domingo, 27 de junho de 2010

A Virgindade da Morte

...e então a morte chegou-se ao pé de mim, e sentou-me nas suas mãos. Os seus dedos eram longas praias sem mar à vista, quase que podiam ser confundidos com um deserto. Os ossos eram brancos como as estalactites, e as minhas lágrimas parece que faziam com que aquele branco se derretesse. Para minha surpresa, ela embalou-me. Começou a entoar uma canção já muito antiga, vinda do início dos séculos, e eu senti-me embalado pelo berço da civilização. De repente, esqueci os gregos e os romanos, pois pensei que a Humanidade estivesse a nascer dentro de mim, naquele preciso momento. Os seus olhos eram dois poços, profundos, negros como a alma da maior parte de nós; tive medo de olhar para eles durante muito tempo, pois sentia-me a gelar por dentro quando os encarava. A sua túnica era preta, e apenas lhe faltava uma foice na mão para corresponder à imagem que temos dela. Contudo, era suave...tinha a doce melancolia de quem faz o bem aos outros, sem os outros sequer agradecerem. Talvez ela também se sentisse só, afinal de contas ninguém gostava dela e tinha apenas como companhia um velho gato já com séculos de vida, e mais morto que vivo. O seu escritório era deprimente, tal como a maior parte dos escritórios espalhados por aí. Tinha na sua secretária uma agenda enorme, onde apontava todos os seus actos, e todos aqueles que ainda lhe faltavam (e eram bastantes). Ela está viva desde o príncipio do mundo; a partir do momento em que criaram a vida, criaram-na a ela também. Infelizmente, calhou-lhe ser a ovelha negra da família, e a Vida a irmã preferida dos paizinhos. Nunca soube tocar piano, mas queria ter aprendido, caso alguém lhe tivesse ensinado, mas todos os professores recusavam os pedidos dos seus pais ao saberem quem iria ser a aluna. Desde nova que aprendeu a ser auto-didacta pois nunca ninguém se quis aproximar dela. Nunca teve um namorado, embora tivesse tentado engatar cada homem que lhe aparecesse á frente, tal era o desespero. É virgem, obviamente (não por vontade própria mas por circunstãncias do Destino). Ainda pensou em visitar algum rapazinho que em troca de mais alguns anos de vida lhe satisfizesse algumas vontades mais secretas, mas chegou à conclusão que ninguém iria aceitar a troca de bom grado e rapidamente se esqueceu daquilo que lhe passou pela cabeça. Talvez o seu hábito fosse preto para a confundirem com alguma freira, podemos rapidamente chegar à conclusão que afinal o preto é que é a cor das virgens, e o branco a côr onde elas gostam de esconder as impurezas que ja trazem dentro do corpo (e da alma...). A morte, se fosse actriz, seria uma furiosa dramática, daquelas sempre prontas a representarem qualquer tragédia. O papel de Jocasta assentar-lhe-ia que nem uma luva, pois tem toda a presença para isso, difícil seria arranjar um Édipo que se podesse igualar a ela, mas talvez Zeus esteja disponível para tal espectáculo.
De vez em quando ela também mata algum bebé... Deus deu-lhe por castigo não poder ser mãe, e ela não suporta aquelas que o são.
A morte tem as mãos manchadas de sangue e, contudo, veste-se de preto para esconder a côr que lhe escorre pelo vestido. As suas veias estão da cor do céu negro, e a sua alma, morreu no dia em que ela viu a luz do dia.
A morte é o vestido com que a solidão decidiu vestir-se um dia, e gostou tanto de se ver, que nunca mais mudou de roupa.

sábado, 26 de junho de 2010

Brincadeira ao Zeca

A morte saiu à rua num dia assim
Graças a Deus que não deu por mim

Somos filhos da madrugada
Com os bolsos cheios de nada

Dorme meu menino
Que eu também queria ser pequenino

Chamaram-me um dia cigano e maltês
Mas não me chamam isso outra vez!

Era um redondo vocábulo
A nascer no meio de um estábulo

Venham mais cinco
Mas, por favor, com mais afinco!

Vamos cantar as Janeiras
Que ao menos não pensamos em asneiras

Diga amigo Miguel como vai você
Porque por aqui já ninguém o vê

Grândola Vila Morena
A nossa terra está é cada vez mais pequena...

domingo, 20 de junho de 2010

Retrato do Poeta Quando Jovem

Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brandas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada

Há um nascer do sol no sítio errado
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.

