sábado, 8 de novembro de 2008

Vou Nascer Cabelo

Vou nascer cabelo
E ser a trança de Inês
Aquela que D. Pedro
Nunca desfez

Talvez que o pai nada saiba
Pois um rei nunca está de guarda
Talvez que a mãe nunca descubra
Este romance será sol de muita dura...

Vou nascer cabelo
Vou ser trança perfeita
A madeixa mais bem feita
No teu cabelo...

Talvez que o pajem não saiba falar
Talvez que ele nada vá contar
Mas se for
Será melhor
Que eu vá buscar o meu cavalo
E será um regalo
Ver a corte atrás de nós

Vou nascer cabelo
Vou brilhar á lua
E hás-de dizer:
Sou tua...

Vamos fazer desta estória secreta
O que o cupido faz com a seta
Vamos disparar isto pelo ar
E ver onde vai parar...

O destino, desta vez,
Não pode destinar.

Para Um Fim Do Mundo

É nestas noites de fogueira acesa
Que a memória me vem mostrar
Que a poesia é uma candeia
Que não sabe quando se apagar

É nestas noites de memórias dúbias
Que eu não sei distinguir a realidade
Sei que há certas alturas
Em que fecho os olhos e não vejo a verdade

Há coisas que quero apagar
Do fundo desta alma tecedeira
Mas a memória é um baú por encontrar
E durmo com a saudade à cabeceira

Há poemas que são o infinito
Há versos que são rimas de perdão
E há noites que são apenas gritos
Abafados pela solidão...

Eu sei que lá em cima estão anjos
À espera de um dilúvio universal
Cá em baixo há demónios mundanos
Que vivem em eterno Carnaval

Mas um dia isto há-de ter fim
Mas um dia isto há-de acabar
Tudo será como no início
Quando não conhecia o mar

E quando a faca vier apontada
Eu respondo com um tiro de canhão
Porque neste tudo somos nada
E só alguns têm coração.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Uma Vez Que Seja

Tu que navegas ao sabor do vento
Sem outra rota que o que se deseja
Tu que tens por mapa o fimamento
Vem descobrir-me, uma vez que seja

E diz-me das viagens que não faço
Dos mundos cintilantes que antevejo
E traz-me mares de mel no teu abraço
Poeira de ouro velho no teu beijo

De ti não espero amarras nem promessas
É livre que te quero neste cais
Até que um dia em mim não amanheças
E te faças ao mar uma vez mais...

E mesmo nessa hora de perder-te
Sabendo que a magia se desfez
Terá valido a pena conhecer-te
E deslumbrar-me ao menos uma vez.

Ana Vidal

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O Meu É Teu

O meu é teu. O teu é meu
e o nosso é nosso quando posso
dizer que um dente nos cresceu
roendo o mal até ao osso.

O teu é nosso. O nosso é teu.
O nosso é meu. O meu é nosso.
E tudo o mais que aconteceu
é uma amêndoa sem caroço.

Dizem que sou. Dizem que faço.
Que tenho braços e pescoço
- que é da cabeça que desfaço,
que é dos poemas que eu não ouço?

O meu é teu. O teu é meu.
E o nosso, nosso quando posso
olhar de frente para o céu
e sem o ver galgar o fosso.

Mas tu és tu e eu sou eu
Não vejo o fundo ao nosso poço,
o meu é meu dá-me o que é teu
depois veremos o que é nosso.

Ary dos Santos

Ao egoísta que há em cada um de nós...

domingo, 2 de novembro de 2008

Tu Tens Um Medo

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

Cecília Meireles

Apenas Umas Palavras...

As lágrimas rolam pelo rosto da menina e ela pensa que o Inverno chegou ao seu corpo. Toda ela treme de frio (quem sabe se com medo também...) perante as duras pedras que a observam, sem nada fazerem, sem dizerem sequer uma palavra de calor que lhe possa confortar o coração endurecido. Pensa na vida que teve e na que pode vir a ter...tudo vai ser igual; o destino para ela nasceu com duas facas na mão e com um olhar de sangue (as lágrimas da tristeza são rios de sangue a escorrer num rosto já morto...), ela apenas queria o conforto de uma castanha de Outubro com uma cereja de Julho, queria sentir o amor dos poetas, a febre incontida de estar viva, e tem apenas o langor que lhe traz o vento. Ninguém muda a sorte de um destino já fechado, hoje ela é apenas feita de desalento e vive com o pensamento lá longe...em casas duras que não caem por serem feitas de paz. Chora doce menina...pensa que amanhã talvez seja tudo diferente, não custa ter esperança, basta perderes os teus olhos em algo mais longínquo, pensa para lá do mar, das serras, pensa que tens algo de teu para lá de tudo isto, afinal, também tu tens o teu pedaço de terra.

Recurso

Apenas quando as lágrimas me dão
um sentido mais fundo ao teu segredo
é que eu me sinto puro e me concedo
a graça de escutar o coração.

Logo a seguir (porquê?), vem a suspeita
de que em nós dois tudo é premeditado.
E as lágrimas então seguem o fado
de tudo quanto o nosso amor rejeita.

Não mais queremos saber do coração,
nem nos importa o que ele nos concede,
regressando, febris, áquela sede
onde só vale o que os sentidos dão.

David Mourão-Ferreira