio sofreu aquele pequeno hematoma, não sei bem quando foi porque fui apenas um espectador, um voyeur que não foi convidado a participar em nada mas que não conseguiu conter o desejo de espiar a vida que não é a sua. Não sei como aquela história acabou, para dizer a verdade sei, acabava sempre da mesma maneira, com ele a pousar a cabeça no peito dela e a sentir que tinha nascido dali, que a sua terra era aquele ventre, que o seu seio era a sua bandeira e que o seu corpo era a sua arma contra qualquer guerra. Fantasias, fantasias e devaneios, nada mais. Já tinham idade para terem juízo mas queriam lá saber de convenções, de leis feitas por outros, naquele quarto as leis eram escritas por ela e redigidas por ele, e obviamente que ambos assinavam por baixo. Acabaram a noite a rir-se, sim, também tenho a certeza que acabaram a noite a rir-se e a dizer disparates um ao outro, era assim há anos, há séculos talvez...aquele relógio nem estava lá quando tudo começou, e de certeza que não ia lá estar quando tudo terminasse também; tal como eu o relógio não passava de um espectador, mas ao menos ele foi lá posto por eles, o que quer dizer que é um convidado, agora eu...eu apenas me encostei à fantasia que lhes servia de refúgio, apenas quis sentir aquilo que eles sentiam, mas ainda hoje não sei porque os espiei noites e noites a fio...desculpem, se calhar tinha dito que apenas os tinha visto naquela noite, já nem sei o que disse...também não interessa para o caso, o interessante são os factos, apenas isso.
Primeiro são os teus passos pela escada
A madeira a dizer-me que chegaste
Depois a porta a pouco e pouco aberta
E o silêncio que...só prova que já entraste
Sim, também hoje me deixei levar pela Simone e por essa canção chamada "À Tua Espera"...foi ela que me fez conhecer estes amantes que existiram...ou existem...ou são uma invenção minha...sei lá, são tantos os amantes perdidos que de certeza que esta história encaixa em alguns deles.
Que se continuem a partir relógios...
...e a fazer parar o tempo
Para guardar para sempre...
...a eternidade num só momento.
terça-feira, 18 de agosto de 2009
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