José Saramago
Agora não há montra de livraria que não esteja repleta de livros de José Saramago.
Que triste país este que nos deram.
O consumismo tornou-se o sobrenome de Portugal, e é preciso morrermos para reconhecerem o nosso valor.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Nódoa Negra

Doem-me as costas de ter caído da cama.
Claro que foi ela quem me expulsou, nenhum idiota cai da cama sozinho, a não ser aqueles que abraçaram a profissão de nadadores, esses estão sempre prontos a dar aos braços.
De certeza que vou ficar com uma nódoa negra, já estou a senti-la a nascer. Depois vão pensar que tenho uma doença qualquer, que o meu corpo está a ganhar uma nova cor, que posso ter alguma coisa partida... mas porque é que ela me expulsou da cama?
Eu nem estava a ressonar!
Pelo menos que eu tenha dado conta...
Agora para onde é que eu vou? Se calhar devia de ir ao hospital, mas o que é que eu digo? Que caí da cama e que preciso de alguém para ver uma pequena nódoa negra? Sim, porque de certeza que isto não é grande coisa, quanto muito é uma nodoazita...
Vou passar a dormir sozinho, sem ninguém, só eu e a minha cama! Ao menos ela não me expulsa a meio da noite.
Ainda para mais, ouvi uns sons estranhos durante a noite. Como se alguém andasse a rondar... a rondar à minha volta.
Devia ser a ronda dos mafarricos... ou então a dança das bruxas.
Tudo isto foi acontecer na noite em que caí da cama, ou melhor, na noite em que ela me atirou para fora da cama.
Vai-se a ver e também é bruxa... sei lá!
O certo é que fiquei com uma nódoa negra, isso é que já ninguém me pode tirar.

domingo, 13 de junho de 2010

VINCERE / BAD LIEUTENANT

Um drama épico pelas mãos de Marco Bellochio.
A história de Ida Dalser, a mulher que Mussolini tentou esconder, e que deu à luz um filho que ele nunca aceitou.

Um drama policial pelas mãos de Werner Herzog.
Nicolas Cage na grande interpretação da sua carreira, e a fazer-me recordar Harvey Keitel no filme homónimo de Abel Ferrara (embora os dois filmes só tenham em comum o nome).
O sonho americano desmistificado.

A não perder!
a respiração do mar faz o vulcão zangar-se por apenas conter fogo dentro de si.
os peixeis voaram para fora do aquário, não fosse alguma carpideira comê-los.
as sardinhas fugiram do pão e foram comidas por gatos.
o vinho tinto correu à farta e deixou náuseas no bêbedo.
a mulher chorou a morte da festa.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

hoje o dia esteve cinzento e
eu acompanhei-o no seu tom

andei com o passo curto
de quem já soube onde tinha
de ir mas que já não sabe o
que esperar daquilo que está
para acontecer

passei pelos sítios do costume
mas não vi as mesmas cores, e
as caras tinham umas tonalidades
de inverno, que antes sabiam disfarçar

não me vesti de primavera, pois já
não sei onde deixei essa velha camisa
que antes costuma servir-me tão
bem...

chorei durante a tarde, e o céu
não se lembrou de acompanhar
essas lágrimas...talvez tivesse
vergonha daquilo que eu estava
a sentir e se tivesse recolhido

há dias assim, em que nos
sentimos perdidos de nós
próprios, e nem sentimos
a necessidade de rimar

isto nem chega a ser um poema
é apenas um desabafo que fica
por aqui...talvez daqui a um ano
eu me possa rir daquilo que escrevo
hoje
Nem sempre a entrega é reconhecida e, quando damos por nós, estamos numa margem que nos impuseram.
Esforçamo-nos, trabalhamos por algo que esperamos vir a dar frutos e no fim...continuamos tal como começámos.
Uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma, é isso aquilo que temos, e pouco mais.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Podia ser tudo lá fora, se não estivesse aqui dentro.
Começo um texto com uma frase sem sentido por nem sentir vontade de escrever, mas por sentir que tenho de deixar aqui algumas linhas. Sobre o quê? Não sei.
Não me apetece falar de mim, pouco vou existindo nestes dias em que apenas penso numa cidade imaginada no meio do oceano Atlântico. Por entre as ruas dessa cidade vou fazendo a minha vida normal.
Finjo que não vejo a chuva a cair lá fora. Penso apenas em mim e no meu quarto. Livros, cd's, dvd's...a tal cidade. Sempre por perto o texto, o já velho texto.
Estou constipado, estou sem voz...tento passar à frente de um nariz entupido e uma garganta que não me obedece, mas é díficil. A teimosia existe no meu corpo, e talvez em mim também...
Não me apetece fazer nada, mas tenho de escrever mais duas entradas de diário.
Sim, talvez seja isso o melhor que tenho a fazer.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Dança da Vida

Perdi-me da claridade
No meio da escuridão
Entreguei à saudade
Toda a minha condição

Chorei mágoas vencidas
Por ventos de outrora
E perdi em mim vidas
Que são de outro agora

Guardamos a saudade
Sem sequer pensar
Que andam pela cidade
Mágoas a cirandar

E nesta dança da vida
Só baila quem poder
Pôr em cada despedida
O beijo de uma mulher.